Interesse Público

Tudo ou nada: relação de mútua exclusão entre a Lei 8.429/92 e a Lei 12.843/13

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20 de fevereiro de 2025, 8h00

Na Teoria do Direito, é clássico o magistério de Dworkin e Alexy acerca do modo de aplicação das normas jurídicas. Princípios e regras, como espécies de normas jurídicas, distinguem-se por um critério qualitativo de aplicação, que permite divisar mandamentos de otimização (princípios) e mandamento definitivos (regras). Os princípios se aplicam na maior medida do possível, de acordo com o peso estabelecido para cada princípio em conflito diante de cada situação fática. Regras, pela maior intensidade deôntica, aplicam-se por subsunção, in all or nothing fashion. É dizer: as regras se aplicam ou não se aplicam: tertium non datur.

Os atos de improbidade, enquanto infrações administrativas passíveis de sanção pelo Poder Judiciário, estão previstos na Constituição de 1988, no artigo 37, §4º, segundo o qual “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

O dispositivo constitucional foi regulado pela Lei nº 8.429/92 (alterada pela Lei 14.230/21), que tipificou os atos de improbidade administrativa, prevendo as sanções respectivas, bem como normas especiais de processo para a sua aplicação. Referida lei se aplica, no que couber, às empresas privadas apenas e na medida em que tenham elas induzido ou concorrido desonesta e dolosamente para o ato de improbidade, com o fim específico de obter vantagem para si ou para outrem, sempre dependendo seu processamento ou punição do concurso efetivo do agente público, que obrigatoriamente comparecerá, em litisconsórcio, no polo passivo da lide [1].

Lei Anticorrupção ou lei de improbidade da pessoa jurídica?

Mais de 20 anos depois, foi editada a Lei nº 12.846/13, que teve origem no Projeto de Lei nº 6.826/2010, de iniciativa da Presidência da República, e “dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”.

De acordo com a mensagem presidencial de encaminhamento, o projeto tinha “por objetivo suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos” [2].

Igualmente, o parecer do relator da matéria no Senado, Ricardo Ferraço, ressaltou que “a legislação brasileira é, contudo, omissa quanto a punições de caráter civil a pessoas jurídicas, por atos de lesão ao patrimônio público, quando não houver participação de agente público no ilícito, de modo a caracterizar a ocorrência de ato de improbidade administrativa e que “falta, no entanto, prever medidas punitivas de natureza penal, civil ou administrativa para as pessoas jurídicas, quando a lesão é provocada independentemente de participação de servidor público[3].

Após aprovação, sanção e publicação, a mídia [4], o próprio Parlamento [5] e setores interessados e engajados da burocracia estatal trataram de batizar a Lei nº 12.846/13 como “Lei Anticorrupção” e assim ela ficou ordinariamente conhecida. Embora o texto dessa lei não contemple a expressão “anticorrupção”, posteriormente a Lei nº 13.303/16, em seu artigo 17, §4º, terminou por fazer essa alusão em remissão à Lei 12.84/13 [6].

Sem embargo disso, numa análise mais acurada, conclui-se que as disposições da Lei nº 12.846/13 não se relacionam exatamente com as modalidades do delito de corrupção, ativa ou passiva, os quais constituem os tipos penais previstos nos artigos 317 e 333 do Código Penal. Na verdade, ela teria sido designada mais apropriadamente como Lei de Improbidade Empresarial e não como Lei Anticorrupção, como se tem sustentado desde antanho [7].

Leis excludentes

As infrações previstas na Lei nº 8.429/92 (atos de improbidade administrativa) e na Lei nº 12.846/13 (atos de improbidade empresarial) possuem o mesmo fundamento constitucional de validade (artigo 37, §§4º), diferenciando-se apenas em relação ao destinatário das sanções. Assim, em análise do ordenamento jurídico brasileiro como um sistema normativo coeso, abrangente e coerente (essencialmente quando se trata de direito administrativo sancionador), defende-se que essas leis são mutuamente excludentes: a incidência de uma lei, afasta a da outra e vice-versa, sob pena de bis in idem.

Spacca

Em 2014, ainda antes das alterações da Lei de Improbidade Administrativa derivadas da edição da Lei nº 14.230/21, já se afirmava que “o espectro de incidência da Lei nº 12.846/13 é antinômico quando comparado ao espectro de incidência da Lei nº 8.429/92”; que “ao se deixar de fazer essa demarcação abre-se espaço à concreta possibilidade de bis in idem; e que “a Lei nº 12.846/13 vem a complementar as disposições da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92)” [8] [9].

Essa interpretação revelou-se compatível com os artigos 3º, §2º, e 12, §7º, da Lei nº 8.429/92, inseridos pela Lei nº 14.230/21 [10], segundo os quais “as sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013” e “as sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nesta lei e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.

Como se vê, a Lei nº 14.230/21 positivou, no artigo 12, §7º, a vedação ao bis idem, evitando que haja, em qualquer hipótese, a penalização da pessoa jurídica, pelos mesmos fatos, com base nas duas leis (Lei nº 8.429/92 e Lei nº 12.846/13), ao mesmo tempo em que direciona a aplicação das sanções da Lei nº 12.846/13 apenas para os casos em que não haja a participação de agentes públicos na prática de atos lesivos à administração pública, exatamente a hipóteses lacunosa existentes antes da sua edição.

Com efeito, é esta a única interpretação para ambas as leis que se apresenta como coerente em face da Constituição da República, uma vez que admitir o sancionamento dos agentes conforme regimes jurídicos diversos, pela mesma infração e com requisitos de configuração distintos, afrontaria, em última instância, o princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição [11]. [12].

Como se vê, a combinação dos métodos gramatical, sistêmico, teleológico e histórico (ou, ainda, genético) de interpretação do direito demonstra que a distinção do sancionamento dos agentes supostamente incursos na mesma infração, conforme sua natureza jurídica (agente público e pessoa jurídica de direito privado) deturparia o real significado da lei. É justamente por isso que Wallace Paiva Martins afirma:

“Não se afigura escorreito predicar o mesmo fato com duas consequências jurídicas distintas e incompossíveis: responsabilizar subjetivamente o agente público com base na Lei nº 8.429/92 e objetivamente a empresa beneficiária do mesmo ato com fulcro na Lei nº 12.846/13, porque a incidência desta exclui aquela e vice‑versa, já que os fundamentos de ambas são inconciliáveis. Logo, nem é admissível cumular na mesma demanda duplicidade de fundamentos que são antagônicos” [13].

Tem razão o autor. As leis são inconciliáveis entre si, a não ser que o fator de distinção for, no caso da Lei 8.429/92, a presença obrigatória, do agente público no polo passivo da demanda, sutileza que proporciona o entendimento normativo.

Conclui-se, assim, que a Lei nº 8.429/92 aplica-se a todos os autores nos casos em que houver infração praticada em indução ou coautoria dolosa entre agentes públicos e empresas privadas. Já a Lei nº 12.846/13, aplica-se aos casos em que não houver a participação de agentes públicos. A aplicação de uma lei exclui a possibilidade de aplicação da outra, necessariamente.

Logo, não é possível a apenação simultânea do mesmo agente com base em ambas as leis, tampouco a apenação, pelo mesmo fato, do agente público com base na Lei nº 8.429/92 e da empresa privada com base na Lei nº 12.846/13. É uma relação legislativa de tudo ou nada, sob pena de violação ao princípio no non bis in idem.

 


[1] BRASIL. STJ. REsp n. 1.980.604/PE, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 30/6/2022.

[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Mensagem n. 52. Brasília: 2009. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=735505&filename=Tramitacao-PL%206826/2010. Acesso em 22 mai. 2024.

[3] FERRAÇO, Ricardo. Parecer n. 649/2013. Brasília, 2013. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/113244#tramitacao_9686806. Acesso em: 22 mai. 2024.

[4] GASPARIN, Gabriela. Lei Anticorrupção entra em vigor nesta quarta à espera de regras. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2014/01/lei-anticorrupcao-entra-em-vigor-nesta-quarta-espera-de-regras.html. Acesso em 22 mai. 2024.

[5] BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei Anticorrupção é sancionada com vetos. Brasília, 2013. Disponível em: https://www.camara.leg.br/tv/410542-lei-anticorrupcao-e-sancionada-com-vetos/. Acesso em 22 mai. 2024.

[6] Art. 17 (…)

§4º. Os administradores eleitos devem participar, na posse e anualmente, de treinamentos específicos sobre legislação societária e de mercado de capitais, divulgação de informações, controle interno, código de conduta, a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 (Lei Anticorrupção), e demais temas relacionados às atividades da empresa pública ou da sociedade de economia mista.

[7] No mesmo sentido, ver: “Em rigor, a lei em comento exige que as pessoas jurídicas se relacionem com o Poder Público de modo reto e lhano, na amplitude e limitações por ela fixadas. Trata-se, em rigor, de uma Lei de Probidade Administrativa Empresarial e não de uma Lei Anticorrupção, ainda que este último rótulo seja empregado de forma corrente e de modo equivocado… (ZOCKUN, Maurício, Comentários ao art. 1º. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção Comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p.16)

[8] A primeira interpretação neste sentido pode ser encontrada em: FERRAZ, Luciano. Reflexões sobre a Lei nº 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas – Lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, Forum, Ano 12, n. 47, p. 33-43, out./dez. 2014.

[9] No mesmo sentido, ver HARGER, Marcelo. Comentários à Lei anticorrupção – Lei 12.846/13, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 36-37, onde se lê: “A lei anticorrupção somente se aplica quando o ato ilícito for praticado exclusivamente pela pessoa jurídica, sem a participação de um agente público, pois as hipóteses previstas no art. 5º da Lei nº 12.846/13, independem do concurso de algum agente público. Quando houver a conduta de um agente público em concurso com pessoa física ou jurídica que contrate com o poder público, a lei aplicável é a lei de improbidade administrativa.” Ver também, aqui na ConJur, o texto de FORTINI, Cristiana. Excesso de punição a atos de corrupção não favorece o interesse público (https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/interesse-publico-excesso-punicao-atos-corrupcao-nao-favorece-interesse-publico/), onde se lê: “Se o ato ilícito for de autoria da pessoa jurídica, sem envolvimento de agente público, afasta-se a Lei 8.429/1992 e aplica-se a Lei 12.846/2013. Lado outro, se o ato envolver agente público, atrai-se a incidência da Lei 8.429/1992, afastando-se a Lei 12.846/2013.”

[10] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Comentários ao art. 30. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção Comentada, 4ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 387.

[11] Em matéria de direito punitivo, referido princípio tem concreção, dentre outros, no art. 29 do Código Penal, segundo o qual “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. O dispositivo do Código Penal consagra a teoria monista do ordenamento jurídico brasileiro, segundo o qual “todos aqueles que concorrem para o crime incidem nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”, sendo que “existe um crime único, atribuído a todos aqueles que para ele concorreram, autores ou partícipes”. É dizer: “embora o crime seja praticado por diversas pessoas, permanece único e indivisível” (GRECO, Rogério. Curso de direito penal, parte geral. Volume 1. Niterói: Impetus, 2007, P. 430).

[12] Sobre a aplicação, ao Direito Penal e ao Direito Administrativo Sancionador, dos mesmos princípios gerais relacionados ao poder punitivo estatal, vide: OSÓRIO, Fabio Medina. Direito administrativo sancionador. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[13] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Comentários ao art. 30. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção Comentada, 4ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 386.

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