Apenas um a cada quatro inquéritos policiais vira denúncia do MP
20 de fevereiro de 2025, 8h30
* Reportagem publicada na nova edição do Anuário do Ministério Público. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br

Capa da nova edição do Anuário do Ministério Público Brasil
De cada quatro inquéritos policiais encaminhados para o Ministério Público, apenas um deles tem elementos suficientes para uma denúncia. O cálculo foi feito a partir dos dados do relatório anual MP Um Retrato. Em 2023, os 27 MPs estaduais receberam 1,7 milhão de inquéritos criminais novos. A metade destes procedimentos teve um desfecho neste mesmo ano: 400 mil se transformaram em denúncias à Justiça; 340 mil foram arquivados; e 77 mil tiveram uma solução negociada por acordo; os 856 mil inquéritos restantes continuam em tramitação, muito provavelmente para cumprir novas diligências que completem a investigação.
Membros do MP atribuem a baixa resolutividade dos inquéritos policiais à falta de estrutura e de investigação por parte da Polícia, que deveria fundamentar os inquéritos com o mínimo de indícios. Mas não deixam de ponderar com base em dados da realidade brasileira. Por exemplo, diante de crimes de extrema gravidade, quanto tempo e recurso devem investir os policiais na identificação de autores de furto de celular? Só em 2023, quase um milhão de ocorrências desta natureza foram registradas em delegacias de todo o país, segundo dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Dos cerca de 1,7 mi inquéritos policiais encaminhados ao MP, menos um quinto viraram denúncia
Já o poder para investigar do MP, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, é limitado. Não só pelas regras que deve seguir nesses procedimentos, mas também por questões relacionadas à falta de estrutura. Em 2023, havia 9.641 promotores de Justiça para analisar 4,4 milhões de inquéritos criminais recebidos, sem contar a atuação cível e a judicial.
Do ponto de vista normativo, os membros do MP estão vinculados ao princípio da obrigatoriedade da ação penal: presentes todas as condições da ação, denunciar é um ato administrativo vinculado (e não discricionário), verdadeiro poder-dever ministerial.
O Código de Processo Penal é mandamental nesse ponto em alguns de seus artigos iniciais. Segundo o artigo 24 do CPP: “Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.” O próximo artigo diz: “A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia.” E mais à frente, no artigo 42, está a ordem de que “o Ministério Público não poderá desistir da ação penal”.
O CPP diz ainda que mesmo a população pode contribuir para a persecução, trazendo fatos para o MP, como diz o artigo 27: “Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção”.
A positivação no CPP dos acordos de não persecução penal (ANPPs) abriu uma luz no fim do túnel, substituindo, em muitos casos, o dogma da obrigatoriedade pela oportunidade da ação penal.
O fato de o MP acionar o Estado-juiz, por meio de denúncia criminal, em apenas 30% dos casos indica que a qualidade da investigação preliminar está aquém do ideal, apontam especialistas consultados pelo Anuário. “A realidade da investigação preliminar do inquérito policial no Brasil evidencia que o gargalo de ineficiência estatal se encontra entre Polícia e Ministério Público, ao passo que o Judiciário responde pela lentidão desse aparato ineficiente. Na gestão de escassez de recursos, a imposição de uma regra geral para ajuizamento de ações penais impede o reconhecimento de que os arranjos institucionais do Estado atuem segundo uma ordem de prioridade”, afirma em estudo Antonio Henrique Graciano Suxberger, promotor de Justiça do Distrito Federal e doutor em Direitos Humanos na Espanha.
O promotor André Luís Alves de Melo, do Ministério Público de Minas Gerais, é incisivo em sua tese de doutorado no sentido de que a obrigatoriedade da ação penal, sem critérios de racionalização, viola os direitos fundamentais e também os princípios da administração pública. Segundo ele, a ação penal não é a única forma de se fazer política criminal, nem deve ser a primeira e principal opção. “Oportunidade da ação penal não gera impunidade, e sim, mais eficiência, o que está em conformidade com o princípio constitucional da independência funcional do membro do Ministério Público, bem como o princípio da administração pública da eficiência. Para Melo, o artigo 28 do CPP não delimita as razões de arquivamento, que pode ocorrer “por política criminal e até mesmo provisoriamente por prioridade”.
Melo, que sustenta serem inconstitucionais os dispositivos que suportam a tese da obrigatoriedade, aponta dois complicadores para aplicar esta medida: um é a impossibilidade de invocar o princípio da insignificância para afastar a denúncia, já que não há uma tese ou súmula que defina o caso. O outro a impossibilidade de aplicar a prescrição virtual: “Nestes casos, o promotor mineiro se diz contra a obrigatoriedade da ação penal não por ser mais ou menos garantista, mas por uma questão de economia processual. “Por que não aplicar a prescrição virtual se sabemos que quando o juiz der a sentença com pena mínima, a pretensão de punibilidade estará prescrita?”, indaga.
O Superior Tribunal de Justiça tem a resposta na Súmula 438, de 2010: “É inadmissível a extinção de punibilidade pela prescrição de pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.”
Melo afirma, ainda, que a tese da obrigatoriedade da ação penal foi importada da legislação italiana, que no momento está revendo a prática. “Na Itália usa-se atualmente menos o princípio da obrigatoriedade da ação penal do que no Brasil, exceto para crimes violentos. Ou seja, aqui estamos adotando algo baseado na doutrina italiana antiga e que não mais prevalece no país de origem”, afirma.
Reportagem da revista eletrônica Consultor Jurídico mostrou que a prescrição virtual, embora ainda rejeitada pelas cortes superiores, continua sendo aplicada em primeira instância (clique aqui para ler). Levantamento com base em dados da plataforma JusBrasil, aponta que, entre setembro de 2023 e setembro de 2024, 4,2 mil acórdãos dos tribunais de Justiça dos estados e dos tribunais regionais federais citaram a prescrição virtual ou antecipada. As decisões em segundo grau, em sua maioria, contudo, impedem a prescrição virtual. E em primeiro grau, a aplicação da prescrição virtual muitas vezes é a confirmação de uma sugestão do próprio promotor.
Segundo a reportagem, essa modalidade surgiu dentro do Ministério Público de São Paulo. A ideia é sempre evitar a perda de tempo com ações inúteis, no final das quais o réu não poderá ser punido. Os tribunais rejeitam a ideia, por entenderem que o MP não pode especular sobre a pena a ser aplicada e a demora até a sentença.
Recente julgado do STF destacou implicitamente que não há dois Ministérios Públicos, um para defender os direitos fundamentais e outro para acusar criminalmente: tudo deve ser feito de forma conjunta. Ao negar o pedido da Conamp na ADPF 758, o ministro Gilmar Mendes afirmou que o Ministério Público é uma instituição que deve proteger a ordem jurídica e os direitos fundamentais, e não um órgão exclusivamente voltado para a acusação e obtenção da condenação do réu.
A advogada criminalista Maíra Fernandes segue o mesmo caminho e diz que está fora do desenho constitucional a visão do MP como “denunciador a todo custo”. Para a advogada, o MP precisa ser o fiscal da lei, sendo titular da ação penal ou não. “Se não há fundamento para a denúncia, não há justa causa, não há razão para denunciar. Já tive inquéritos com manifestação favorável pelo arquivamento em sede policial e arquivados pelo MP, em manifestações muito bem fundamentadas. Isso é um atuar com responsabilidade do representante do MP, pois o simples fato de responder a uma ação penal, muitas vezes, já é uma pena para o acusado”, afirma.
Maíra Fernandes evita generalizar, porque, embora o MP seja uno e indivisível, na prática, há representantes do MP que atuam de acordo com suas próprias percepções individuais. “Já me deparei com promotores extremamente cuidadosos no trato do procedimento criminal, exigentes, que leem atentamente os autos, pedem diligências e que se, ao final, estiverem convencidos da ausência de justa causa, deixam de denunciar. Se estiverem convencidos da inocência, manifestam-se pela absolvição”. E conclui: “Se isso fosse uma regra, não veríamos tantas denúncias absolutamente ineptas e ausentes de justa causa por aí”.

Em 2023, mais da metade dos inquéritos recebidos pelo MP (51%) estavam pendentes
“Se o Ministério Público tivesse condição, denunciaria tudo”, critica o advogado Fernando Fernandez. Com a visão de que o Direito é instrumento não só jurídico, mas político, ele diz que é preciso haver uma mudança cultural porque, na prática, “a grande maioria dos promotores de Justiça acaba sendo acusadora sistemática e mais parcial do que advogados, que são reconhecidamente parciais”.
A questão fundamental, segundo ele, está nos limites aos poderes do Estado fixados no artigo 5º da Constituição Federal, quando fala de garantias individuais. “O objetivo do artigo 5º é a limitação de poder para proteger o indivíduo, portanto, limitação do poder do Ministério Público, limitação do poder do Judiciário, limitação de outros poderes”.
O princípio da insignificância ilustra bem a seletividade do Direito Penal, que acaba sendo usado como forma de punir a parcela marginalizada da população. Por ser uma construção apenas doutrinária e não presente em nenhuma lei, tribunais de Justiça, por muito tempo, resistiram em reconhecer a atipicidade da conduta de furtos de produtos em supermercados por exemplo, fazendo com que casos banais chegassem à Suprema Corte.
O procurador de Justiça da área criminal do MP-SP Ivan Agostinho comenta que o princípio da insignificância ou da bagatela já está bem arraigado entre os promotores, mas reconhece que “talvez a gente seja um pouco mais rigoroso do que o juiz e o advogado, para reconhecer presente naquele caso concreto, todos os requisitos para que seja considerado insignificância. O procurador entende que é da natureza do promotor ser mais duro do que o juiz e o advogado. E que um dos motivos pelos quais o MP afasta a insignificância é a reincidência do réu. “se não houver uma resposta do Estado em casos reiterados de furto, por exemplo, o dono do supermercado faz justi-ça pelas próprias mãos”, adverte.
Prevalece entre os criminalistas a visão de um MP mais punitivista, que vê a prisão como regra, que busca a condenação a todo custo, que tem o acusado como culpado. Mas os anos de advocacia permitem encontrar promotores “super legalistas”: se a lei autoriza o benefício, o acusado tem direito. Se a conduta é atípica, não há razão para denunciar. Se não há provas para condenar, deve prevalecer o in dubio pro reo. “Ser legalista pode não ser ruim, pode significar o respeito às regras penais e processuais penais que a defesa tantas vezes requer. Promotores assim exercem a função de custos legis e, não raro, manifestam-se em favor da defesa”, completa Maíra Fernandes.

Atuação do MP em 2023 por tipo de procedimento
De acordo com o estudo Onde Mora a Impunidade 2023, do Instituto Sou da Paz, de 30.883 mil homicídios dolosos (quando há a intenção de matar) ocorridos no Brasil em 2021, apenas 35% foram esclarecidos.
O país possui a terceira maior população carcerária do mundo, com 663.387 pessoas presas em regime fechado, em junho de 2024, dado mais recente do Ministério da Justiça e Segurança Pública. No entanto, entre pessoas presas, apenas 9% são por homicídios. A grande maioria é por crimes patrimoniais (40%), seguido por crimes relacionados a drogas (21%).
Anos atrás, o Conselho Nacional de Justiça publicou pesquisa reportando que havia 140 mil homicídios sem solução no Brasil. Apenas no Rio de Janeiro, eram 60 mil. Isso significa dizer que alguns inquéritos de homicídio ficam tramitando por anos e anos sem conclusão. Se olharmos esse dado ao lado do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, veremos que as maiores vítimas de homicídio são pessoas negras e os crimes praticados em locais periféricos. O que os dados parecem indicar é que esses crimes, simplesmente, não são sequer investigados, por isso não são denunciados.
Há também um número muito grande de registros de furto e roubo que as pessoas fazem por requisição do contrato de seguro, porque querem reaver seus documentos e celulares com todas as suas informações. Mas a apuração desses casos é baixíssima pela polícia, embora seja importante e recomendado seja feito o registro, para alimentar os bancos de dados e estatísticas e para o direcionamento do policiamento ostensivo.
“Por conta do volume, de fato, a polícia não investiga. Agora, homicídio é um crime mais grave, que de fato requereria uma apuração maior. O Ministério Público não vai ter o que fazer diante de um caso como esse se não arquivar”, comenta Maíra Fernandes.
Não é de hoje que os governos dos estados priorizam a Polícia Militar em detrimento da Civil, a quem cabe o papel investigativo. E aí vê-se situações frequentes de delegacias sucateadas, policiais desmotivados. O MP do Rio de Janeiro move ação para que o Estado seja obrigado a promover melhorias nas delegacias de Niterói. É só um exemplo.
“Quais casos mais geram prisões em flagrante? Tráfico, roubo, furto e feminicídio. Este é o perfil prioritário hoje do sistema carcerário. Agora, veja, foi uma decisão política lá atrás, e os governos continuam replicando. O DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa] sempre foi a polícia de excelência na Polícia Civil de São Paulo. Há muito tempo o DHPP não presta serviço. São raros os casos em que tem uma grande investigação de autoria desconhecida. Investigam apenas os midiáticos. Então, o tráfico de drogas virou uma prioridade. Não era para ser a prioridade. A prioridade era investigar homicídio, roubo, latrocínio, os crimes que mais incomodam no dia a dia a sociedade. Em determinados tipos de crime, você não vai prender em flagrante nunca. Precisa de investigação, não tem jeito”, diz o promotor Alexandre Rocha, do MP de São Paulo.
Mas a opinião não é uníssona, nem mesmo no próprio Ministério Público paulista. “Existem departamentos da polícia na Capital que fazem um trabalho de excelência, investigação de primeiro mundo. Mas tem alguns distritos que, infelizmente, têm uma estrutura menor. Por isso temos um grupo criado recentemente que faz esse controle externo da atividade policial, tanto militar quanto civil”, afirma Tatiana Calle Heilman, promotora que coordena o Centro de Apoio Operacional Criminal (CAO-Crim) do MP de São Paulo.
Ela conta que, recentemente o CAO-Crim fez uma consulta aos membros do Estado inteiro para verificar quais problemas eles estão identificando em cada delegacia de cada comarca. Compilaram esses dados e agora irão trabalhar em uma interlocução com o governo para resolver esses problemas. “Percebemos o seguinte: se a gente entra com uma ação civil pública em uma comarca para que o Estado seja obrigado a colocar mais viaturas, mais policiais, o que tem acontecido? O Estado cumpre, mas ele tira da cidade vizinha essa estrutura. Isso também não interessa para o Ministé-rio Público, porque a gente pensa no Estado inteiro. O que temos feito então? Trabalhado politicamente com a polícia, com interlocuções, com reuniões. É mais eficiente do que simplesmente judicializar o problema”, conta Heilman.
ANUÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASIL 2024
3ª Edição
ISSN: 2675-7346
Número de páginas: 204
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur. Clique aqui para comprar a sua edição
Versão digital: gratuita. Acesse pelo site anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário de Justiça
Veja quem anunciou nesta edição
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Bottini & Tamasauskas Advogados
Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil
Décio Freire Advogados
JBS S.A.
Keppler Advogados Associados
Mubarak Advogados
Original 123 Assessoria de Imprensa
Refit
Sergio Bermudes Advogados
Warde Advogados
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!