Número de ações por improbidade cai 42% após reforma na legislação
18 de fevereiro de 2025, 8h30
* Reportagem publicada na nova edição do Anuário do Ministério Público. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).

Capa da nova edição do Anuário do Ministério Público Brasil
Um dos principais instrumentos da atuação judicial do Ministério Público, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) passou por profundas alterações que obrigaram o MP a rever métodos persecutórios e delimitaram a responsabilização dos acusados. Passados três anos da reforma na LIA (Lei 14.230/2021), o órgão ainda tenta resgatar o alcance punitivo da antiga legislação, sob o argumento de que o combate às irregularidades cometidas contra a administração pública está enfraquecido.
Duas mudanças trazidas pela Lei 14.230 modificaram significativamente os parâmetros acusatórios. A primeira acaba com a punição de práticas culposas. Para que o agente público (político ou servidor público) responda por atos de improbidade, é necessária a demonstração do dolo: “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito (…), não bastando a voluntariedade do agente” (art. 1º, parágrafo 2º). Os artigos 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92, que dispõem sobre os três tipos de improbidade (enriquecimento ilícito; prejuízo ao erário; e violação aos princípios administrativos), agora abarcam apenas atos dolosos.
A nova LIA também passou a tipificar textualmente, no artigo 11, os atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública, abandonando a amplitude da antiga redação que abria brechas para que situações diversas – e não necessariamente previstas na norma – pudessem ser enquadradas como improbidade.
Essas duas principais mudanças, como apontam membros do MP ouvidos por este Anuário do Ministério Público, afrouxaram a força punitiva da lei. Procurador Regional da República (PRR-3) e autor do livro Manual sobre Improbidade Administrativa, Ronaldo Pinheiro de Queiroz afirma que a abrangência do artigo 11 era controversa, mas que a saída adotada foi excessiva. “Concordo que merecia uma revisão. No entanto, a diferença entre remédio e veneno está na dose, e parece que, neste caso, a dose foi alta demais.”
A percepção de que a nova LIA trouxe efeitos colaterais não é em vão. Levantamento feito pelo Movimento Pessoas à Frente junto ao painel de estatísticas do Conselho Nacional de Justiça identificou que o número absoluto de ações novas por improbidade no primeiro grau caiu nos anos seguintes à reforma. Em 2023, chegaram 12.846 novos casos em todo o Poder Judiciário – 42% a menos que em 2021, quando foram propostas 22 mil ações. A pesquisa não analisou dados de 2024, que indicam a continuidade da queda do número dessas ações. Até outubro, eram 9.752 novos casos, segundo o DataJud/CNJ.
O Movimento, organização que promove discussões sobre a eficiência do Estado brasileiro, somou na pesquisa as demandas cadastradas no sistema pelos assuntos: improbidade administrativa; enriquecimento ilícito; prejuízo ao erário; e violação aos princípios administrativos.

Total de demandas por improbidade vem caindo desde a reforma na LIA, em 2021
A pesquisa também traçou o perfil das pessoas condenadas por improbidade entre 1995 e 2024, com base em banco de dados do CNJ. No período analisado, foram 28.216 condenações – o que inclui condenações por um ou mais assuntos relacionados ao ilícito. As condenações mais recorrentes dizem respeito a dano ao erário (36%) e violação dos princípios administrativos (34%); responsabilizações por enriquecimento ilícito chegaram a 10% das condenações judiciais.
A taxatividade do novo artigo 11, como sustenta o MP de São Paulo, acabou por tornar impune, no âmbito do direito administrativo sancionador, práticas graves cometidas por agentes públicos que não estavam previstas na lei antiga, como assédios moral e sexual, tortura, desobediência dolosa a decisões judiciais e até pornografia infantil.
Segundo o órgão, cerca de oito em cada dez processos que estavam em grau de apelação no segundo grau foram revistos em benefício do réu com base na nova LIA. A manifestação do MP paulista foi feita no âmbito da ADI 7.236, ajuizada no Supremo Tribunal Federal pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) em setembro de 2022 e cujo julgamento está suspenso. A entidade questiona a constitucionalidade de diversos pontos da Lei 14.230/2021, entre eles a extinção da modalidade culposa.
“O patrimônio público não deve ser protegido apenas de atuações dolosas de agentes públicos, mas também quando presente erro grosseiro ou culpa grave, consideradas as circunstâncias da situação concreta e o atuar exigível do agente, sob pena de se incorrer em inconteste tutela deficiente do patrimônio público”, diz trecho da petição.
Em 2022, o ministro Alexandre de Moraes, relator da ADI, suspendeu liminarmente trechos da nova lei, entre eles, o que descarta enquadrar como improbidade casos de “ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada (parágrafo 8ª, art. 1º); o parágrafo 1º, artigo 12, que previa que a perda da função pública só afetaria o cargo ocupado pelo acusado no momento da infração, protegendo eventual função pública exercida na ocasião da condenação transitada em julgado; e o artigo 23-C, que previa que partidos políticos e suas fundações somente seriam responsabilizados nos termos da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995)”.
Outros pontos da lei considerados inconstitucionais pelo relator foram o artigo 21, parágrafo 4º, que impossibilita o trâmite da ação de improbidade nos casos em que houver absolvição criminal, no âmbito de ação penal que discuta os mesmos fatos; o artigo 12, parágrafo 10, que soma ao prazo da sanção de suspensão de direitos políticos o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória; e o artigo 17-B, parágrafo 3º, que obrigava o MP a consultar os tribunais de contas para apurar o dano a ser ressarcido pelo agente público nas hipóteses de acordo de não persecução cível. Esse último é um dos pontos mais criticados por membros do MP, que alegam que o dispositivo atingiu a autonomia e independência da instituição.
“Houve ofensa à autonomia do MP e uma desfiguração da competência dos tribunais de contas, os quais passaram a ser órgãos de consulta do Ministério Público. Pode haver cooperação interinstitucional para essas situações, mas não uma condição de validade do acordo”, frisou o procurador Ronaldo Pinheiro de Queiroz.
O STF começou a analisar o mérito da ADI 7.236 em 2024, mas pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspendeu o julgamento. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, foi favorável à suspensão dos trechos da LIA. O MP também critica os prazos prescricionais da lei. São oito anos para a conduta de improbidade, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência, para conclusão de inquérito civil (um ano) e de um mês, a partir da conclusão do inquérito, para ajuizamento da ação.
“Embora não seja saudável para o ecossistema jurídico investigações muito demoradas, há situações de complexidade dos fatos, pluralidade de agentes ou mesmo desaparelhamento do MP que necessite se prolongar na investigação”, lembra Ronaldo Queiroz. “É um prazo desarrazoado. É preciso levar em consideração se a demora não foi causada pelo próprio investigado”, disse o subprocurador-geral de Justiça de São Paulo, Wallace Paiva Martins Junior, em sustentação oral no STF.
A reforma da lei, por outro lado, foi bem recebida pela advocacia. A este Anuário do Ministério Público, o jurista Nelson Nery Junior, procurador aposentado do MP-SP, afirmou que não vê inconstitucionalidades na lei e que a imposição de prazos para conclusão das investigações, por exemplo, acabou com arbitrariedades de inquéritos intermináveis.
“Falavam que as mudanças iriam acabar com a ação civil pública por improbidade. Não, não acabou. Colocou os pingos nos is. Antes o MP ficava lá com o inquérito civil aberto, deixava o acusado pendurado por anos. Bloqueava bens já no [período do] inquérito e não resolvia nada. Tive um caso de improbidade no meu escritório em que fiz uma representação na procuradoria porque o MP não denunciava meu cliente. Tinha um inquérito, mas não concluía, ficava convocando coletivas de imprensa. Foram três anos assim. As regras precisam estar sobre a mesa, de forma transparente”, criticou.
Advogada especialista em direito público e administrativo e uma das autoras da pesquisa sobre o impacto da reforma da LIA no Judiciário, Fernanda Rocha, do escritório de advocacia Huck Otranto Camargo, também crê que as alterações, sobretudo a taxatividade do artigo 11, visam coibir abusos.
“É uma segurança para qualquer acusado. Para que a gente não fique à mercê do arbítrio, é importante que as acusações venham respaldadas. A Lei de Improbidade é um exemplo de direito administrativo sancionador que atende aos mais elevados critérios de segurança jurídica e de tudo que orienta o direito penal, porque ela é uma vertente. A LIA não é penal, não trata de crime, mas é acusação, é punição”, observa a advogada.
Outra conclusão do estudo é a de que a amplitude da redação antiga do artigo 11 resultava no chamado “apagão das canetas, termo caricatural para situações em que o gestor tem medo de decidir pelo receio de responsabilização descabida”. “Muitas acusações abalaram ou destruíram reputações, prejudicaram a condução de políticas públicas e a própria gestão pública”, conclui o estudo sobre a nova lei.
O pragmatismo do ANPC
O acordo de não persecução cível (ANPC) é um dos raros pontos da nova Lei de Improbidade defendidos tanto por membros do Ministério Público quanto pela advocacia. Há consenso de que o novo dispositivo, previsto no artigo 17-B, reforça a bandeira de um MP menos punitivo e mais resolutivo. Mas é preciso amadurecê-lo.
A redação original da LIA (Lei 8.429/1992) vedava a celebração de acordos, embora já fossem admitidos com base em outras normas. A Resolução 179/2017 do CNMP já autorizava o MP a celebrar termos de ajustamento de conduta (TACs) nas ações de improbidade. O ANPC só apareceu na Lei de Improbidade em 2019, no escopo das alterações promovidas pelo pacote anticrime (Lei 13.964/2019). Em 2021, foi aperfeiçoado e aprofundado com a nova redação dada à LIA pela Lei 14.230, autorizando, inclusive, que seja firmado acordo “no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória”.
A advogada Fernanda Rocha, que atua em demandas de direito público e de direito administrativo, fala em pragmatismo do MP com o acordo cível, já que a instituição passou a enxergar “que a ideia de acusar e punir não necessariamente gera o resultado mais eficiente”. Pondera, entretanto, que condições eventualmente muito rígidas impostas pelo MP inviabilizam a negociação do acordo.
“[A celebração do ANPC] tem que ter uma função pedagógica. Se o acordo de não persecução não permitir concessões recíprocas, engessa, porque, considerando que o acordo pode ser celebrado em todo momento ao longo do processo – inclusive depois da sentença, na fase de execução –, qual estímulo real eu dou para um acusado aceitar um acordo?”, questiona.
O advogado Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da USP e do IDP em Brasília, afirma que “o MP ainda não internalizou a cultura do acordo nos casos de improbidade”, o que inviabiliza a negociação com condições de igualdade. Ele sustenta que promotores e procuradores ainda tratam o ANPC como um TAC, no sentido de impor condições em vez de negociar.
“O TAC sempre foi algo que foi colocado de uma maneira muito unilateral pelo Ministério Público. A premissa dele é uma quebra de legalidade e sempre é proposto pelo MP. A gente fala proposto, mas sempre foi imposto. Ou você concorda com os termos ou ele não é celebrado. Já o ANPC tem um racional inverso porque geralmente é proposto pelo próprio advogado. O ANPC inaugurou um tipo de acordo para o MP que realmente deve ser negociado. Por isso essa dificuldade até hoje do Ministério Público em abraçar o ANPC como uma cultura de negociação propriamente dita”, entende o advogado.
Justino de Oliveira cita casos nos quais atuou em que o MP rejeitou os termos do acordo proposto sem dar detalhes da recusa, dificultando o avanço da negociação. “Claro que cabe ao advogado tornar essa proposta atrativa e factível, mas a maior dificuldade que temos é quando bate na trave e volta sem a gente saber o porquê. O Ministério Público tem de entender que é uma mesa de negociação”, sugere.

Volume de acordos firmados pelos MPs estaduais aumentou 13% em 2023
O CNMP ainda não tem um levantamento anual com a quantidade de acordos de não persecução cíveis propostos e homologados no país. Mas o relatório MP Um Retrato mostra que o volume de acordos firmados pelos MPs estaduais (ANPPs e TACs) aumentou 13% em 2023, em comparação com o ano anterior. Na esfera criminal, houve aumento de 14%; na cível, queda de 5%. Os MPs de 19 das 27 unidades da federação ampliaram a celebração de acordos no mesmo período. Os maiores resultados foram registrados, na sequência, pelos MPs da Bahia (aumento de 617%); Sergipe (107%); e Acre (73%).
ANUÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASIL 2024
3ª Edição
ISSN: 2675-7346
Número de páginas: 204
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