Opinião

Juízes robôs? Entre a revolução tecnológica e os dilemas do direito negocial

Autor

  • é professor servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná mediador judicial doutorando e mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) extensão em "Justice" (curso de estudo oferecido pela HarvardX iniciativa on-line da Harvard University) bacharel em Direito pela UEL pós-graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e especialista em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio e autor de obras jurídicas e colaborador em projetos de pesquisa da UEL.

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18 de fevereiro de 2025, 6h02

O recente anúncio impactante do Arbitrus.ai, plataforma de arbitragem automatizada por inteligência artificial desenvolvida por Brian Potts, Kimo Gandall e Kenny McLaren, reacende o debate sobre o futuro da resolução de disputas. Prometendo custos 90% menores e decisões “livres de alucinações”, a ferramenta é vendida como uma panaceia para a lentidão e o elitismo da arbitragem tradicional. No entanto, sob o verniz da inovação, escondem-se questões críticas que desafiam não apenas a eficácia do modelo, mas seus próprios fundamentos éticos e jurídicos.

Retórica da eficiência: olhar cético

A principal narrativa do Arbitrus.ai repousa na eficiência econômica. Com taxas de até US$ 225 para consumidores, a plataforma propõe democratizar a arbitragem, hoje restrita a conflitos de alto valor. A tabela de custos, porém, merece análise além do marketing:

1. Subsídio cruzado: casos acima de US$ 500 mil subsidiam demandas menores. Essa estratégia, comum em startups, cria dependência de volume – um risco sistêmico se disputas complexas forem raras.

2. Custos ocultos: a fase de “revisão humana” inicial é transitória. Qual o plano para fases posteriores? A remoção desse filtro pode inflacionar erros, transferindo custos para as partes via recursos judiciais.

O discurso da acessibilidade também ignora um paradoxo: a arbitragem, por definição, é um meio privado de solução de conflitos. Empresas já incluirão cláusulas obrigando consumidores a um sistema que não compreendem? Eis uma distopia negocial: a adesão forçada a algoritmos sob o pretexto da “eficiência”.

Falácia da neutralidade tecnológica

Os desenvolvedores destacam “zero alucinações” em 100 testes. Mas a métrica é enganosa:

– Viés de confirmação: casos hipotéticos são construídos a partir de jurisprudência existente. Se o treinamento da IA se baseia em decisões majoritárias, o sistema perpetuará viéses históricos (ex.: favorecimento a empregadores em disputas trabalhistas).

– Dinâmica jurídica: o Direito não é estático. Como a IA lidará com mudanças legislativas ou reviravoltas jurisprudenciais? A “consistência” vendida pode significar estagnação.

Além disso, a transparência algorítmica é essencial. Decisões arbitrais devem ser devidamente motivadas, como exige o artigo 26 da Lei de Arbitragem no Brasil. Se o Arbitrus.ai operar como uma “caixa preta”, como as partes poderão contestar uma decisão baseada em critérios obscuros e inacessíveis?

Due process automatizado: uma farsa procedimental?

A plataforma substitui audiências orais por envio de vídeos e documentos. Para o direito negocial, isso representa um risco existencial:

– Perda da dialética: a persuasão em arbitragem depende da interação humana – um mediador lê nuances, ajusta questionamentos, detecta contradições. Vídeos pré-gravados são estáticos; algoritmos não capturam subtextos ou má-fé.

– Assimetria tecnológica: empresas com recursos produzirão evidências em vídeo profissionais, enquanto consumidores terão gravações amadoras. A IA, treinada em padrões corporativos, tenderá a privilegiar o sofisticado?

A própria noção de “audiência justa” é posta em xeque. O due process não é apenas ritualístico – é garantia de participação efetiva. Automatizá-lo pode reduzir a arbitragem a um mero checklist digital.

Fantasma do ‘estado de arbitragem’

A ambição declarada dos criadores é consolidar um “Estado de Arbitragem”, onde conflitos são resolvidos privadamente por IA. O projeto, porém, esbarra em contradições insolúveis:

1. Privatização da justiça: se a arbitragem automatizada massificar-se, tribunais públicos perderão função social. Precedentes judiciais, essenciais para evolução do Direito, serão substituídos por decisões atomizadas e inacessíveis.

2. Desumanização do conflito: disputas contratuais muitas vezes envolvem danos extrapatrimoniais e relações de poder. Delegá-las a algoritmos pode banalizar violações sistêmicas (ex.: cláusulas abusivas em contratos de adesão).

Não por acaso, o primeiro cliente anunciado é o “Colegio de Abogados de Lima”. Em países com judiciários frágeis, a sedução por “eficiência” pode mascarar a erosão de garantias fundamentais.

Para além do determinismo tecnológico

O Arbitrus.ai não é um marco — é um sintoma. Reflete a crescente colonização do Direito pela lógica do mercado, em que até a justiça vira commodity. Como estudioso do direito negocial, questiono:

– Regulação: qual o deve ser o papel do CNJ e do Legislativo na governança das IAs jurídicas? Seria necessário estabelecer diretrizes para auditoria desses sistemas, à semelhança do artigo 22 do General Data Protection Regulation (GDPR) europeu. No Brasil, o artigo 20 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) já prevê o direito à revisão de decisões automatizadas, mas será suficiente para garantir transparência e justiça nesses processos?

– Formação jurídica: como preparar operadores do Direito para desafiar algoritmos, não apenas operá-los?

A promessa de uma arbitragem rápida e acessível é sedutora. No entanto, como alertou Lawrence Lessig, professor de Cyberlaw na Harvard Law School, em seu livro Code and Other Laws of Cyberspace, “o código é a lei e nós”, ou seja, os programadores assumem um papel quase divino na definição das regras do jogo. Se permitirmos que sistemas fechados governem disputas, não estaremos apenas automatizando a arbitragem, mas também reescrevendo, às cegas, o próprio conceito de justiça.

Autores

  • é professor de Direito, servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mediador judicial, doutorando e mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), com extensão em "Justice", curso de estudo oferecido pela HarvardX, iniciativa on-line da Harvard University.

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