Opinião

Crise constitucional nos EUA: checks and balances e o Memorandum M-25-13

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  • é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

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18 de fevereiro de 2025, 6h31

Em A Política (1489), Aristóteles propôs a especialização das funções concentradas no Estado entre “os homens da guerra, os membros do Conselho que deliberam sobre o interesse público e os juízes que sentenciam sobre o direito dos pleiteantes. São estes, sem dúvida, os principais membros do Estado”. Naquela época, a distinção era entre quem deveria agir e quem deveria deliberar (juízes ou membros do conselho [1]).

Suprema Corte dos EUA

No entanto, é na obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil e Outros Escritos — Ensaio Sobre a Origem, os Limites e os Fins Legislativo é visto como supremo por representar a vontade do povo, mas o Poder Executivo é visto como “necessário” para manter a continuidade na execução das leis. De acordo com ele, há três poderes no Estado: o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o poder federativo da comunidade civil, que é o poder de conduzir relações internacionais [2].

A teorização da separação das funções (considerada a unicidade do poder), tal qual é atualmente concebida foi elaborada por Montesquieu em O Espírito das Leis (De l’Esprit des lois), publicado em 1748. Para o autor francês o poder legislativo tem o poder de votar as leis, o poder executivo de executá-las e o judiciário de julgar (la puissance législative, la puissance exécutrice et la puissance de juger). “Para que não se abuse do poder, é preciso que pela disposição das coisas, o pode pare o poder” (pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir [3]).

Entre 1787 e 1788 os denominados “founding fathers” Alexander Hamilton, John Jay e James Madison publicaram o célebre “Federalist Papers[4]. Em 30 de janeiro de 1788, James Madison mencionou especificamente a teoria de Montesquieu: “ Quando os poderes legislativo e executivo estão unidos na mesma pessoa ou corpo”, diz ele, “não pode haver liberdade, porque podem surgir apreensões de que o mesmo monarca ou senado promulgue leis tirânicas, para executá-las de maneira tirânica”.

O denominado sistema de checks and balances, de freios e contrapesos ou “il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir”, caracteriza o necessário equilíbrio entre as funções relativas ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário. Quando uma dessas funções não respeita os limites estabelecidos, se desenha uma crise constitucional.

Contando com menos de 30 dias no poder, o presidente Donald Trump tentou adotar diversas medidas contrárias ao princípio da separação de poderes, notadamente, as seguintes: (1) a revogação da cidadania “jus solis”; (2) o congelamento de gastos federais; (3) a demissão em massa de funcionários públicos sujeitos à proteção do serviço civil; (4) a deportação de pessoas com base em suas opiniões políticas; (5) a deportação de imigrantes ilegais para os seus países de origem (algemados) ou para Guantánamo, a exclusão das políticas baseadas em inclusão de gênero (6) e o acesso das equipes de Musk aos sistemas de pagamento confidenciais do Departamento do Tesouro (7).

Segundo divulgado pelo New York Times [5], mais de quarenta ações judiciais já foram ajuizadas para contestar as medidas supramencionadas. Por exemplo, duas estudantes transgêneros de escolas públicas de ensino médio em New Hampshire estão contestando a ordem executiva que busca impedir que meninas e mulheres trans possam competir em equipes esportivas femininas.

National Council of Nonprofits v. OMB — Civil Action No. 25 – 239 (LLA)

No entanto, os primeiros precedentes que reconhecem o descumprimento de ordens judiciais pelo governo Trump são os seguintes: NATIONAL COUNCIL OF NONPROFITS v. OMB – Civil Action No. 25 – 239 (LLA) e STATE OF NEW YORK and others v. DONALD TRUMP C.A. No. 25-cv-39-JJM-PAS, o primeiro ajuizado por ONGs e o segundo por diversos estados americanos, ambos em contestação ao Memorandum M-25-13.

A emissão do Memorandum M-25-13 pelo OMB, representa, por si só, uma violação ao princípio da separação de poderes por não ter respeitado o Administrative Procedure Act (APA) — não houve delegação do Congresso ao Executivo —, o que, inclusive, constituiria uma violação à Constituição, já que o Executivo deve diligenciar para que as leis sejam fielmente executadas (U.S. Const. artigo II, § 3, cl. 3, the Executive must “take care that the laws be faithfully executed”).

Em 27 de janeiro de 2025, Matthew J. Vaeth, diretor do escritório de gestão e orçamento (office of management and budget – OMB do governo Trump), emitiu um comunicado com a determinação de que as agências federais em nível nacional suspendessem todas as atividades relacionadas à assistência financeira para ajuda externa, às organizações não governamentais, à ideologia de gênero e à proteção ao meio ambiente, assim como o congelamento dos respectivos compromissos financeiros a partir de 28 de janeiro.

Spacca

Consequentemente, em 28 de janeiro diversas ONGs ajuizaram conjuntamente uma petição contra a ordem executiva do memorando, a Civil Action No. 25 – 239 (LLA) e obtiveram a concessão de uma “medida cautelar” vedando a implementação do Memorando OMB M-25-13 com relação ao desembolso de fundos federais até o dia 3 de fevereiro, data em que seria realizada uma audiência para a complementação do pedido cautelar (Plaintiffs’ TRO motion).

No dia seguinte, o OMB publicou um novo memorando rescindindo o primeiro [6]: “OMB Memorandum M-25-13 is rescinded. If you have questions about implementing the President’s Executive Orders, please contact your agency General Counsel.” ECF No. 18-1”. Contudo, em 29 de janeiro a Casa Branca anunciou em sua conta oficial no X (antigo Twitter) que o novo memorando não cancelou ou anulou o congelamento do financiamento federal e que ele teria sido publicado “apenas para acabar com qualquer confusão criada pela ordem judicial”.

Em 31 de janeiro o Chief Judge John J. McConnell Jr. do Tribunal Federal de Rhode Island concedeu o pleito cautelar no âmbito do pedido de Temporary Restraining Order n˚ 25-cv-39-JJM-PAS elaborado por diversos estados americanos e determinou que durante a pendência da medida “os réus não deverão pausar, congelar, impedir, bloquear, cancelar ou encerrar o cumprimento desses repases” [7].

Posteriormente, em 10 de fevereiro, o Chief Judge ordenou que os funcionários do governo cumprissem a sua primeira decisão.  O juiz McConnell havia ordenado [8] anteriormente que a Casa Branca descongelasse os fundos federais bloqueados, valores que já haviam sido alocados pelo Congresso aos estados para pagar o Medicaid, a merenda escolar, os subsídios para moradia de baixa renda e outros serviços essenciais.

O juiz também deixou claro que as autoridades da Casa Branca eram obrigadas a cumprir a decisão, independentemente da conclusão do caso. Em sua decisão na última segunda-feira, o juiz McConnell citou uma opinião de um caso da Suprema Corte de 1975, observando que “as pessoas que fazem determinações privadas da lei e se recusam a obedecer a uma ordem geralmente correm o risco de desacato criminal, mesmo que a ordem seja finalmente considerada incorreta”.

Ora, o comportamento despótico do Poder Executivo norte-americano constitui uma grave violação à separação das funções identificadas em um Estado de Direito. A apropriação dos recursos do governo é reservada ao Congresso, não ao Poder Executivo [9]”. Inclusive, a magistrada mencionou que concedeu a primeira medida registrou que “as ações dos réus parecem sofrer de enfermidades de magnitude constitucional” (Civil Action No. 25 – 239 – LLA).

Impoundment Act de 1974, 2 U.S.C. § 681 e a separação de poderes

Obtempere-se que é o Impoundment Act de 1974, 2 U.S.C. § 681 et seq. que estabelece o procedimento regular que deve ser respeitado pelo Poder Executivo quando desejar suspender obrigações financeiras que já tenham sido autorizadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Executivo. Um procedimento que foi transformado por Trump num simples memorando.

Até o momento, as ordens judiciais não foram integralmente cumpridas [10].Vale lembrar que Trump já desconsiderou a decisão da Suprema Corte, que exigia que o TikTok fosse vendido ou banido do país. Em vez disso, Trump ordenou ao Departamento de Justiça que não aplicasse a lei durante 75 dias.

O desafio às decisões da Suprema Corte não é algo inédito. Em Marbury v. Madison (1803), o governo sequer compareceu perante a corte e após a decisão contrária à Thomas Jefferson, o tribunal elaborou cuidadosamente a sua decisão para evitar que fosse necessário qualquer comportamento ativo por parte do então presidente. Em 1832, o presidente Andrew Jackson recusou-se a cumprir uma decisão da Suprema Corte decorrente de um confronto entre a Geórgia e a nação Cherokee (“John Marshall tomou a sua decisão; agora deixe-o aplicá-lo [11]”). Após Brown v. Board of Education (1954), os estados do Sul se recusaram a respeitar a ordem, o que demandou que o presidente Eisenhower enviasse militares da 101ª Divisão Aerotransportada para Little Rock, Arkansas.

Os “founding fathers” defenderam que “quando os poderes legislativo e executivo estão unidos na mesma pessoa ou corpo, não pode haver liberdade, porque podem surgir apreensões de que o mesmo monarca ou senado promulgue leis tirânicas, para executá-las de maneira tirânica”. O comportamento despótico de Trump, similar ao de um monarca ou imperador, não parece se adequar aos princípios fundamentais de um Estado democrático e republicano. Na verdade, ele se adequa à figura de Leviatã, que mantém o seu poder através do medo.

 


[1] Aristote. La Politique, p. 69.

[2] John Locke. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos – Ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil, p. 172.

[3] Montesquieu. L’esprit des lois, p. 112.

[4] Hamilton, Alexander; Madison, James; and Jay, John. The Federalist. Edited by Jacob E. Cooke. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press, 1961. The Founders’ Constitution
Volume 1, Chapter 10, Document 14. Separation of powers.

[5] Disponível em: https://www.nytimes.com/2025/02/10/us/politics/trump-constitutional-crisis.html.

[6] Em 3 de fevereiro a magistrada Loren L. Alikhan (Civil Action No. 25 – 239 (LLA) – Court for the District of Columbia), mencionou a “doutrina da cessação voluntária”, que se caracteriza quando o réu é suspeito de “manipular o processo judicial”, o que teria sido demonstrado pelo post na conta oficial da Casa Branca que mencionava a retirada do memorando “to end any confusion created by the court’s injunction.”

[7] “During the pendency of the Temporary Restraining Order, Defendants shall not pause, freeze, impede, block, cancel, or terminate Defendants’ compliance with awards and obligations to provide federal financial assistance to the States, and Defendants shall not impede the States’ access to such awards and obligations, except on the basis of the applicable authorizing statutes, regulations…”. Disponível em:  https://ag.ny.gov/sites/default/files/court-filings/state-of-new-york-et-al-v-trump-tro-2025.pdf.

[8] Disponível em : https://storage.courtlistener.com/recap/gov.uscourts.rid.58912/gov.uscourts.rid.58912.50.0_10.pdf.

[9] In addition, Defendants’ actions appear to suffer from infirmities of a constitutional magnitude. The appropriation of the government’s resources is reserved for Congress, not the Executive Branch. And a wealth of legal authority supports this fundamental separation of powers. The legislature’s “power of the purse is the ultimate check on the . . . power of the Executive.” U.S. House of Representatives v. Burwell, 130 F. Supp. 3d 53, 76 (D.D.C. 2015). The Appropriations Clause of the Constitution gives Congress “exclusive power” over federal spending. U.S. Dep’t of the Navy v. Fed. Lab. Rels. Auth., 665 F.3d 1339, 1346 (D.C. Cir. 2012) (quoting Rochester Pure Waters Dist. v. EPA, 960 F.2d 180, 185 (D.C. Cir. 1992)).

[10] No entanto, as ordens constituem uma chamada à ação do poder Legislativo (responsável pela autorização dos repases realizados aos fundos), notadamente, devido ao desconhecimento do vice-presidente JD Vance no que toca à separação de poderes. Segundo ele, “os juízes não têm permissão para controlar o poder legítimo do executivo”.

[11] Um comentário provavelmente apócrifo, mas ainda assim poderoso, é frequentemente atribuído a Jackson sobre o presidente do Supremo Tribunal John Marshall: “John Marshall tomou a sua decisão; agora deixe-o aplicá-lo”.

 

Autores

  • é doutoranda em Direito Comparado na Paris 1 Panthéon Sorbonne, mestre em Direito Internacional pela Paris 1 Panthéon Sorbonne, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie.

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