Problemática das decisões genéricas em embargos de declaração e dever de fundamentação no CPC
15 de fevereiro de 2025, 17h25
O Código de Processo Civil de 2015 trouxe uma significativa evolução para o processo judicial brasileiro, especialmente ao aprimorar as exigências quanto à fundamentação das decisões judiciais, conforme disposto em seu artigo 489. Esse dispositivo visa garantir que as decisões sejam claras, coerentes e efetivamente capazes de solucionar os conflitos levados ao Judiciário.
No entanto, na prática, observa-se que, sobretudo no julgamento de embargos de declaração, muitas decisões continuam a ser proferidas de forma genérica, sem responder adequadamente aos questionamentos das partes. Isso frustra a função jurisdicional, pois há inúmeros casos em que as decisões são praticamente idênticas, variando apenas o nome das partes e o número dos processos judiciais.
O efetivo julgamento dos embargos de declaração poderia evitar a interposição de recursos como apelação ou recurso inominado nos Juizados Especiais, reduzindo os custos processuais para as partes e o próprio Judiciário. Afinal, a demora na tramitação de um processo gera custos adicionais e compromete a eficiência da prestação jurisdicional.
Além disso, tem-se observado a prática de julgamentos céleres dos embargos de declaração mediante decisões padronizadas, muitas vezes sem sequer intimar a parte adversa para apresentar contrarrazões. Essa conduta visa, sobretudo, encerrar rapidamente o processo e atender a metas estatísticas, como os indicadores do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No entanto, tais metas não refletem critérios qualitativos e acabam por comprometer a efetividade da jurisdição, reduzindo-a a um mero cumprimento de formalidades numéricas.
Essa problemática extrapola o plano técnico-processual e alcança uma dimensão filosófica e teleológica, ao impactar negativamente a efetividade da justiça. Uma jurisdição que não entrega respostas adequadas transforma o processo judicial em um ritual vazio, enfraquecendo sua legitimidade e credibilidade. Soma-se a isso uma questão preocupante: a excessiva valorização de critérios quantitativos na avaliação da atividade jurisdicional em detrimento da análise qualitativa das decisões proferidas, comprometendo a confiança da sociedade no sistema de justiça.
A incompatibilidade entre decisões genéricas e o artigo 489 do CPC
O artigo 489, § 1º, do CPC, é claro ao dispor que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que:
– Limite-se a invocar ato normativo sem explicar sua relação com a causa (§ 1º, inciso I);
– Empregue conceitos jurídicos indeterminados sem aplicá-los no caso concreto (§ 1º, inciso II); ou
– Deixe de enfrentar os argumentos capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão (§ 1º, inciso IV).
Apesar dessas diretrizes, os embargos de declaração continuam a ser julgados com base em fórmulas genéricas, como: “Não há omissão, contradição ou obscuridade a ser sanada” ou “O que pretende a parte é apenas rediscutir a decisão embargada”, sem que o magistrado efetivamente analise as alegações do embargante. Essa prática representa uma afronta direta ao CPC, comprometendo não apenas o direito à fundamentação adequada, mas também a lógica dialética do processo.
Decisões nesse sentido são nulas por ausência de fundamentação, e além de violar ao artigo 489, §1º do CPC, violam também o artigo 93, IX da Constituição, que consigna que “IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (…)”.

Sobre o tema, ensinam os professores Marinoni, Arenhart e Mitidiero [1] que “Se a fundamentação é redigida de tal maneira que se presta a justificar qualquer decisão, então se considera que inexiste fundamentação”.
Na mesma lógica se pode afirmar que decisão que se presta fundamentar qualquer decisão, na verdade, não se presta a fundamentar decisão alguma.
Decisões genéricas não devem e não podem produzir efeito jurídico algum no universo processual. É uma prática que precisa ser revista com urgência pelos detentores da jurisdição, que devem estar conscientes e aplicar na prática os compromissos institucionais e constitucionais assumidos quando da investidura no cargo.
O impacto filosófico e teleológico: justiça sem efetividade é apenas processo
Sob uma perspectiva filosófica, a ausência de fundamentação efetiva nas decisões judiciais viola o princípio da dignidade da pessoa humana, pois desconsidera o jurisdicionado como sujeito de direitos. Uma decisão genérica ignora o esforço das partes em apresentar seus argumentos e mina a confiança no sistema de justiça.
Teleologicamente, o processo deve ser um meio para a realização da justiça, e não um fim em si mesmo. Decisões que não enfrentam adequadamente os embargos de declaração transformam o processo em um mecanismo ineficaz, onde a forma se sobrepõe ao conteúdo.
Como já alertava Carnelutti, o processo deve ser um instrumento para a pacificação social. Quando falha em entregar respostas efetivas, ele apenas perpetua o conflito, aumentando a sensação de injustiça.
A obsessão pelos números: decisões quantitativas versus qualidade da jurisdição
Um fator que contribui para a perpetuação das decisões genéricas é a pressão sobre as(os) magistradas(os) para atender a metas baseadas exclusivamente no número de processos julgados. Programas de qualificação, como o “Selo Justiça em Números” promovido pelo CNJ, priorizam indicadores quantitativos, como o tempo médio de tramitação e o número de decisões proferidas, em detrimento da qualidade das decisões e da efetiva solução dos conflitos.
A advocacia tem observado que muitos tribunais conquistam os mais altos selos de qualificação baseados nesses indicadores predominantemente numéricos. No entanto, a experiência prática dos advogados, que lidam diretamente com as partes, demonstra que tais selos nem sempre refletem a qualidade do serviço judicial prestado ou a satisfação dos jurisdicionados.
Uma decisão genérica, que não enfrenta os argumentos das partes, pode ser contabilizada como julgamento, mas não contribui para a pacificação social nem para a construção de um precedente jurídico sólido.
A desconexão entre os critérios adotados para a qualificação institucional e a percepção da sociedade evidencia a necessidade urgente de uma revisão desses parâmetros, incluindo a análise qualitativa das decisões. Aspectos como clareza, profundidade, efetividade e impacto real na solução dos litígios devem ser considerados.
Afinal, uma justiça que se preocupa mais com números do que com resultados concretos corre o risco de deslegitimar sua função primordial: assegurar a entrega de uma tutela jurisdicional justa, tempestiva e eficiente.
Conclusão
A prática de decisões genéricas no julgamento dos embargos de declaração é incompatível com o espírito do CPC de 2015, que valoriza a fundamentação adequada e a entrega de respostas efetivas ao jurisdicionado. Essa conduta, além de violar o artigo 489, compromete a credibilidade do Poder Judiciário e a efetividade da jurisdição. E, a propósito, a confiança e percepção social a respeito do Judiciário não vive o seu melhor momento.
Para superar essa problemática, é imprescindível que sejam adotadas políticas públicas que valorizem a qualidade das decisões judiciais, promovendo a formação continuada de magistrados e a revisão dos critérios de avaliação institucional. Afinal, uma justiça sem efetividade é apenas processo, e o processo sem justiça é apenas um sistema burocrático vazio de significado.
[1] In Código de processo civil comentado. 4 ed. São Paulo, 2018, e-book.
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