City Of Grants Pass v. Johnson na Scotus: uma análise necessária para o Brasil
14 de fevereiro de 2025, 6h34
Recentemente, aparecem nas redes sociais vídeos de prefeitos municipais brasileiros conversando com população em situação de rua dizendo frases do tipo: “você não tem o direito de habitar esta área pública” e informando que a cidade tem política de abrigo. Se retirada uma frases destas do conteúdo integral do que foi falado, estaria o prefeito sendo acusado de higienismo social. Aliás, os comentários são neste sentido em boa parte dos vídeos. Também teria ocorrido o caso de uma interação menos hábil, de uma pessoa aparentemente conduzindo morador em situação de rua para “capinar um lote”. O que é forma bem diversa de se tratar um problema social complexo. O debate se repete infinitamente. Não é novo. Vem de longa data, sempre tratado com maniqueísmo.

Nada como o humor para mostrar certos problemas. Jô Soares, humorista genial, tinha um personagem que era um mafioso que veio morar no Brasil. O bordão do personagem era “não manda a máfia pro Brasil, que o Brasil esculhamba a máfia”. Mais ou menos isso ocorre com os tema de alta complexidade: não manda para o Brasil, que vamos mediocrizar o debate, transformando numa relação binária de baixa estatura. Ou, como foi cunhado recentemente: vai virar “um debate Fla x Flu”.
De um lado, os extremos de quem quer “combater” a população de rua, como se o simples estar na rua fosse decorrência uma culpa. Do outro lado, o defensores de um verdadeiro “direito subjetivo de morar na rua”, negando a possibilidade de as cidades terem suas políticas de abrigamento e de reinserção social e familiar, com respeito à dignidade humana.
Não há santos nos extremos. E sim, os supostos bons-mocismos não estão imunes a erros, apesar de estarem sacralizados na imprensa, especialmente. Quando se questiona um “bom-moço” que foi canonizado, você se torna um herege, pouco importam as razões de seu argumento ou os fatos.
Voluntariedade x involuntariedade: o Brasil não discute
O que é muito comum no Brasil é confundir tudo que não seja a licenciosidade absoluta como sendo violação de direitos. É preciso separar o joio do trigo. Pode haver cidades que não têm políticas de abrigamento para a população em situação de rua. E, pior, pode haver cidades que, além de não terem políticas sociais para a população em situação de rua, ainda usa de um tratamento feito com base na força bruta, na violência. O famoso, “bota-fora”. Estas hipóteses são de cidades criminosas. Ponto. Não tem como tratar de outro jeito. São práticas ilícitas. Olhemos por qualquer espectro político (seja você de direita ou de esquerda), o tratamento da população sem teto com práticas como o antigo “bota-fora” deve ser algo repugnante.
Mas — separando o joio do trigo — é preciso definir se uma cidade, dentro da lei, tendo todas as políticas sociais ativas, com plena capacidade de acolhimento, de abrigamento para a população em situação de rua, pode ter esse atendimento obstaculizado por um “direito pessoal” daquela população. Haveria um direito subjetivo de morar na rua oponível ao poder público, mesmo na presença das melhores políticas públicas de abrigamento? Em boa parte dos casos é disso que se trata. E, maliciosamente, confundem-se as hipóteses tratando tudo num mesmo balaio.
A malícia não é aleatória. Ela tem uma função política. É método.

Na presença de políticas públicas de abrigamento e acolhida com qualidade, com respeito à dignidade humana, é preciso definir se há um “direito pessoal de se manter morando na rua”. E isso envolve, sim, ponderar questões de saúde, higiene pessoal, segurança, proteção a menores, às mulheres, ao idosos, à prevenção ao consumo de álcool e drogas, e assim por diante. A cada linha o problema se torna mais e mais complexo.
Ouso colocar uma ponderação: não, não existe um direito fundamental de morar em vias e logradouros públicos. Manter as pessoas nestas condições não contribui para a dignidade, o que seria o argumento predileto de alguns líderes religiosos e políticos. Nessas horas lembro sempre da frase: “quem nos salva da bondade dos bons?” Ou, como referiu C.S. Lewis, dos bons-moços que nos impões sua moral podem até “ser mais propensos a ir para o céu, mas, ao mesmo tempo mais propensos a fazer da terra um inferno”.
Problemas complexos não podem ser tratados com argumentos simplórios. Muito menos com argumento corrompidos pela má-fé argumentativa e pelo maniqueísmo, levando a um reducionismo malicioso. Ou, como diria Schopenhauer, com uso de meros estratagemas argumentativos que nem sempre se ocupam de olhar a verdade.
O caso City of Grants Pass v. Johnson
Recentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu um caso que muito nos ajudaria a compreender o tema. Em City of Grants Pass v. Johnson, a Suprema Corte debateu o problema da população sem teto (homelessness).
Grants Pass, uma cidade com cerca de 38 mil pessoas, sendo que aproximadamente 600 delas estejam sem abrigo formal (sem teto). Como muitos governos Grants Pass possui leis sobre acampamentos públicos que restringem acampamentos em propriedades públicas. O Código Municipal do Grants Pass proíbe atividades como acampar em propriedade pública ou estacionar durante a noite nos parques da cidade. As violações iniciais podem gerar multa, enquanto múltiplas violações podem resultar em prisão.
Em outro processo (caso Martin v. Boise), o Tribunal Federal do Nono Circuito considerou que a Oitava Emenda veda punições cruéis e incomuns e por isso proibiria as cidades de aplicar leis de acampamento público como essas contra moradores de rua sempre que o número de indivíduos sem-abrigo numa jurisdição exceder o número de camas de abrigo “disponíveis” na prática.
Para os efeitos deste artigo não vamos sequer adiante. Aqui está o ponto. Separar o joio do trigo como fizeram os tribunais americanos.
Se uma cidade americana tiver condições de acolhimento e abrigamento na prática, ou seja, não apenas meramente prevista em lei (mas uma capacidade efetiva!), e se houver condições adequadas de abrigamento, em número suficiente para atender a todos que necessitam, não se entende a fiscalização do uso de espaços públicos como sendo “cruel ou incomum”.
Ao estilo da Suprema Corte, a conclusão da “ementa” traz um parágrafo esclarecedor, com um texto acessível não apenas aos juristas e pessoas com alta formação acadêmica, mas, à compreensão do povo! A Suprema Corte usa essas frases de efeito, de fácil compreensão, tipo frase de para-choque de caminhão. Explica aquele tribunal que a “falta de moradia e a condição de situação de rua são questões complexas, sendo inúmeras as suas causas. O mesmo pode acontecer com as respostas de políticas públicas necessárias para enfrentá-lo”. Em suma, não existem respostas fáceis, nem respostas únicas, muito menos óbvias. E decidiu o Tribunal Supremo americano: “A questão o caso apresenta é se a Oitava Emenda concede aos juízes federais a responsabilidade primária de avaliar essas causas e elaborar essas respostas. Um punhado de juízes federais não consegue “igualar” a sabedoria coletiva que o povo americano possui ao decidir “qual a melhor forma de agir e lidar” com uma questão social urgente como a falta de moradia. A Oitava Emenda da Constituição desempenha muitas funções importantes, mas não autoriza os juízes federais a arrancar esses direitos e responsabilidades ao povo americano e, em seu lugar, ditar a política desta nação para os sem-abrigo.”
Seria possível que o representante eleito local, equilibrando a realidade local, é quem poderá fazer o melhor julgamento. Caberá aos tribunais aquilatar ilegalidades, quando o município não apresentar, como dito antes, número de camas de abrigo “disponíveis” na prática.
Conclusão
Diante das razões acima, é possível ver como o Poder Judiciário americano realiza duas operações que, no Brasil, parecem um tanto quanto distantes:
A primeira: separa as hipóteses — totalmente distintas — de um caso de “involuntary homelessness“, ou seja, de uma situação na qual estejam os cidadãos por falta de políticas adequadas de abrigamento; de outras situações como aquelas onde as cidades disponham de abrigamento adequado, ou acolhimento familiar. Apenas no último caso a noção de uma sanção “degradante”, “cruel” ou “incomum” estaria presente quando as cidades buscam atuar ativamente — e não passivamente — na questão da população de rua.
A segunda: que de toda forma melhor seriam os temas complexos resolvidos pelos representantes eleitos. Caberia ao Judiciário a substitutividade de ilícitos, e não a escolha entre duas ou mais soluções legítimas.
Está longe o Brasil de ter o respeito pela separação de poderes que impera no sistema jurídico norte-americano.
Talvez com essa nova abordagem como a do prefeito que aparece em vídeo oferecendo os serviços de abrigamento e reinserção social e familiar, sem truculência, a situação possa ter novo rumo no Brasil.
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