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Regulação cripto (parte 2): Consulta BCB 110/2024

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  • é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

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12 de fevereiro de 2025, 10h19

Após comentar a Consulta Pública BCB 109/2024 em coluna anterior, procuro descrever outra consulta, divulgada simultaneamente pelo Banco Central, referente ao processo de autorização para a atuação como prestadora de serviços de ativos virtuais (PSAV) no Brasil. Trata-se da Consulta Pública BCB 110/2024.

O processo de regulamentação decorre da delegação de poder normativo ao Banco Central estabelecido pela Lei nº 14.478/2022. Além de cumprir determinados requisitos — estrutura de governança, deveres, normas de conduta — e se sujeitarem a fiscalizações e ao regime sancionador do BC, as empresas que prestam serviços de ativos virtuais deverão se submeter ao processo proposto, que abrange também as sociedades corretoras de câmbio e as corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários (CTVM e DTVM) e segue a tradição normativa de outros procedimentos similares, como é o caso das instituições de pagamento (Resolução BCB nº 103/2021) e das demais instituições financeiras (Resolução CMN nº 4.970, de 2021).

Conforme página específica do Banco Central, as instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional (SFN), o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e o Sistema de Consórcios devem obter autorização segundo regras emanadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo próprio Banco Central. Nesse procedimento, os documentos devem ser enviados pelo Protocolo Digital, conforme a Instrução Normativa BCB nº 77/2021.

O detalhamento operacional pode ser encontrado no Manual de Organização do Sistema Financeiro (Sisorf). O Sisorf é o “melhor amigo” de quem está à frente desta atividade e, por isso, na referida página do Banco Central, encontramos a indicação da seção do SISORF referente a cada tipo de instituição regulada pela autarquia. Ainda que os regimes de cada uma sejam diferentes, é recomendável navegar por este conteúdo para compreender a dinâmica do procedimento.

Regra de transição

Inicialmente, é preciso destacar que haverá uma regra de transição para permitir que as empresas que já atuam no setor possam obter a autorização, de modo que só deverão encerrar suas atividades diante da negativa justificada do Banco Central. É possível que tenhamos algo parecido com o que ocorreu no passado recente com as “bets”, quando o Ministério da Fazenda divulgou uma lista com aquelas que poderiam continuar a funcionar e solicitou o bloqueio do acesso aos sites das demais.

Na fase inicial, a PSAV deverá comprovar que iniciou suas atividades até a data em que a Resolução foi publicada e que atende os requisitos de capital e patrimônio líquido mínimos, devendo apresentar, para isso, demonstrações financeiras auditadas. Além disso, deve prestar informações sobre seus controladores, seu contato responsável, os tipos de serviços prestados e tamanho das operações.

Parâmetros da análise do BC

Para conceder a autorização, o Banco Central possui certo grau de discricionariedade para analisar alguns requisitos que destoam de um exame meramente formal. O solicitante deve apresentar alguns parâmetros acerca da natureza e do porte da empresa, da complexidade e do risco do negócio, que servirão de baliza para aferir a compatibilidade da estrutura de governança corporativa e da infraestrutura de tecnologia de informação apresentadas, bem como da viabilidade econômico-financeira do empreendimento.

Um ponto importante é o dever de elaborar e manter à disposição do Banco Central um plano de negócios, cuja apresentação pode ser exigida durante o procedimento. Dentre outras faculdades discricionárias, o Banco Central pode exigir certificação técnica emitida por empresa qualificada independente para comprovar a compatibilidade da infraestrutura de tecnologia de informação com o risco e complexidade do negócio e, ainda, analisar o “lucro recorrente realizado nos últimos cinco anos e outras situações” relativas à gestão financeira da solicitante.

São requisitos fundamentais para o pedido a comprovação (1) da capacidade econômico-financeira dos controladores e (2) da origem lícita dos recursos utilizados para integralizar o capital social (ou adquirir o controle ou participação) na sociedade pleiteante.

Além de aspectos econômicos, é preciso comprovar (1) a reputação ilibada dos administradores, dos controladores e dos detentores de participação qualificada, no caso de pessoas naturais; (2) a capacitação técnica dos administradores, compatível com as funções a serem exercidas no curso do mandato; e (3) conhecimento, pela administração do ramo do negócio, da prestação de serviços a ser realizada e do segmento em que a instituição pretende operar, da dinâmica de mercado e das fontes de recursos operacionais, do gerenciamento das atividades e dos riscos a elas associados.

Na comprovação de reputação ilibada, além da análise de processos criminais ou inquéritos policiais, de processos judiciais ou administrativos com relação ao SFN e ao SPB, de processos de insolvência, liquidação, intervenção, falência ou recuperação judicial, são consideradas situações de “inadimplemento de obrigações” (ou seja, certos tipos de devedores em execução) e “outras situações, ocorrências ou circunstâncias análogas”.

Os administradores devem ser residentes no Brasil para os cargos de direção. Ademais, não devem estar declarados falidos ou insolventes, nem devem estar impedidos de exercer a função por lei especial nem terem sido condenados por um conjunto abrangente de crimes trazidos na norma proposta.

Spacca

A norma estabelece que o Banco Central pode, a fim de examinar o cumprimento dos requisitos, acessar informações em qualquer sistema público ou privado de cadastro e informações, inclusive processos e procedimentos judiciais ou administrativos e inquéritos policiais, bem como solicitar declarações à Receita Federal relativas aos três últimos exercícios fiscais.

As exigências e barreiras de entrada são estabelecidas com vistas à preservação da integridade do Sistema Financeiro Nacional.

Controle e participação qualificada

O controlador, seja ele isolado ou em conjunto (grupo de controle por meio de acordo de sócios), é um centro de imputação de responsabilidades em processos sancionadores e regimes especiais de insolvência e liquidação. Por isso, há verdadeira obsessão pela sua capacidade econômico-financeira, de modo a mitigar o risco de que a instituição que pede autorização venha a comprometer a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional por não honrar suas obrigações.

O exame da estrutura de controle se dá até o último nível de uma cadeia de controle indireto. A identificação do controle se dá com base em evidências formais e fáticas, podendo ser considerado o teor de eventual acordo de sócios, a efetividade na condução dos negócios sociais, a maioria de votos em deliberações e o poder de eleger a maioria dos administradores.

Seguindo a tradição das demais normas de autorização, o Banco Central considera no último nível de ramo da cadeia de controle da instituição, nos casos de participação direta ou indireta, a instituição financeira ou assemelhada sediada no exterior responsável pela consolidação global do grupo financeiro.

Em termos práticos, é usual encontrarmos uma holding financeira na qual se dá esta consolidação, uma vez que a norma também estabelece que o controle direto só pode ser exercido por (1) pessoas naturais; (2) instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central; (3) instituições financeiras ou assemelhadas sediadas no exterior ou (4) pessoas jurídicas sediadas no Brasil que tenham por objeto social exclusivo a participação societária em instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central.

Além disso, há interesse na chamada “participação qualificada”, que é a pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento que, não sendo controlador nem integrante de cadeia de controle, detenha (1) 15% ou mais do capital votante da instituição, de controlador ou de integrante da cadeia de controle; (2) 10% ou mais do capital total, quando esse capital não consistir integralmente de capital votante, da instituição, de controlador ou de integrante da cadeia de controle; (3) controle participação no capital de pessoa jurídica controladora de pessoa jurídica que detenha um dos dois percentuais anteriormente referidos.

A norma proposta dispõe que não são admitidos fundos de investimento como controladores ou integrantes de grupo de controle de PSAVs. Porém um fundo de investimento pode deter participação qualificada, atributo que poderá ser extensível a seus cotistas em certas hipóteses.

Pontos de atenção adicionais

Se a sociedade pleiteante for constituída sob a forma de sociedade limitada deve prever, em seu contrato social, a observância supletiva da Lei nº 6.404/1976, inclusive no que diz respeito à retenção de lucros e à constituição, à reversão e à utilização de reservas e, ainda, prever que o mandato dos administradores será por prazo determinado não superior a quatro anos.

Na fase final do procedimento, o Banco Central divulga ao público em geral, de modo a colher manifestações e objeções, certas informações sobre a instituição pleiteante, especialmente quem são seus controladores e os eleitos ou nomeados para os cargos de administração.

Por fim, o Banco Central poderá realizar inspeção pré-operacional na entidade interessada, a fim de avaliar a compatibilidade entre a estrutura organizacional implementada e os requisitos previstos. Se, após concedido prazo para correção, as exigências não forem atendidas, o pedido de autorização será indeferido. Ainda, o Banco Central pode requisitar documentos e informações adicionais e até mesmo convocar para entrevista os controladores, detentores de participação qualificada e os administradores.

Além da autorização para funcionamento, o Banco Central deverá autorizar (1) a posse e o exercício de eleitos ou nomeados para cargos de administração; (2) operações de transferência ou alteração do controle societário, fusão, cisão ou incorporação; (3) transformação societária; (4) alteração de valor do capital social (exceto se os recursos forem provenientes de lucros acumulados, reservas de capital e de lucros e créditos a acionistas a título de remuneração de capital); (5) mudança de denominação social; (6) atuação em nova modalidade de prestação de serviços de ativos virtuais; (7) situações de mudança de natureza estratégica ou operacional e (viii) mudança de objeto social para algum tipo de instituição integrante do Sistema Financeiro Nacional.

A Resolução BCB nº 317/2023 traz os prazos para o deferimento da autorização, o qual deve ser de, no máximo, 360 dias, para as PSAV, pois este é o prazo atual para corretoras de câmbio, CTVM e DTVM, tratadas na mesma consulta pública.

Os prazos para manifestação foram prorrogados se encerram em 28/02/2025. No próximo texto, descreverei a Consulta Pública relativa à emissão de stablecoins. Fique à vontade para enviar comentários e críticas nas minhas redes sociais. Obrigado pela leitura!

Autores

  • é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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