O papel do Carf após a reforma tributária: uma análise a partir da figura do comitê gestor
12 de fevereiro de 2025, 8h00
A reforma tributária já é uma realidade em nosso país e mais um importante passo para a sua implementação prática se deu recentemente, com a promulgação da Lei Complementar nº 214, em 16 de janeiro de 2025, responsável por instituir o IBS, a CBS, o Imposto Seletivo e, ainda, por criar o Comitê Gestor do IBS.
Como vem sendo amplamente divulgado, a reforma sobre o consumo se deu em torno da existência de um IVA dual [1], cabendo ao IBS, de competência dos estados, DF e municípios, substituir o ISS e o ICMS, e à CBS, de competência da União, a função de substituir o PIS e a Cofins [2].
Um dos pontos cruciais da reforma, em especial para atender o valor simplicidade, alçado ao status de princípio constitucional [3] e tão almejado pelos reformistas, foi o de unificar esses dois tributos (IBS e CBS) em torno de normas comuns. Daí tais exações apresentarem não só o mesmo fato gerador e a mesma base de cálculo, mas também os mesmos sujeitos passivos, hipóteses de não incidência, imunidades, regras de não cumulatividade e creditamento etc.
Essa unicidade legislativa, todavia, não é garantia de que tais exações estarão imunes a interpretações divergentes no âmbito da sua realização prática, seja por parte dos diferentes entes tributantes, seja pelos correspondentes tribunais (administrativos e judiciais) que analisarão os conflitos de interesses daí resultantes.
É diante desse cenário que se questiona qual será o papel do Carf após a efetiva implementação da reforma tributária, com especial enfoque na sua relação com um dos principais órgãos (talvez o principal) criado com a reforma: o Comitê Gestor do IBS.
Comitê Gestor e sua função uniformizadora no sistema tributário pós-reforma
Fazendo uma busca pela expressão “Comitê Gestor do IBS” na Lei Complementar 214/2025, é possível encontrá-la 111 vezes ao longo da legislação. É claro que não é a repetição dessa expressão que implica a relevância do citado órgão, mas sim as funções/competências a ele atribuídas pelo legislador [4]. E dentre essas inúmeras funções, a que será aqui destacada é aquela chamada de “harmonização do IBS e da CBS”, prevista no artigo 318 e s.s da Lei Complementar nº 214/2025, em que o “Comitê Gestor do IBS, a RFB e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional atuarão com vistas a harmonizar normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos relativos ao IBS e à CBS.”
Essa harmonização, em especial a interpretativa, é relevante, considerando, como visto acima, a multiplicidade de entes tributantes, não só com competência tributária para o IBS/CBS, mas também com capacidade tributária ativa [5], o que pressupõe competência para fiscalização e constituição do crédito tributário, nos termos do artigo 324, incisos I e II, da Lei Complementar nº 214/2025 [6].
Apesar de um desenho legislativo comum, é óbvio que, no âmbito fiscalizatório, os múltiplos agentes fiscais podem apresentar interpretações distintas para uma mesma situação fática sujeita ao IBS/CBS, redundando em insegurança jurídica e, por conseguinte, em uma complexidade contrária ao já citado valor “simplicidade”.
Daí a Lei Complementar n. 214/2025 prever um Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, composto por quatro representantes da Receita Federal do Brasil e quatro representantes do Comitê Gestor do IBS, sendo dois dos Estados ou do DF e dois dos municípios ou do DF e, ainda, um Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, com quatro representantes da PGFN e quatro representantes das procuradorias, indicados pelo Comitê Gestor do IBS, sendo dois procuradores de Estado ou do DF e dois procuradores de municípios ou do DF.
O Fórum de Harmonização atuará como um órgão consultivo do Comitê de Harmonização para fins de uniformização e interpretação das normas relativas ao IBS e à CBS, a quem competirá sedimentar a regulamentação e a interpretação de tais exações.
Como desdobramento dessas competências, tais órgãos (Fórum de Harmonização e Comitê de Harmonização) poderão veicular atos conjuntos que, a partir da sua publicação, deverão ser observados pelas administrações tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e procuradorias dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Considerando que o Carf é órgão integrante da Administração Pública Federal, vinculado ao Ministério da Fazenda, resta claro que os atos conjuntos a serem exarados pelo Fórum de Harmonização e pelo Comitê de Harmonização vincularão também o Carf, surgindo aí um questionamento a respeito do papel desse Tribunal Administrativo após a implementação da reforma tributária.
O papel do Carf pós-reforma
Como já amplamente noticiado, um dos papéis do Carf pós-reforma tributária será o de promover o julgamento de lides administrativas que versem a respeito da CBS. A 3ª Seção, competente para julgamento do PIS e da Cofins, absorverá essa nova função. A questão, todavia, que merece reflexão é outra.

Considerando o papel atribuído ao Fórum de Harmonização e ao Comitê de Harmonização, a função atribuída ao Carf de julgar demandas administrativas relativas à CBS poderá restar esvaziada, em razão da sobreposição de atos normativos a serem exarados por tais órgãos e que, como visto, vincularão o Carf.
Importante registrar que, nos termos da Lei Complementar nº 214/2025, não há a previsão de uma integração direta entre o Carf e o Fórum e o Comitê de Harmonização, já que esses órgãos não atuarão como uma nova instância julgadora no âmbito administrativo. Logo, atos normativos dos órgãos uniformizadores não poderão revisitar decisões administrativas veiculadas pelo Carf em sentido adverso, que já tenham transitado em julgado no âmbito administrativo.
Entretanto, para casos pendentes de julgamento no Carf, os atos conjuntos a serem veiculados pelos canais de uniformização do IBS e da CBS terão impacto direto no tribunal, vinculando os seus julgadores, o que implicará, ainda que parcialmente, o esvaziamento de competência desse órgão julgador. E isso será feito em razão da manifestação de um órgão que, como visto acima, contará apenas com a presença de representantes estatais, sem qualquer participação de integrantes da sociedade civil.
É bem verdade que algo similar já existe no plano legislativo federal, considerando que pareceres do advogado-geral da União e da Consultoria-Geral da União, quando aprovados pelo presidente da República e publicados, também vinculam a Administração Pública Federal (inclusive o Carf), nos termos dos artigos 40, §1º, e 41, ambos da Lei Complementar nº 73/93 [7] O mesmo se dá com os pareceres das Consultorias Jurídicas aprovados por um ministro de Estado, nos termos do artigo 42 da citada lei complementar [8]. Acontece que, referida disposição normativa foi veiculada em outro momento histórico, quando ainda pouco se falava em cooperação, valor esse também alçado ao status de princípio constitucional com a Emenda Constitucional nº 132/2023, nos termos do já citado artigo 145, 3º, da Constituição.
Assim, passados mais de 30 anos de referida disposição normativa e considerando o atual contexto da reforma, não seria o caso de um órgão da relevância do Comitê Gestor do IBS também contar com a participação de integrantes da sociedade civil? Os sujeitos passivos dessas exações, destinatários das normas tributárias e obrigações acessórias referentes ao IBS e à CBS, não teriam direito de cooperar democraticamente com a construção das normas que terão que cumprir?
Conclusões
Percebe-se, portanto, que em relação ao IBS e à CBS a atuação do Carf – órgão de representação paritária e cujos julgadores desempenham seu mister de forma imparcial – será restringida diante de atos normativos conjuntos a serem expedidos pelo Fórum de Harmonização e pelo Comitê de Harmonização, que, por sua vez, contam apenas com a participação de representantes estatais.
A inegável perda com esse déficit de representação por parte da sociedade civil deve ser objeto de questionamentos, de modo que representantes dos contribuintes também tenham assento nos órgãos de uniformização do Comitê Gestor, para que democraticamente possam cooperar com o novo sistema tributário que se fará presente em curto espaço de tempo.
A secular relevância de um órgão paritário como o Carf para a realização em concreto de justiça fiscal é exemplo mais do que suficiente para justificar a presença da sociedade civil nos órgãos de uniformização do Comitê Gestor.
[1] Afastou-se, por sua vez, a hipótese de um IVA único, como sugerido em alguns debates iniciais a respeito da reforma.
[2] Em alguma medida, o Imposto Seletivo fará as vezes do atual IPI. Para maior aprofundamento a respeito desse novo imposto: ANDRADE, José Maria Arruda de. Imposto seletivo e pecado: juízos críticos sobre tributação saudável. São Paulo: IBDT, 2024.
[3] Nos termos do art. 145, 3º, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 145 (…).
3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.
[4] Diante da relevância do Comitê, Igor Mauler trata esse órgão como uma “super instância”. Nesse sentido: Reforma terá impacto também no contencioso administrativo. Consultado em 10.02.2025.
[5] Promovendo a distinção entre competência tributária e capacidade tributária ativa, Paulo de Barros Carvalho professa que uma coisa é poder legislar, desenhando o perfil jurídico de um gravame ou regulando os expedientes necessários à sua funcionalidade; outra é reunir credenciais para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. (In: Curso de Direito Tributário. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 268.).
[6] Art. 324. A fiscalização do cumprimento das obrigações tributárias principais e acessórias, bem como a constituição do crédito tributário relativo:
I – à CBS compete à autoridade fiscal integrante da administração tributária da União;
II – ao IBS compete às autoridades fiscais integrantes das administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
[7] Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República.1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento.
Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República.
[8] Art. 42. Os pareceres das Consultorias Jurídicas, aprovados pelo Ministro de Estado, pelo Secretário-Geral e pelos titulares das demais Secretarias da Presidência da República ou pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, obrigam, também, os respectivos órgãos autônomos e entidades vinculadas.
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