Inconformismo da Fazenda: novos capítulos da exclusão dos créditos presumidos de ICMS
12 de fevereiro de 2025, 9h20
O debate sobre a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS é um dos temas mais polêmicos do direito tributário contemporâneo, gerando intensos debates entre contribuintes e a Fazenda Nacional ao longo dos últimos anos.

Mesmo após os julgamentos do EREsp 1.517.492/PR e do Tema Repetitivo nº 1.182, que, ao nosso ver, consolidaram a tese da exclusão dos créditos presumidos das bases do IRPJ e da CSLL, a Fazenda Nacional segue resistindo à sua aplicação, persistindo na tentativa de tributar esses valores e reformar o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça.
No entanto, essa resistência não tem se limitado à contestação judicial da tese já consolidada pela jurisprudência, ou seja, à discussão sobre a possibilidade de incidência dos tributos federais sobre esses créditos. Na tentativa de reverter o entendimento do STJ “a qualquer custo”, a Fazenda Nacional tem promovido novas controvérsias, reinterpretando a própria natureza jurídica dos créditos presumidos e gerando um descompasso dentro da própria administração tributária federal.
Jurisprudência do STJ: EREsp 1.517.492/PR e Tema nº 1.182/STJ
O marco inicial da consolidação do entendimento sobre a não incidência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS foi dado pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 8 de novembro de 2017, ao julgar os Embargos de Divergência no Recurso Especial n. 1.517.492/PR, sob a relatoria da ministra Regina Helena Costa.
Nesse julgamento, o Tribunal reconheceu que a tentativa de tributar esses valores violaria o pacto federativo, configurando intromissão da União na política fiscal dos Estados-Membros.
Em adição, amparado na ratio decidendi do julgamento RE nº 574.706/PR pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, a Corte Superior afastou a pretensão da Fazenda Nacional de caracterização dos créditos presumidos como renda ou lucro.
Desde então, a jurisprudência da 1ª e 2ª Turma do STJ [1] vem se firmando no sentido de que tais créditos não representam lucro ou acréscimo patrimonial e, portanto, não podem ser tributados, ratificando que além da violação ao pacto federativo, a tributação dos créditos presumidos de ICMS pelo do IRPJ e pela CSLL, fere a própria materialidade da hipótese de incidência de tais exações.
No julgamento do Tema nº 1.182 dos recursos repetitivos, ainda que indiretamente, o tema foi revisitado pela 1ª Seção do STJ, conforme se vê do próprio texto do acórdão:
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em sede de embargos de divergência, teve a oportunidade de discutir uma dentre as espécies do gênero ‘benefícios fiscais’. Por ocasião do julgamento dos ERESP 1.517.492/PR, a Primeira Seção entendeu que a espécie de favor fiscal de ‘crédito presumido’ não estará incluída na base de cálculo do IRPJ e da CSLL. (…) O objeto deste repetitivo consiste em investigar se os fundamentos determinantes para a conclusão adotada no ERESP 1.517.492/PR se aplicam aos demais benefícios fiscais de ICMS.
O acórdão também destacou a peculiaridade dos créditos presumidos em relação aos demais benefícios fiscais:
Dadas as características da não-cumulatividade adotada no sistema tributário brasileiro, a atribuição do crédito presumido tem peculiaridades que apartam esse benefício daqueles outros que não representam a atribuição de crédito, mas a desoneração (isenção, redução de base de cálculo, dentre outros).
Por fim, a tese firmada, que definiu que os demais benefícios fiscais do ICMS só poderão ser excluídos da base do IRPJ e da CSLL se houver comprovação do atendimento das exigências da legislação federal, também fez referência expressa de que o entendimento firmado no EREsp 1.517.492/PR excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL:
- Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS, – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (art. 10, da Lei Complementar n. 160/2017 e art. 30, da Lei n. 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no ERESP 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. (…)
Com a decisão, ao nosso ver, o STJ consolidou dois entendimentos distintos: (i) reafirmou a exclusão dos créditos presumidos de ICMS da tributação federal e, ao mesmo tempo, (ii) determinou que a exclusão dos demais benefícios fiscais exige a observância dos requisitos legais.
Inconformismo da Fazenda Nacional e insegurança jurídica
Apesar do cenário já consolidado, a Fazenda continua tentando reverter a posição do STJ quanto à exclusão dos créditos presumidos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Tal estratégia tem como pano de fundo a interpretação de que o EREsp 1.517.492/PR não foi julgado como precedente vinculante, nos termos dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil, bem como que tal tema não estava afetado no Tema Repetitivo nº 1.182, o que, por essa ótica, permitiria a discussão ad aeternum da controvérsia nos tribunais.
Seguindo essa linha, os argumentos utilizados pela Fazenda na tentativa de minar o entendimento jurisprudencial favorável aos contribuintes vêm sendo elaborados com uma criatividade surpreendente.
Dentre os artifícios adotados, a Fazenda Nacional tem sustentado que aos créditos presumidos se aplicaria a tese firmada no Tema nº 1.082 — expressamente afastada pela própria tese —, que tais créditos não possuem natureza de subvenções para investimento e, ainda, que a revogação do artigo 30 da Lei 12.973/2014 pela Lei nº 14.789/2023 teria afastado a possibilidade de exclusão dos créditos presumidos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. No entanto, todas essas teses acabam, de uma forma ou outra, superadas pelos precedentes do STJ anteriormente citados.
Contudo, além dessas teses, recentemente, a Fazenda Nacional passou a questionar a própria natureza jurídica dos créditos presumidos, argumenta que os créditos outorgados pelos estados, quando vinculados a exigência de estorno dos créditos escriturais pelos estados, não seriam ‘créditos presumidos propriamente ditos’, em tentativa evidente de afastar tais créditos da proteção conferida pelo entendimento consolidado pelo STJ.

Em manifestação recente no processo 5004576-02.2024.4.04.7003, que trata de créditos outorgados pela legislação do estado do Paraná ao setor agroindustrial, mais especificamente a um frigorífico, com exigência de estorno dos créditos das entradas, a Fazenda Nacional ingressou no feito e defendeu a aplicação de um precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região firmado no julgamento de caso que tratava da hipótese de exclusão de créditos concedidos pelos estados ao setor de transportes com base no Convênio ICMS nº 106/1996 das bases do IRPJ e da CSLL.
Contudo, no âmbito administrativo, a natureza jurídica de tais créditos, então comparados, são tratados de formas distintas, sendo que os créditos presumidos outorgados com exigência de estorno dos créditos escriturais pelos estados, em referência no processo 5004576-02.2024.4.04.7003, são expressamente reconhecidos como incentivos fiscais.
É o que se extrai do parecer administrativo publicado pela Receita Federal na Solução de Consulta nº 12/2022 e do recente comunicado [2] publicado pelo órgão, reconhecendo expressamente a natureza de incentivo fiscal do “Crédito presumido concedido em substituição aos créditos efetivos de ICMS sobre as entradas” e sua distinção das hipóteses previstas no Convênio ICMS nº 106/1996:
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Crédito presumido concedido em substituição aos créditos efetivos de ICMS sobre as entradas
Por essa opção, o contribuinte renuncia ao seu direito aos créditos básicos pelas entradas. O benefício fiscal resultante, portanto, não é todo o crédito presumido escriturado, mas tão-somente o valor que eventualmente supera o crédito básico de ICMS que deixou de ser apropriado (inclusive porque o crédito básico estornado, ou simplesmente não escriturado, passa a integrar o custo de aquisição das mercadorias).
Nessa situação, o benefício fiscal representa a diferença entre o valor de ICMS que o contribuinte recolheria na sistemática da não cumulatividade e o valor que ele efetivamente recolheu por aderir ao regime especial.
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Crédito presumido escriturado em regime simplificado aplicável ao setor de transportes
Na hipótese do Convênio ICMS nº 106, de 1996, aplicável ao setor de
transportes, exceto aéreo, a pessoa jurídica pode optar por regime
simplificado de apuração do ICMS (…) Por esse regime, aproveita-se um crédito presumido de 20% do valor do ICMS devido na prestação em detrimento de quaisquer outros créditos, inclusive os créditos básicos de ICMS pelas entradas. Trata-se de créditos presumidos ditos “operacionais”, concedidos com a finalidade de simplificar o cumprimento das obrigações relativas à apuração do imposto. Nessa situação, a totalidade do crédito presumido de ICMS não se configura um benefício fiscal, mas somente simplifica a sistemática de apuração do imposto estatual.
Em resumo, para afastar o precedente do STJ do caso concreto, a Fazenda Nacional buscou, de forma equivocada — para não dizer ardilosa —, equiparar um “Crédito presumido concedido em substituição aos créditos efetivos de ICMS sobre as entradas” aos créditos outorgados na forma do Convênio ICMS nº 106/1996, tidos como um regime simplificado, em nítida tentativa de induzir o juízo a erro.
Essa postura do Fisco federal, ao defender judicialmente uma tese que contraria o entendimento já consolidado pela própria administração tributária — em violação aos artigos 96 e 100 do Código Tributário Nacional —, evidencia uma estratégia deliberada de litigância reiterada e resistência à pacificação do tema, revelando o claro propósito de ‘vencer a qualquer custo’.
Afetação do tema ao rito dos recursos repetitivos
Recentemente, a ministra Assusete Magalhães, presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac), qualificou os Recursos Especiais nº 2.091.200/SC, 2.099.847/SC e 2.091.206/PR como representativos da controvérsia e propôs a afetação da seguinte questão para julgamento:
“Determinar se o crédito presumido do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pode ser incluído nas bases de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).”
Na decisão, a Ministra ressaltou que a submissão dos processos ao rito dos repetitivos tem como objetivo reafirmar o entendimento firmado pela Primeira Seção, promovendo maior racionalidade aos julgamentos e, em consequência, estabilidade, coerência e integridade à jurisprudência.
No entanto, ainda não há definição sobre a efetiva afetação dos referidos Recursos Especiais ao rito dos recursos repetitivos.
A despeito de apontamentos de especialistas e advogados quanto à possibilidade de uma alteração de interpretação pelo STJ, o tema precisa ser definitivamente consolidado, pois o atual cenário gera instabilidade e insegurança jurídica, favorecendo a atuação da Fazenda Nacional em uma litigância interminável.
A ausência de um posicionamento vinculante tem permitido que a União continue questionando a tese já pacificada em diversas instâncias, fomentando um volume excessivo de disputas judiciais e sobrecarregando o Judiciário.
Outrossim, caso o STJ, ao julgar o tema, venha a modificar seu entendimento e admitir a tributação dos créditos presumidos de ICMS, estaremos diante de uma alteração jurisprudencial significativa sobre matéria pacificada há anos. Nessa hipótese, seria imprescindível que o Tribunal modulasse os efeitos da decisão, garantindo sua aplicação apenas para fatos geradores futuros, a fim de preservar a segurança jurídica e evitar impactos abruptos para os contribuintes que, até então, contavam com a não tributação desses valores.
Por outro lado, se o julgamento do tema servir para reafirmar o entendimento já consolidado de que os créditos presumidos não devem compor a base de cálculo do IRPJ e da CSLL, a decisão terá efeitos vinculantes, impedindo que a Fazenda Nacional continue prolongando essa controvérsia indefinidamente.
A litigância reiterada da União, baseada em argumentos já refutados pelo próprio STJ, não apenas desgasta a relação entre Fisco e contribuintes, mas também compromete a previsibilidade tributária e a eficiência na gestão dos processos administrativos e judiciais.
Dessa forma, mais do que simplesmente afetar a matéria ao rito dos repetitivos, é essencial que o STJ aproveite a oportunidade para colocar um ponto final na insegurança jurídica que a Fazenda Nacional tem deliberadamente alimentado, garantindo que a interpretação da Corte seja respeitada e efetivamente aplicada nas instâncias inferiores e no âmbito administrativo.
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[1] Nesse sentido: AgInt no AREsp nº 1.806.083/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 28/6/2021, DJe de 2/8/2021; AgInt no AREsp nº 1.898.563/RS, relator Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 17/12/2021; (AgInt no AgInt no REsp nº 1.709.064/RS, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, julgado em 29/4/2019, DJe de 2/5/2019.
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