TST e lei no tempo: crônica de uma tese anunciada no Tema 23
11 de fevereiro de 2025, 11h14
Nos últimos anos, muito se noticiou divergências de entendimento entre o STF e o TST, sobretudo em ações envolvendo terceirização, pejotização e outros tipos de contrato de trabalho não regidos pela CLT. Contudo, muito pouco tem se falado sobre uma decisão paradigmática proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho em coerência com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito à forma adequada de se compreender a aplicação da lei no tempo quanto se trata de mudanças de regimes jurídicos.
Assim, se a estratégia midiática de colocar os tribunais superiores em um ringue interpretativo tem, quase sempre, atraído os holofotes, nesta coluna procuramos lançar luz sobre aquilo que, se não passou despercebido, ao menos recebeu menos atenção do que deveria: uma valiosa convergência entre STF e a Justiça Trabalhista no julgamento do Tema 23 do TST.
Em Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Marques, a morte do protagonista não é revelada apenas no título, mas também, já na primeira frase da narrativa: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30 da manhã” [1]. O valor literário da obra, porém, reside, principalmente, em transformar o suposto “spoiler” em elemento próprio da narrativa, que se constrói não voltada para o (já conhecido) desfecho, mas para as circunstâncias e acontecimentos que permeiam, explicam e criam contornos de sentido e de poesia para tal revelação a partir da visão de diferentes personagens.
No direito, em uma época de temas, súmulas e teses vinculantes, muitas vezes há a percepção de que o “spoiler” (a tese fixada pelo tribunal) tornaria dispensável a leitura dos votos e discussões que embasam aquele enunciado-síntese, perdendo-se de vista a importância da fundamentação para o direito. A literatura nos ensina, todavia, que nem sempre a revelação em si é o elemento mais importante da narrativa e, muito menos, que ela é capaz de sintetizar, em um único enunciado, a beleza literária da própria obra, onde reside o seu real valor.
Nesta coluna, portanto, emprestando o título de Gabo, trataremos do Tema 23 do TST, não como uma sintética “morte anunciada”, mas como uma “crônica”, isto é, um julgamento complexo, contado por diferentes vozes (votos), e que, no fim, justificam e esclarecem o seu prenúncio.
Decisão paradigmática do TST e dignidade da legislação
Trata-se do Incidente de Julgamento de Recurso de Revista e Embargos Repetitivos nº 528-80.2018.5.14.0004, julgado pelo TST em novembro de 2024, no qual se discutiu a possibilidade e os efeitos da aplicação imediata das normas de natureza material aos contratos de trabalho que estavam em curso por ocasião da entrada em vigor da reforma trabalhista (Lei nº 13.467/17). Um dos recursos que motivou a análise pela corte envolvia decisão da 3ª Turma do TST que, por maioria, havia determinado a continuidade do pagamento das horas in itinere (revogado pela Lei nº 13.467/17) mesmo depois da entrada em vigor da reforma trabalhista, em relação a um contrato de trabalho firmado na vigência do regime jurídico anterior.
Com a submissão do caso ao Pleno e a afetação do processo como repetitivo, a corte fixou a seguinte tese (Tema 23): “A Lei 13.467 possui aplicação imediata aos contratos de trabalho em curso, passando a regular os direitos decorrentes de lei, cujos fatos geradores tenham se efetivado a partir de sua vigência.”
Porém, mais importante do que a “tese” anunciada é a discussão apresentada nos diferentes votos e que pode ser aqui sintetizada no seguinte questionamento: a aplicação imediata da reforma trabalhista aos contratos em curso viola a garantia constitucional ao direito adquirido? Há ainda um questionamento anterior: em que sentido é possível falar em direito adquirido em contratos de trabalho, que são de trato sucessivo?
O entendimento vencido, representado pelo voto divergente do ministro Maurício Godinho Delgado, sustentava que o trabalhador que estivesse submetido a um contrato de emprego firmado no período anterior a 11/11/2017, data de vigência da Lei da Reforma Trabalhista, preservaria o direito adquirido àquelas parcelas que tenham sido suprimidas pela lei.
Seguindo a divergência, o ministro José Roberto Freire Pimenta, votou no sentido de que as alterações legislativas só poderiam alcançar os contratos de trabalho firmados após sua entrada em vigor. Adotando-se a chamada “teoria subjetivista” do professor Carlo Francesco Gabba, o argumento suscitado pelo ministro foi de que a suposta retroação da lei abalaria a estabilidade e a proteção da confiança dos contratantes que entabularam o pacto sob a égide da lei anterior, da qual haveria resultado um “direito adquirido a uma situação contratual pretérita, mesmo que ainda não surtidos todos os seus efeitos ou exercidos todos os respectivos direitos”.

Por outro lado, o voto condutor do ministro relator, Aloysio Corrêa da Veiga, sustentou que a aplicação imediata da nova lei sobre os contratos de trabalho em curso é sustentada pelos artigos 6º da Lindb e 912 da própria CLT. Além disso, em coerência com a jurisprudência do Supremo, destacou que no direito brasileiro, inexiste direito adquirido a um determinado estatuto legal ou regime jurídico, como é o caso da CLT. No caso concreto a lei não estaria afetando um “verdadeiro ajuste entre as partes”, mas sim o regime jurídico imperativo que já incidia sobre elas independente de suas vontades, razão pela qual o contrato de trabalho estaria sujeito a eventuais alterações legislativas, como, no caso, a revogação do dispositivo que previa o direito ao pagamento das horas in itinere.
Percebe-se, portanto, dois pontos relevantes: o primeiro é que a discussão não tratava de aplicação retroativa, isto é, a fatos já consumados sob vigência da legislação anterior, e sim da aplicação imediata da lei nova a contratos em curso e, portanto, a efeitos pendentes e futuros, relativos a fatos que ainda não se concretizaram. O segundo refere-se ao fato de que o contrato de trabalho tem natureza de trato sucessivo ou execução continuada, caracterizado pela continuidade das prestações, a exigir uma interpretação distinta da aplicação da lei no tempo.
Nesse sentido, o voto do ministro José Dezena da Silva enfrenta exemplarmente a discussão sobre a natureza do contrato trabalhista, que ao mesmo tempo pode ser considerado um contrato de trato sucessivo, como de execução continuada, na medida em que envolve prestações contínuas e renováveis. Além disso, destacou que não obstante a pactuação do contrato de trabalho decorra de manifestação de vontade e siga os requisitos exigidos aos negócios jurídicos em geral, sua execução é condicionada por um arcabouço de normas legais que regem a prestação de trabalho no contexto da relação de emprego, cuja incidência ocorre independentemente da vontade das partes (imperatividade).
Analisando a legislação aplicável, o ministro relator destacou que nos termos do artigo 6º da Lindb a lei nova se aplica imediatamente aos contratos de trabalho em curso, regendo a relação quanto a fatos que forem ocorrendo a partir de sua vigência, seja porque inexiste ato jurídico perfeito antes de integralmente ocorrido seu suporte fático, seja porque inexiste direito adquirido a um determinado regime jurídico decorrente de lei, como ocorre com as normas imperativas que regem a relação de emprego. Nesse sentido, somente haveria ato jurídico perfeito quanto aos fatos já consumados segundo a lei da época e apenas haveria direito adquirido quando completados todos os pressupostos fáticos para seu exercício imediato (ou exercício postergado por termo ou condição inalterável a arbítrio de outrem, Lindb, artigo 6º, §§1º e 2º).
Além disso, há outro ponto suscitado em diversos votos, e que consideramos de grande importância: a CLT prevê expressamente, em seu artigo 912, que “Os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência desta Consolidação”. Como bem observou a Ministra Morgana de Almeida Richa, o artigo 912 da CLT claramente revela que a Consolidação adota a chama da teoria objetiva de Paul Roubier, baseada na distinção entre efeito retroativo e efeito imediato [2], de modo que não há violação ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito a nova regulação aos fatos pendentes e futuros.
Assim, embora a discussão sobre a aplicação da lei no tempo e sua relação com o direito adquirido seja de extrema importância, vê-se que a própria CLT resolve a questão ao determinar expressamente a aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas. Ora, referido dispositivo normativo, que não sofreu qualquer alteração desde 1943, é lei vigente e vincula a o TST na resolução de casos concretos e, mais ainda, no julgamento de recursos repetitivos visando à fixação de uma tese geral e abstrata que influenciará casos futuros.
Em outras palavras, se o TST tivesse decidido em sentido contrário, isto é, pela impossibilidade de aplicação imediata, na prática a corte estaria afastando a aplicação da lei vigente (artigo 912 da CLT) sem declaração de sua inconstitucionalidade, o que somente poderia ser feito, de modo incidental, em observância ao artigo 949 do CPC, artigo 97 da Constituição e à Súmula Vinculante n° 10 do STF.
Por outro lado, ao observar de modo holístico a legislação pertinente à análise da matéria (com constantes referências ao artigo 6º da Lindb e ao artigo 125 do Código Civil) e privilegiar a correta interpretação do artigo 912 da CLT, entendemos que o Tribunal Superior do Trabalho homenageou aquilo que Jeremy Waldron propõe como o restabelecimento da dignidade da legislação [3]. Ou seja, ao invés de apostar no Judiciário como espaço para discussão e regulamentação dos assuntos comuns da sociedade, o TST prestigiou a legalidade vigente, em conformidade com a Constituição e seus princípios, entendida como uma forma genuína de direito, bem como uma referência comum com a qual toda a sociedade pode contar [4].
Direito adquirido, mudança de regime jurídico e jurisprudência do STF
Não se coloca em dúvida que a garantia do direito adquirido seja uma das principais expressões da segurança jurídica, entendida como princípio que “enuncia o imperativo de garantia da certeza da ordem jurídica, nas suas dimensões de estabilidade, coerência e igualdade, permitindo aos cidadãos organizarem a sua vida individual, relacional e coletiva, no respeito pela previsibilidade ou calculabilidade normativa de expectativas de comportamento e consequencialidade nas respectivas ações” [5], sendo fundamental em um Estado de Direito.
No direito brasileiro, a regra geral é a aplicação do princípio da irretroatividade da lei, previsto no artigo 5º, inciso XXXVI, da CF, e na Lindb, artigo 6º, caput, razão pela qual se asseguram a sobrevivência e a ultratividade da lei antiga. Há, portanto, uma diferença fundamental entre retroatividade e aplicação imediata, sendo esta admitida pela legislação. Assim, a lei nova não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido ou a coisa julgada, incidindo somente os fatos pendentes e os futuros que se realizarem já sob sua vigência [6].
Atenta às nuances, a jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de que não há a possibilidade de subsistência de situação jurídica individual em face de uma alteração substancial do regime ou de um estatuto jurídico. Vale destacar, nesse prisma, o voto do ministro Gilmar Mendes do julgamento da ADI 3.105 — citado no voto do ministro Caputo Bastos — no sentido de que “o princípio constitucional do direito adquirido não se mostra apto a proteger as posições jurídicas contra eventuais mudanças dos institutos jurídicos ou dos próprios estatutos jurídicos ou dos próprios estatutos jurídicos previamente fixados” [7].
Naquele julgamento, o ministro Gilmar elegantemente demonstrou como ambas as teorias sobre a aplicação da lei no tempo (objetiva e subjetiva) rechaçam a possibilidade de subsistência de situação jurídica individual em face de uma alteração substancial do regime ou de um estatuto jurídico. Seguindo o mesmo entendimento, o STF formou outros precedentes de repercussão geral não admitindo direito adquirido a regime jurídico, como são os casos dos Temas 24 (servidores públicos) e 528 (intervalo da mulher em sobrejornada).
Além de fundamentarem corretamente que a ratio decidendi desses precedentes se aplica ao caso do direito intertemporal referente à incidência da Lei 13.467/17 aos contratos em curso, alguns votos ainda fizeram a correta distinção em relação ao julgamento do Tema 123 do STF, que não trata de direito adquirido a regime jurídico, mas da opção de beneficiários a planos de saúde com base na Lei 9.656/98. Conforme bem destacado, a reforma trabalhista alterou a disciplina das relações de trabalho em dezenas de aspectos, representando novo regime jurídico de jornada e remuneração, razão pela qual é correta a aproximação com a jurisprudência do STF nesse aspecto (MS 32.672 AgR, RE 575.089, ADI 3.105/DF).
A conclusão registrada no voto condutor, portanto, foi a de que, nas hipóteses em que o conteúdo de um contrato decorre de lei, tratando-se de situação institucional ou estatutária, a lei nova imperativa se aplica imediatamente aos contratos em curso, quanto aos seus fatos pendentes ou futuros. Isso porque, nestes casos, a lei nova não afeta um verdadeiro ajuste entre as partes, mas sim o próprio regime jurídico imperativo, que incide independente da vontade daquelas e, por isso, se sujeita a eventuais alterações subsequentes, pelo legislador.
Nessa linha, assentou-se que não há falar em direito adquirido quanto aos fatos posteriores à alteração legal, já que, no direito brasileiro, inexiste direito adquirido a um determinado estatuto legal ou regime jurídico, inclusive àquele que predomina nas relações de emprego.
Por essas razões nos parece que a decisão do TST é correta, pois, ao mesmo tempo em que observa a garantia do direito adquirido, preservando os atos consumados no passado, demonstra atenção às regras legais que determinam a aplicação imediata da lei, bem como atende aos princípios de coerência e integridade, ao respeitar as decisões institucionais do passado, especialmente aquelas proferidas no âmbito da jurisdição constitucional — fatores que, sobretudo em conjunto, concretizam a exigência democrática da preservação da segurança jurídica.
Em outras palavras, a decisão do TST deve ser valorizada não apenas porque se alinha à jurisprudência do STF como uma decorrência de sua autoridade; mas precisamente porque ao invés de fazê-lo de modo mecânico, foi fruto de um rico debate que, considerando todo o material jurídico pertinente, isto é, a legalidade, os princípios constitucionais, os precedentes e a doutrina, teve como resultado uma decisão bem fundamentada, íntegra e coerente, tal como se espera em uma democracia constitucional e o determina o artigo 926 do CPC.
Mas, assim como na literatura, esse valor do julgado apenas pode ser percebido quando, diante da morte ou da tese anunciada, propomo-nos a ler a obra toda. Ao final, sempre haverá um ganho de sentido que, de outro modo, permaneceria inacessível.
[1] Gabriel García Marques. Crônica de uma morte anunciada – tradução de Remy Gorga Filho – 66ª edição – Rio de Janeiro: Record, 2023, p. 7.
[2] Paul Roubier. Droits Subjectif et Situation Juridique. Paris: Dalloz, 1933, p. 177 e ss.
[3] Jeremy Waldron. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 1-2.
[4] Jeremy Waldron. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 92.
[5] Carlos Blanco de Morais. Justiça constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 2005, t. II. Parte I, Cap. 1, n. II. IV. 2.1.1, p. 285.
[6] Georges Abboud. Constituição Federal Comentada, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 208.
[7] ADI 3105, Relator(a): ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 18-08-2004, DJ 18-02-2005
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