Opinião

Nova modalidade de proteção industrial de acordo com o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos

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11 de fevereiro de 2025, 19h34

A tutela intelectual dos jogos eletrônicos já nasceu como uma questão complexa, pois sua natureza é híbrida: combina ambos os componentes técnicos-industriais e criativos-autorais. Neles, se integram tanto o software quanto produções audiovisuais (animações, trilhas-sonoras, roteiros etc.). Não raro, pode até haver a cumulação de modalidades protetivas sobre um mesmo ativo.

ConJur
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Cotejando o resultado da norma, o Marco Legal dos Games advém de demandas prementes e antigas dos profissionais e empresários do setor dos games no país — que, ao menos por ora, foram relativamente cumpridas (Brasil, 2024; IODA, 2024; Abragames, 2024). Sua ementa propõe-se a criar o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos, bem como alterar as Leis nº 8.313/ 1991 (Lei Rouanet), 8.685/1993 (Lei do Audiovisual), e 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial — LPI).

Focando-se no artigo 20 do Marco Legal, ele chama a atenção dos que atuam com propriedade intelectual, pela alteração inusitada na Lei de Propriedade Industrial brasileira, adicionando no rol de modalidades de proteção a concessão de registro para jogos eletrônicos.

Uma série de acepções podem ser extraídas da construção lexical dessa disposição, podendo-se remontar, inclusive, ao trajeto legislativo percorrido pelo seu projeto de lei — nº 2796/2021 — até que fosse efetivamente promulgado.

O fato é que a versão inicial do PL nº 2796/2021 demonstrava uma atecnia grosseira do legislador sobre a propriedade intelectual, dado que seu artigo 8º, caput, determinava o seguinte:

Art. 8º. A patente das músicas e outras formas de arte desenvolvidas para os jogos eletrônicos seguirão as regras do direito autoral.

No caput do artigo, foi cometido um erro comum a quem é leigo ao tema, ao se equiparar a proteção das patentes de natureza industrial à proteção de “músicas e outras formas de arte”, de natureza autoral. São regimes protetivos completamente diferentes, cada qual com suas próprias prerrogativas, e se deparar com falas como “patentear uma música” é algo que se esperar em circunstâncias e locais casuais, não de onde mais se espera rigor técnico-jurídico, o ambiente legislativo.

Fora isso, o que se sobressai é que, ao menos na Câmara dos Deputados, durante o trâmite legislativo do PL, ninguém pareceu identificar o erro, ou, se reconheceu a estranheza, não lhe deu a devida atenção.

Videogame é protegido por direito autoral

O problema mais evidente do contexto advém de que um videogame, por natureza, é um programa de computador. E programas de computador são protegidos pelo direito autoral em modalidade sui generis. O artigo 2º da Lei de Software é categórico em relação a isso, bem como a Convenção de Berna, o Acordo TRIPs e o Tratado de Direitos Autorais da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WCT; Ompi) — sendo o Brasil signatário de todos. O inciso XII do artigo 7º da Lei de Direitos Autorais (LDA) também reafirma esse entendimento.

A divisão das modalidades de proteção intelectual decorre de diferenças intrínsecas aos seus próprios institutos jurídicos: pelo autoral, a valoração do bem protegido reside na expressão de uma ideia (forma), enquanto pelo industrial, a valoração do bem protegido reside na funcionalidade resultante da consubstanciação de uma ideia (conteúdo). Além das divergências normativas entre figuras legais que delas derivam — necessidade de registro ou não, possibilidade da presunção relativa de originalidade, tempo de proteção, aplicabilidade e limites dos direitos morais e patrimoniais, função social etc.

Confrontando-se essa conjuntura basilar da propriedade intelectual à inovação engendrada pelo marco legal, temos, portanto, uma clara antinomia jurídica entre o que já fora consolidado no ordenamento jurídico brasileiro (e no mundo todo) e o que propõe a nova norma: ao passo que todos os softwares, como um gênero uno de ativo intelectual, seriam legislados sob a égide do direito autoral, o jogo eletrônico, apenas, mesmo na condição de espécie derivada do gênero do software, se submeterá à propriedade industrial. É evidente a contradição real que, sobretudo nesses anos subsequentes ao marco legal, trará ambiguidade e obscuridade à sua interpretação.

Essa disposição legislativa é sem precedentes mundialmente, pois — excetuando-se análises mais rigorosas e acadêmicas que questionam a adequação da proteção do software como direito do autor sui generis — não se tem notícia de países que permitem o registro do videogame como obra una industrial.

Desenvolvimento de games

O fato é que, sem prejuízo da importância da sua promulgação para efetivo desenvolvimento econômico nacional e internacional dos jogos brasileiros, parece, à primeira vista, que esse dispositivo foi idealizado ou por um operador de direito que nada sabe de propriedade intelectual e desenvolvimento de games ou por um profissional da área que tampouco entende da proteção jurídica dos ativos econômicos produzidos na conjuntura da sua atuação comercial.

Spacca

Para todos os efeitos, temos agora entalhado no texto da lei a evidência da problemática da atecnia nos processos legislativos brasileiros — sobretudo aqueles vinculados à tecnologia. Até porque, de todas as propostas de emenda ao substitutivo do Senado que se tornou lei, nenhuma delas mencionava essa incoerência.

Por outro lado, adotando-se uma análise dialética do artigo, podem ser elencados elementos da práxis jurídica e comercial que tenham justificado essa escolha.

A despeito da proteção do software como direito autoral sui generis, seu registro é regulamentado e requerido junto ao INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). Então, em prol de simplificar os protocolos e recursos para a proteção e aproveitar os que já existem, o legislador pode ser decidido garantir que assim seria feito pela sua inserção na LPI. Claro que, inadvertidamente, acabou criando outra modalidade de proteção completamente distinta.

Outra hipótese possível é a de que, com isso, pretender-se-ia proteger certas tecnologias inovadoras no desenvolvimento do videogame analogamente à proteção patentária. No Brasil, diferentemente dos EUA, por exemplo, não se permite patentear o software per se, apenas invenções com software aplicado. Isto é, o programa de computador, mesmo que tenha novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, não será elegível à patenteabilidade se não for implementado a um hardware — o qual, por sua vez, deverá compor a invenção como um todo.

Registro de jogo eletrônico

Assim, a adição da concessão de registro de jogo eletrônico à LPI, se o INPI a regular aos moldes patentários, pode vir a possibilitar que códigos de game inovadores gozem da exclusividade comercial-industrial típica das patentes. Isso ensejaria outra contradição, desta vez ao artigo 10º da LPI, que exclui uma série de atividades do rol da elegibilidade patentária, pois muitas dessas atividades são atreladas diretamente ao desenvolvimento do código, seja como algoritmo específico, como uma arquitetura lógica de programação específica etc.

Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:

I – descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos;

II – concepções puramente abstratas;

III – esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização;

IV – as obras literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética;

V – programas de computador em si;

VI – apresentação de informações;

VII – regras de jogo;

Por outro lado, a escolha da inserção do videogame à LPI também pode decorrer diretamente da definição legal que o marco legal deu para os jogos eletrônicos — que, inclusive, é bem polêmica, e foi objeto de muitas tentativas de emendas na tramitação nas duas casas legislativas, tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado.

O artigo 4º da lei define que o jogo eletrônico é a obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador (…) em que as imagens são alteradas em tempo real a partir de ações e interações do jogador com a interface; o software para uso como aplicativo de celular e/ou página de internet, jogos de console de videogames e jogos em realidade virtual, realidade aumentada, realidade mista e realidade estendida, consumidos por download ou por streaming; e que, mais polemicamente, é (iii) o dispositivo central e acessórios, para uso privado ou comercial, especialmente dedicados a executar jogos eletrônicos;

Erro é equiparar software a hardware

No entanto, o entendimento natural e aceito é que se designa como jogo eletrônico somente o software programado, que deverá ser executado/computado por um hardware. O maior erro do inciso II do artigo 4º do marco legal é sinonimizar software e hardware, e, mais uma vez, quando protegidos, pertencem a institutos jurídicos distintos.

A escolha pela manutenção do inciso II do artigo 4º no marco legal — inclusive em negativa expressa a vários requerimentos de emenda na tramitação do PL — advém, segundo os relatórios legislativos da relatoria à época, da necessidade de garantia de que quaisquer periféricos ou dispositivos físicos também se enquadrariam aos benefícios e determinações da lei, bem como para contemplar quaisquer recursos de acessibilidade neles existentes. Outro ponto é obstar qualquer defasagem na definição legalmente dada, às visas das novas tecnologias de game embutidas diretamente nos seus consoles/periféricos.

Todas essas medidas seriam facilmente cumpridas mediante redação clara e específica de outros artigos e incisos objetivados a essa função, sendo desnecessário a introdução de uma antítese da informática computacional. No entanto, colacionando a insistência nessa definição ao artigo 2 do marco legal, existe a hipótese de que o legislador, — ao qualificar hardwares e softwares como jogo eletrônico, e ao estabelecer que o jogo eletrônico pode ser registrado — intencione viabilizar uma “proteção una” a partir de uma “nova” modalidade de tutela intelectual.

Ainda há muito a ser discutido e elucidado. Como órgão regulador instituído, ficará a cargo do INPI debruçar-se sobre essa problemática a fim de regulá-la. O instituto se encontrará em um paradoxo entre harmonizar as antinomias e os problemas delas derivados, estabelecer se sua proteção ensejará exame substantivo criterioso (como as patentes) ou se haverá uma presunção relativa de novidade e originalidade (como os desenhos industriais), garantir a proteção por institutos jurídicos diferentes, e, ao mesmo tampo, impedir que essas proteções ultrapassem seus próprios limites.

Mas, considerando-se que a Lei de Software é de 1998, e a primeira Instrução Normativa do INPI sobre o registro de programas de computador veio a ser expedida somente em 2017, IN nº 071/2017 (posteriormente substituída pela IN nº/2019), é presumível que as consequências do dispositivo do artigo 20 do Marco Legal não se insurjam por mais alguns anos.

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Referências

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BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Presidência da República, Brasília, 19 fev 1998b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm.

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