Alegando prejuízo a empresas americanas, Trump suspende FCPA
11 de fevereiro de 2025, 21h24
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou uma ordem executiva nesta segunda-feira (10/2) determinando à procuradora-geral, Pam Bondi, que suspenda as medidas tomadas sob o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA, ou Lei de Práticas de Corrupção no Exterior, em tradução livre) até que ela fixe novas diretrizes de aplicação. Todas as iniciativas atuais e passadas implementadas com base na norma serão revisadas.

Trump suspendeu norma anticorrupção até que sejam fixadas novas diretrizes
O FCPA proíbe que uma empresa ou pessoa com vínculos nos EUA suborne ou ofereça presentes a autoridades estrangeiras como forma de obter negócios no exterior.
Em 2012, em um episódio notório, o então empresário Donald Trump, em uma entrevista à rede de TV CNBC, chamou o FCPA de uma lei “ridícula” e “horrível“. Em seu primeiro ano no primeiro mandato como presidente, em 2017, ele exigiu, em pleno Salão Oval da Casa Branca, que seu então secretário de Estado, Rex Tillerson, “se livrasse” do FCPA. Em 2020, o assessor econômico da Presidência Larry Kudlow afirmou que o governo estava preparando um pacote de reformas para a norma, pois “estavam ouvindo reclamações de nossas empresas”.
As medidas, porém, não foram para frente, ao menos não até agora. “As empresas americanas são prejudicadas pela aplicação excessiva do FCPA porque são proibidas de se envolver em práticas comuns entre concorrentes internacionais, criando um campo de jogo desigual”, afirma o informativo da Presidência dos EUA.
O procurador da Fazenda Nacional João Carlos Souto, professor de Direito Constitucional e autor do livro Suprema Corte dos Estados Unidos — Principais Decisões (Atlas), aponta que a suspensão do FCPA é coerente com a trajetória e os atos de Trump. Afinal, ele é o primeiro presidente dos EUA que nunca havia exercido um cargo público. Pelo contrário: é um magnata que, mesmo depois de comandar o país, continua pensando em novas oportunidades de negócios.
Trump também pode ter buscado aumentar a competitividade das empresas americanas no exterior, especialmente diante do avanço da China.
“Seria irresponsabilidade dizer que ‘só’ os EUA, mas certamente poucos países têm legislação do tipo do FCPA. Em um momento em que a competição EUA/China se acirra, talvez essa tenha sido a resposta de Trump para a falta de uma legislação equivalente no país asiático”, avalia Souto.
Interesses dos EUA influenciam medidas anticorrupção
Os interesses dos EUA influenciam medidas anticorrupção mundo afora, dizem pesquisas. Um artigo publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 2021, assinado por Elizabeth Acorn, da Universidade de Toronto, reuniu dezenas de trabalhos publicados nos últimos anos sobre a aplicação do FCPA contra empresas estrangeiras. Pelas pesquisas existentes, os processos da norma são influenciados por diversos fatores, incluindo elementos políticos e econômicos, lobbies empresariais e até disputas eleitorais locais.
As autoridades anticorrupção americanas também se pautam por uma atuação institucional formal, mas não é só isso. Pelo que se sabe hoje em dia, o mais provável é haver uma combinação de interesses por trás da aplicação do FCPA.
Uma das pesquisas sobre o tema, assinada pelo economista Lauren Cohen, da Universidade de Harvard, no fim de 2021, por exemplo, encontrou indícios de pressão de lobbies privados sobre integrantes do Comitê Judiciário do Senado visando ao FCPA. O Comitê é responsável pela supervisão do funcionamento do Departamento de Justiça (DoJ), o qual é, por sua vez, incumbido de processar empresas pelo FCPA. Esses processos são conduzidos com alta discricionariedade, o que, diz o pesquisador, facilita a interferência de interesses políticos.
Outros autores com pesquisas na área, como Maria Paula Bertran, professora de Direito da USP de Ribeirão Preto, encontram tendências amplas de caráter estratégico no perfil de processos do FCPA, visando a transformações institucionais globais de grande escala. De acordo com sua pesquisa, a norma é aplicada de forma seletiva e nada aleatória. Segundo a autora, antes da falecida “lava jato”, estudiosos já previam, com base em dados, que a agenda estratégica do FCPA produziria em breve uma ação de envergadura contra uma empresa de petróleo no Brasil.
Influência ampliada
Nos anos 1990, o Departamento de Estado entrou em campo para internacionalizar a “luta contra a corrupção”, uma forma de ampliar a área de influência americana e reduzir o impacto do FCPA sobre a indústria local. A iniciativa produziu entre seus resultados a convenção anticorrupção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 1997, hoje assinada por 44 países.
A convenção da OCDE, por sua vez, induziu novas leis anticorrupção em vários países signatários, como a Lei Anticorrupção brasileira (Lei 12.846/2013) e o Bribery Act do Reino Unido, de 2010. As Nações Unidas também prepararam sua convenção sobre o assunto em 1996, texto finalizado em 2003 e hoje assinado por 181 países.
Nos EUA, com o passar do tempo, o FCPA passou a ter como alvo principal empresas estrangeiras, ao invés de companhias americanas. Um dos impactos do FCPA, hoje se sabe, é promover a penalização das empresas também em sua terra natal.
Ao longo dos últimos dez anos, metade das empresas processadas pelo FCPA era estrangeira, mas em 2016 o número superou o volume de empresas dos EUA em 30%. No ano de 2021, pela primeira vez todas as empresas processadas pelo FCPA eram estrangeiras, segundo dados reunidos pela Universidade de Stanford.
EUA e ‘lava jato’
Os procuradores da “lava jato” atuaram junto com autoridades dos EUA na aplicação do FCPA para punir empresas brasileiras. A norma permite que autoridades americanas investiguem e punam fatos ocorridos em outros países. Para especialistas, ela é instrumento de exercício do poder econômico e político dos americanos no mundo.
O FCPA foi editado em 1977. O objetivo original da norma era punir empresas americanas que subornassem funcionários públicos no exterior. A lei proíbe companhias dos EUA ou estrangeiras que tenham valores mobiliários negociados em bolsa no país, além de seus empregados, cidadãos americanos ou estrangeiros na nação, de pagar, prometer pagar ou autorizar pagamento de dinheiro ou objeto de valor para servidor de governo estrangeiro ou para obter negócios. Além disso, o FCPA abrange lavagem de dinheiro. Qualquer operação que tenha passado pelo sistema financeiro americano pode justificar a abertura de uma investigação no país.
Há ainda outros casos em que os EUA costumam justificar sua competência com base no FCPA, chamados por eles de the long arm of Justice (o longo braço da Justiça), conforme afirmou o especialista em Direito Internacional Jorge Nemr, então sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados, em entrevista à ConJur em 2016.
“Por exemplo, às vezes a competência é atraída pelo fato de a empresa ter uma filial nos EUA, uma subsidiária, um escritório de representação. Muitas vezes, o mero fato de haver um servidor baseado nos EUA ou de uma reunião ter sido feita lá já serve de justificativa. Na cabeça dos norte-americanos, eles são quase que como a polícia do mundo, essa é a grande verdade. Então, qualquer coisa relacionada a eles justifica sua jurisdição, e para eles é o suficiente para abrir algum tipo de investigação.”
Com o passar do tempo, o FCPA passou a ser aplicado por autoridades americanas para ampliar a jurisdição dos Estados Unidos ao redor do mundo, “numa verdadeira guerra econômica e geopolítica subterrânea”, segundo apontaram os advogados Cristiano Zanin Martins (hoje ministro do Supremo Tribunal Federal) e Valeska T. Zanin Martins à ConJur em 2020.
Interferência no Brasil
O Brasil chegou a responder por cerca de 30% dos valores arrecadados pelo Tesouro americano com base no FCPA, conforme ressaltaram Zanin e Valeska, lembrando que há diversos outros procedimentos em curso envolvendo a lei e companhias brasileiras.
E agentes do Estado brasileiro ajudaram os EUA a punir empresas com base no FCPA. Zanin e Valeska apontaram que os procuradores da “lava jato” atuaram junto com autoridades americanas, como Federal Bureau of Investigation (FBI, equivalente à Polícia Federal); DoJ; Securities and Exchange Commission (SEC, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários); e Nacional Security Agency (NSA, equivalente à Agência Brasileira de Inteligência), na aplicação do FCPA contra empresas brasileiras e seus executivos.
Essa atuação, destacaram eles, levou executivos à prisão nos EUA e ao pagamento de “valores estratosféricos” a título de multa em favor do Tesouro americano. Também com o aval da “lava jato”, contaram os advogados, foram colocados monitores americanos em empresas brasileiras para acompanhar suas atividades. “Segundo os nossos estudos, algumas dessas empresas tiveram suas atividades comerciais arruinadas ou severamente prejudicadas. A Embraer, por exemplo, quase foi vendida para a Boeing após passar pelos procedimentos do FCPA.”
O DoJ, com base no FCPA, aplicou multas bilionárias a empresas brasileiras investigadas na “lava jato”. A Petrobras concordou em pagar US$ 1,78 bilhão em 2018 para encerrar as investigações. Já a Odebrecht aceitou pagar US$ 2,6 bilhões a Brasil, Suíça e EUA (que ficaram com US$ 93 milhões).
‘Ajuda’ espontânea
Além disso, conforme a ConJur já vem noticiando desde 2018, a autoapelidada força-tarefa atuou de forma próxima do FBI em muitas etapas das investigações, pedindo auxílio técnico sem passar pelos canais formais e compartilhando o andamento dos processos mais com os americanos do que com as autoridades brasileiras.
Talvez o principal exemplo dessa proximidade seja o da americana Leslie R. Backschies, designada em 2014 para ajudar nas investigações brasileiras. A história foi contada pela Agência Pública em uma reportagem da série da “vaza jato”. Leslie participou de palestras de procuradores do DoJ e agentes do FBI a integrantes do Ministério Público Federal para ensinar o funcionamento do FCPA.
Atualmente, Leslie comanda a Unidade de Corrupção Internacional do FBI, a mesma que inaugurou um escritório em Miami só para investigar casos de corrupção em países estratégicos na América do Sul. O foco da unidade é a própria especialidade de Leslie: a aplicação do FCPA.
A “vaza jato” também mostrou que os procuradores tentavam driblar o governo brasileiro sempre que possível nos casos de “cooperação” com os Estados Unidos. Em 2015, por exemplo, procuradores ligados ao DoJ e ao FBI fizeram uma visita ao MPF brasileiro, que não foi informada ao Ministério da Justiça, órgão responsável por intermediar a cooperação internacional. Também não passou pelos canais oficiais um pedido de ajuda feito ao FBI para hackear os sistemas da Odebrecht quando o material ainda estava na Suíça.
Na entrevista de 2020, Zanin e Valeska Martins não souberam dizer por que a “lava jato” quis ajudar o governo dos EUA. Eles ressaltaram, contudo, que os americanos destinaram R$ 2,5 bilhões para a constituição de uma fundação que teria a ingerência de membros do Ministério Público que, direta ou indiretamente, atuaram na aplicação do FCPA no Brasil.
O fundo foi alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal e, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, acabou sendo dividido entre o combate aos incêndios na Amazônia e programas estaduais de enfrentamento à Covid-19 no país.
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