Resolução da 'permuta no local' pelo inadimplemento do incorporador
10 de fevereiro de 2025, 15h14
Na chamada “permuta no local”, o proprietário troca uma fração ideal do terreno por unidades a serem entregues pelo incorporador no futuro. Trata-se de modalidade contratual bastante frequente no mercado imobiliário, pois, por um lado, permite ao incorporador iniciar o empreendimento sem ter de desembolsar a quantia necessária à aquisição do terreno e, por outro, torna possível ao proprietário realizar um investimento sem assumir os riscos das atividades de construção e de incorporação.

Uma das questões mais problemáticas envolvendo essa modalidade de contrato é a da sua resolução em virtude do inadimplemento do incorporador, tema que suscita questionamentos não apenas no âmbito do direito privado, mas também do direito processual.
Em geral, a resolução do contrato por inadimplemento tem, como efeito, a restituição das partes ao statu quo ante. Segundo Orlando Gomes, resolvido o contrato, “apaga-se tudo o que se executou, devendo-se proceder a restituições recíprocas, se couberem” [1].
Tratando-se de contrato de permuta para fins de incorporação imobiliária, o problema cresce em complexidade, na medida em que o inadimplemento do incorporador pode impactar não apenas a relação jurídica existente entre ele e proprietário do terreno, mas também eventuais relações contratuais estabelecidas com os adquirentes das unidades do condomínio.
De fato, fracassando a incorporação, e não estando ela submetida ao regime legal da afetação patrimonial, que confere poderes à comissão de representantes dos adquirentes para dar continuidade à obra [2], o proprietário do terreno pode pleitear a resolução do contrato de permuta (CC, artigo 475). O mesmo pode ocorrer caso a comissão de representantes, diante do inadimplemento do incorporador, não dê continuidade à obra. Em tais hipóteses, o artigo 40, caput, da Lei nº 4.591/1964 prevê que também “ficarão rescindidas as cessões ou promessas de cessão de direitos correspondentes à aquisição do terreno”.
Em outras palavras, a resolução do contrato de aquisição do terreno acarreta, reflexamente, a extinção dos contratos celebrados pelo incorporador com os adquirentes das unidades do condomínio. Isso ocorre porque há entre eles uma relação de coligação contratual, determinada por um nexo de dependência unilateral [3]: os contratos de alienação das unidades do condomínio dependem do contrato de aquisição do terreno, de modo que o desfazimento deste implica também a extinção daqueles, por expressa determinação legal.
Nesses casos, operada a resolução do contrato de permuta pelo inadimplemento do incorporador, o proprietário do terreno tem o direito de reavê-lo, fazendo jus também à eventual construção realizada no imóvel (Lei nº 4.591/1964, artigo 40, § 1º). Por outro lado, os adquirentes de unidades do condomínio têm direito a receber do proprietário “o valor da parcela de construção que haja sido adicionado à unidade, salvo se a rescisão tiver sido causada pelo ex-titular” (Lei nº 4.591/1964, artigo 40, § 2º).
O STJ, interpretando o § 2º do artigo 40 da Lei nº 4.591/1964, fixou o entendimento de que o “dever de indenização previsto no artigo 40 da Lei nº 4.591/64 deve limitar-se à vantagem financeira auferida pelo proprietário do terreno, a qual não se confunde com o valor integral pago pelos demais adquirentes à incorporadora. Na prática, considerando que todas as unidades do empreendimento sejam de igual valor, deve se apurar o custo total da edificação, dividindo-o pelo número total de adquirentes, excluído o proprietário do terreno. O resultado encontrado corresponderá ao valor da parcela de construção adicionado à unidade por cada adquirente” [4].
De acordo com o STJ, isso ocorre porque a regra em questão tem “o escopo de evitar-se enriquecimento sem causa, já que, antes, entregara à construtora imóvel não-construído e não pode, depois de rescindido o contrato de permuta, recebê-lo com benfeitorias e por elas nada pagar” [5].
Portanto, resolvido o contrato de permuta para fins de incorporação imobiliária, o proprietário do terreno responde perante os adquirentes apenas pelo valor que houver sido acrescido a cada fração ideal, mas não pelas obrigações contratuais assumidas pelo incorporador perante os adquirentes, ainda que venha a ser decretada a sua falência [6].
Equiparação
Situação distinta ocorre quando o proprietário exerce atos típicos da atividade de incorporação, hipótese em que é equiparado ao incorporador, respondendo solidariamente pelo empreendimento imobiliário, conforme o entendimento já pacificado pelo STJ [7]. Assim, por exemplo, se o proprietário promove publicidade para oferta de unidades, responde solidariamente pelos lucros cessantes decorrentes do atraso da obra, ainda que tal fato seja imputável somente ao incorporador. Caso contrário, o proprietário é equiparado ao consumidor pelo STJ [8].
Em qualquer caso, o proprietário não pode voltar a negociar os direitos sobre as unidades consolidadas em seu patrimônio, sem antes indenizar os adquirentes pelo valor acrescido a cada fração ideal, sob pena de nulidade (Lei n.º 4.591/1964, artigo 40, § 3º). Caso isso ocorra, o adquirente poderá pleitear a invalidação da alienação, a qualquer tempo (CC, artigo 169).

A cominação de nulidade se justifica pelo fato de que a unidade e a respectiva fração ideal do terreno servem de garantia ao pagamento da indenização devida ao adquirente, caso ele tenha de cobrar judicialmente do proprietário os valores a que faz jus (Lei nº 4.591/1964, artigo 40, § 4º).
A decretação da invalidade da nova alienação exige, em todo caso, a citação do novo adquirente. Este, como parte da nova relação jurídica material, que se busca desfazer, deve ser incluído como réu, sob pena de ofensa ao contraditório. Logo, o adquirente lesado, ao ajuizar ação indenizatória contra o proprietário, pode formular, cumulativamente ou em ação própria, pedido de invalidação da nova alienação, mas deve fazê-lo em face do proprietário e do novo adquirente. Em tal hipótese, há litisconsórcio passivo necessário unitário [9].
Ainda nessa hipótese, se a ação for proposta somente contra o proprietário, o juiz deverá determinar a intimação do autor para que ele requeira a citação também do novo adquirente, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo (CPC, artigo 115, parágrafo único). O juiz não deve determinar a citação de ofício, sem que o autor a requeira, já que ninguém é obrigado a litigar contra quem não queira; o autor precisa requerer a citação daquele contra quem deseja demandar.
O litisconsórcio, como visto, é, no caso, passivo necessário unitário. Logo, caso a ação seja proposta apenas contra o proprietário, a sentença de mérito, proferida sem a participação do novo adquirente, será nula (CPC, artigo 115).
A pretensão de invalidar a nova alienação é acessória em relação ao direito de crédito que possui o adquirente lesado, pois visa justamente a restabelecer a garantia desse crédito. Vale dizer, o pedido indenizatório constitui questão prejudicial ao pedido de invalidação da nova alienação; o julgamento do primeiro condiciona o do segundo.
Por isso, quando tais pedidos são formulados na mesma demanda, caracterizam cumulação sucessiva: para que o pedido de invalidação da nova alienação seja acolhido, é preciso, em primeiro lugar, que seja julgado procedente o pedido indenizatório. Assim, por exemplo, se o pedido de indenização for rejeitado, por não existirem benfeitorias no terreno, o segundo pedido deverá igualmente ser julgado improcedente. Além disso, o juiz não pode analisar diretamente o pedido sucessivo, sem analisar antes o pedido principal, sob pena de incorrer em decisão citra petita [10].
Nesse caso, há uma omissão na decisão. A decisão citra petita é uma decisão omissa, pois o juiz deixou de apreciar o pedido principal. O vício da decisão citra petita pode ser corrigido em embargos de declaração (CPC, artigo 1.022, II) ou pelo tribunal, em apelação (CPC, artigo 1.013, § 3º, III).
Por outro lado, se os pedidos de indenização e de invalidação da nova alienação forem formulados em demandas distintas, haverá conexão por prejudicialidade, autorizando a reunião dos processos para julgamento conjunto, a fim de evitar a prolação de decisões contraditórias (CPC, artigo 55, § 3º) [11].
Também em razão dessa relação de acessoriedade, o direito de invalidar a nova alienação, apesar de não se sujeitar a nenhum prazo legal, pode ser afetado pela prescrição da pretensão principal. A propósito, o STJ firmou o entendimento de que, embora não haja prazo legal para promover a resolução do contrato de compra e venda, a pretensão decorrente do inadimplemento do vendedor se sujeita ao prazo decenal do artigo 205 do Código Civil [12]. Portanto, prescrita a pretensão condenatória pelo transcurso do decênio legal, resta igualmente prejudicado o direito de invalidar a nova alienação.
Todas essas considerações permitem concluir, finalmente, que a resolução do contrato de permuta para fins de incorporação imobiliária prescinde da participação dos adquirentes das unidades do condomínio, independentemente de a rescisão ocorrer por acordo ou por decisão judicial. Isso porque eles não integram a relação jurídica decorrente do contrato de permuta, mas sim relações dela dependentes, ligadas por um nexo de prejudicialidade, que são afetadas apenas reflexamente pela sentença proferida entre proprietário e incorporador [13].
Por isso, na ação movida pelo proprietário contra o incorporador inadimplente, não há litisconsórcio passivo necessário entre este e os adquirentes [14]. De acordo com o STJ, basta que eles sejam cientificados a respeito do que vier a ser decidido no processo, comunicação esta que pode ser feita extrajudicialmente, a fim de que exerçam as suas pretensões indenizatórias [15]. Ademais, eles podem intervir voluntariamente como assistentes simples, recebendo o processo no estado em que se encontre (CPC, artigo 119, parágrafo único).
[1] GOMES, Orlando. Contratos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, n. 136, p. 195.
[2] CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 360-361.
[3] A propósito, MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Contratos coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 99 e ss.
[4] STJ, 3ª Turma, REsp 686.198/RJ, rel. p/ ac. Min. Nancy Andrighi, DJ 1º.2.2008, p. 1.
[5] STJ, 4ª Turma, REsp 656.457/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 14.10.2010.
[6] STJ, 4ª Turma, REsp 1.360.269/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 8.3.2019.
[7] STJ, 4ª Turma, AgInt no REsp 1.859.407/BA, rel. Min. Raul Araújo, DJe 21.10.2024.
[8] STJ, 4ª Turma, AgInt no AREsp 2.358.327/GO, rel. Min. Raul Araújo, DJe 1º.12.2023.
[9] Nesse sentido, DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 85 e 164 e ss.
[10] STJ, 1ª Turma, REsp 390.282/DF, rel. Min. Luiz Fux, DJ 8.4.2002, p. 156.
[11] “A conexão, neste caso, decorrerá do vínculo que se estabelece entre as relações jurídicas litigiosas. Haverá conexão se a mesma relação jurídica estiver sendo examinada em ambos os processos, ou se diversas relações jurídicas, mas entre elas houver um vínculo de prejudicialidade ou preliminaridade” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 24ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, v. 1, p. 306).
[12] STJ, 3ª Turma, AgInt no REsp 2.008.186/SP, rel. Min. Humberto Martins, DJe 13.9.2023.
[13] Segundo Pontes de Miranda, os efeitos reflexos da sentença, que não se confundem com os efeitos anexos nem com a coisa julgada, são aqueles “não anexados por lei, mas tornados inevitáveis, e. g., pela existência de pretensão de terceiro que depende da existência da pretensão de alguma das partes. No fundo, a diferença entre os efeitos anexos e os efeitos reflexos – que chamaríamos conexos, se a palavra ‘conexão’ não tivesse sentido mais técnico e menos comum – está em que a lei, quanto àqueles, intencionalmente os cria, ocorrendo certas circunstâncias relativas aos bens da vida, e, quanto a esses, é a vida que os cria, devido à entremistura das incidências das leis. A nexidade é comum àqueles e a esses: ali, propositada; aqui, ocasional” (Comentários ao Código de Processo Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t. 5, p. 54).
[14] STJ, 4ª Turma, AgInt no REsp 1.826.271/MG, rel. Min. Raul Araújo, DJe 27.6.2024.
[15] STJ, 4ª Turma, REsp 489.281/SP, rel. p/ ac. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 15.3.2004, p. 276; STJ, 3ª Turma, AgRg nos EDcl no REsp 1.107.117/SC, rel. Min. Vasco Della Giustina (Des. Conv. TJRS), DJe 28.2.2011.
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