A barata no espaguete

Documentário explica estratégia da defesa para obter absolvição de O.J. Simpson

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10 de fevereiro de 2025, 8h24

O caso da promotoria no julgamento de O.J. Simpson, em 1995, foi pobre em provas testemunhais, mas rico em provas periciais — mais do que suficiente para contar a história de um duplo homicídio: o de sua ex-mulher, Nicole Brown Simpson, e do garçom Ronald Goldman, que apenas estava no lugar errado, na hora errada. E seria a única testemunha ocular do crime, se tivesse sobrevivido.

Julgamento de O.J. Simpson, em 1995, causou enorme controvérsia nos EUA

Afinal, na noite de domingo de 12 de junho de 1994, o ator e astro do futebol americano havia deixado um rastro de sangue por onde passou, segundo a história contada pelos promotores aos jurados, de acordo com o documentário da Netflix American Manhunt: O.J. Simpson (Procurados — EUA: O.J. Simpson).

Havia muito sangue na cena do crime; havia um rastro de sapato, formado pelo sangue das vítimas, no passeio que leva até a rua; havia sangue na porta e no interior do Ford Bronco de Simpson; na casa do “suspeito”, foi encontrada uma meia com sangue das vítimas; no quintal da casa, foi encontrado, mais tarde, um par de luvas pretas ensanguentadas — as “famosas luvas” que, para a promotoria, melhor que não tivessem sido encontradas — ou plantadas.

A polícia coletou mais de cem amostras de sangue. Testes de DNA se seguiram e os promotores puderam apresentar, no julgamento, cerca de 50 resultados que indicaram a presença de sangue das vítimas e também de O.J. Simpson. Os promotores concluíram que, com os testes de DNA, e mais algumas provas, tinham o suficiente para obter a condenação do réu.

Simpson contratou, inicialmente, o advogado das estrelas de Hollywood, Robert Shapiro. No entanto, ele só atuava na área civil — era famoso por obter acordos favoráveis para seus clientes. Mas, como Simpson se dispunha a gastar de US$ 3 milhões a US$ 6 milhões, Shapiro contratou os melhores criminalistas disponíveis na praça. E formou uma equipe que foi chamada, na época, de Dream Team.

A liderança da equipe foi entregue ao advogado Johnnie Cochran, famoso por lutar pelos direitos civis das minorias raciais. Juntaram-se à equipe os criminalistas F. Lee Bailey, Robert Kardashian, Alan Dershowitz, Robert Blasier, Gerald Uelmen, Carl E. Douglas, Shawn Holley, Barry Scheck e Peter Neufeld — os dois últimos lideravam o Projeto Inocência e eram especializados em provas de DNA.

O Dream Team sentiu, inicialmente, que a coisa estava feia. Nessas condições, a melhor estratégia seria apelar para o último recurso da defesa: criar uma dúvida razoável na mente dos jurados. A ideia era interessante porque o júri era composto por dez mulheres e dois homens — ao todo, nove negros, dois brancos e um hispânico.

O júri terminou com essa composição porque a promotoria decidiu mudar o julgamento de um tribunal em Santa Mônica, onde o crime aconteceu, para o centro de Los Angeles, por algumas razões: mais segurança, menor tempo de deslocamento dos promotores, melhor acomodação da imprensa etc.

Havia também uma razão política: o júri seria mais diversificado. Em Santa Mônica, a maioria dos jurados seria branca e, no caso de uma condenação de Simpson, que era negro, haveria uma revolta popular. As tensões sociais já estavam altas. Pouco tempo antes, ocorrera um grande distúrbio na cidade em protesto contra a violência policial.

Barata no espaguete

Pode ter sido uma boa intenção da promotoria, mas a consequência não foi. O Dream Team aproveitou o clima de tensão racial na cidade para começar a montar a estratégia de defesa: colocar o Departamento de Polícia de Los Angeles em julgamento, por má conduta e racismo; atacar o sistema judicial preconceituoso; e levantar suspeitas sobre as provas, que seriam “comprometidas, contaminadas e corruptas”.

Faltavam as provas para contestar as provas de DNA da promotoria. O advogado Alan Dershowitz, o criminalista mais experiente da equipe, mostrou o que era preciso fazer, por meio de uma analogia curiosa: “Os promotores têm uma tigela cheia de espaguete com um molho suculento, que é difícil recusar. Mas imaginem que uma barata emerge do molho do espaguete. Ninguém vai querer saber de procurar mais baratas na tigela. Vai jogar todo o espaguete na lata de lixo”.

Era isso: bastava encontrar um problema nas provas de DNA da promotoria para estragar o prato cheio da acusação — isto é, criar uma dúvida razoável na mente dos jurados.

E, no andar da carruagem, esse problema apareceu: a equipe descobriu que o detetive Mark Fuhrman, encarregado da coleta das amostras de sangue para testes de DNA e de outras provas, era um racista declarado — e se gabava disso.

Na inquirição cruzada de Fuhrman, o criminalista F. Lee Bailey perguntou a ele se tinha um passado racista. Ele negou. O advogado perguntou, especificamente, se alguma vez, nos últimos dez anos, ele usara a palavra nigger — certamente, uma das mais ofensivas aos afro-americanos dos Estados Unidos. Ele negou. E ficou nisso… por enquanto.

Porém, as coisas iriam mudar. A aspirante a roteirista Laura McKinny ofereceu as provas à equipe de defesa. Ela havia contratado o detetive Fuhrman para lhe prestar consultoria sobre questões policiais para um roteiro que estava escrevendo.

Laura gravou, em fita cassete, o que o detetive lhe disse. Ao falar sobre a conduta de policiais e de sua própria atuação, ele usou a palavra nigger várias vezes, além de outras injúrias raciais. Para colocar uma cereja no bolo, ele contou a ela que, algumas vezes, “plantou” provas para ajudar a condenar negros.

Obviamente, a defesa trouxe novamente o detetive Fuhrman para o banco das testemunhas. Apresentou trechos da gravação aos jurados e voltou a inquirir Fuhrman. E mostrou que ele não só usou a palavra nigger na consultoria que prestou à roteirista, mas também em textos, como um grupo de dez policiais estava pronto para confirmar.

A todas as perguntas que lhe foram feitas, Fuhrman repetiu a mesma frase: “I wish to assert my Fifth Amendment privilege” (“Quero afirmar meu privilégio da Quinta Emenda”). Muitas vezes simplificada para “I take the Fifth”, a frase se refere ao direito garantido ao cidadão pela Quinta Emenda da Constituição dos EUA — o de não se incriminar em depoimentos ou testemunhos.

Mas como os jurados entenderiam isso, depois de ele haver negado, no primeiro testemunho, seu comportamento racista e sua prática de “plantar” provas para condenar pessoas negras? Provavelmente, como uma admissão de culpa. A barata havia emergido do molho do espaguete.

Além disso, um membro da equipe forense da polícia de Los Angeles, Collin Yamauchi, que havia manipulado as amostras de sangue, admitiu que poderia ter misturado com elas, inadvertidamente, exame coletado de Simpson. E que, às vezes, a equipe manuseia mal as provas e quebra a cadeia de custódia delas por falta de treinamento e por não executar corretamente o protocolo.

A equipe de defesa sugeriu que as luvas, encontradas após passado algum tempo do crime, foram contaminadas com sangue do réu e plantadas no quintal da casa de Simpson pelo detetive Fuhrman, que queria assegurar sua condenação.

If It doesn’t fit, you must acquit

Aparentemente, a missão de colocar uma dúvida razoável na mente dos jurados estava cumprida. Mas haveria mais uma dádiva da sorte, oferecida involuntariamente pela promotoria.

O promotor Christopher Darden, certo de que as luvas pertenciam a Simpson, pois a equipe de promotores havia visto as mesmas luvas pretas nas mãos do réu em uma foto, decidiu fazer uma demonstração dramática na sala de julgamento, para tentar inverter o curso das coisas.

Ele pediu ao réu para colocar as luvas em suas mãos, mas teve uma surpresa desagradável: as luvas não serviram. Com uma certa encenação (do ator que era), Simpson exibiu para os jurados as luvas que não entravam em suas mãos grandes.

A explicação mais provável para isso é a de que ele teve de colocar, primeiro, um par de luvas de plástico (para não contaminar o sangue no contato com sua pele) e porque as luvas podem ter encolhido por estarem enxarcadas de sangue.

Esse acontecimento inesperado proporcionou ao advogado Johnnie Cochran a oportunidade para ele enunciar nas alegações finais a frase mais famosa do julgamento de O.J. Simpson. Ao se referir ao teste das luvas, ele disse aos jurados: “Se elas não servem, você deve absolver”.

A tradução não faz justiça à frase original em inglês (“If it doesn’t fit, you must acquit“) por uma razão: em inglês, a frase soa como um ditado popular, por causa da rima (como “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”), que ajuda a memorizar.

Certamente, os jurados foram para a sala de deliberação com a frase ainda pipocando em suas mentes: “If it doesn’t fit, you must acquit”.

E, curiosamente, os jurados demoraram menos de quatro horas para chegar ao veredicto de “não culpado”. Os advogados e promotores esperavam por muitos dias de deliberações. Uma provável razão para a rapidez é que os jurados não aguentavam mais acompanhar o julgamento. Foram 133 dias longe das famílias, confinados em um hotel.

A vez das famílias das vítimas

As famílias das vítimas saíram abaladas da sala de julgamento, depois de conhecer o veredicto. As milhões de pessoas que assistiram ao julgamento pela televisão, como uma novela imperdível, ficaram divididas. A maioria das pessoas negras festejou o resultado, enquanto a maioria das pessoas brancas lamentou.

Mas as famílias das vítimas tiveram alguma revanche, por outro caminho. Elas moveram uma ação civil contra O.J. Simpson em Santa Mônica, onde o crime aconteceu. Nesse caso, a defesa de Simpson levou a pior. O júri condenou o réu a pagar às famílias uma indenização de US$ 33,5 milhões (US$ 8,5 milhões de indenização compensatória e US$ 25 milhões de indenização punitiva). Mas Simpson só teria pago uma pequena parcela dessa indenização.

Em 2007, elas voltaram a acompanhar problemas de Simpson com a Justiça. Ele foi preso e condenado por um assalto à mão armada a dois comerciantes de artigos esportivos em um quarto de hotel em Las Vegas. Simpson, que foi obrigado a testemunhar, defendeu-se com o argumento de que estava tentando recuperar artigos de memorabilia que lhe pertenciam, mas foi condenado e passou nove anos na prisão.

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