Processo Tributário

Dívida ativa tributária e o alcance de bens de terceiros pelo fisco

Autor

  • é assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça procurador do estado de Goiás em Brasília mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor do curso de extensão "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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9 de fevereiro de 2025, 8h00

O processo de execução fiscal tem como pressuposto a crise de inadimplemento, deflagrada pelo fato jurídico do não pagamento da obrigação, consubstanciado em título executivo extrajudicial — certidão de dívida ativa —, documento esse revestido de presunção de certeza e liquidez, consoante dispõe o artigo 3º da Lei nº 6.830/1980.

Focalizando a obrigação tributária, é a ausência de seu regular pagamento pelo sujeito passivo que, tomado como antecedente material, permite a deflagração duma outra relação jurídica, nominada relação jurídica de responsabilidade patrimonial, por meio da qual se autoriza à Fazenda Pública credora exigir, no Poder Judiciário, a prática de atos coativos tendentes à satisfação da dívida tributária, os quais, consoante disposto no artigo 184 do Código Tributário Nacional, recairão sobre a totalidade dos bens ou rendas do sujeito passivo, seja ele contribuinte ou responsável.

Ocorre que, não raras vezes, a Fazenda Pública acaba por identificar situações nas quais, tendo havido a alienação de bens pelo devedor executado a terceiros, de modo a frustrar a pretensão executiva, afigura-se possível (1) a desconstituição de tais negócios jurídicos, a fim de que os bens retornem ao patrimônio do devedor e sujeitem-se à prática de atos executivos, (2) ou mesmo o reconhecimento de sua ineficácia, para viabilizar que os atos de constrição praticados na execução fiscal sobre eles recaiam, tal como ocorreria se não houvessem sido alienados.

Trata-se aqui das figuras jurídicas da fraude contra credores e da fraude à execução, as quais podem render ensejo, respectivamente, à invalidação ou ineficácia adrede referidas, e têm lugar em momentos específicos do ciclo de concretização da obrigação tributária.

A fraude contra credores é regida pelo Código Civil em seu artigo 158 e seguintes, e consiste em um dos defeitos dos negócios jurídicos, maculando os concernentes à transmissão gratuita de bens ou remissão de dívidas, quando praticados pelo devedor insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, bem como os negócios onerosos, nas situações em que a insolvência do alienante seja notória ou deveria ser conhecida pelo adquirente.

Verificados os seus pressupostos, o credor prejudicado, desde que já o seja ao tempo da alienação, poderá pleitear a anulação do negócio jurídico praticado, no prazo decadencial de quatro anos contados da data da realização da avença, mediante a chamada ação revocatória ou ação pauliana, que, caso seja julgada procedente, implicará no retorno do bem ao patrimônio do devedor.

Por outro lado, a fraude à execução tem assento nos artigos 790, V e 792 do Código de Processo Civil, operando-se na alienação de bem sobre o qual esteja pendente ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, em relação ao qual tenha sido averbada a pendência de processo de execução, hipoteca judicial ou outro ato constritivo e, por fim, nas situações em que, ao tempo da alienação ou oneração, pendia ação capaz de reduzir o devedor à insolvência, além de outras hipóteses legalmente previstas, dentre as quais está inserida a fraude à execução fiscal tributária, positivada no artigo 185 do Código Tributário Nacional (CTN).

Uma vez reconhecida como praticada em fraude à execução, a alienação torna-se ineficaz em relação ao exequente, a significar que o bem alienado, ainda que atualmente integrante do patrimônio de terceiro, permanece sujeito à execução, podendo sobre ele concretizar-se a responsabilidade patrimonial do executado. Noutras palavras, o terceiro, atual titular do domínio sobre o bem cuja alienação afirma-se fraudulenta, vê-lo-á alcançado pela responsabilidade patrimonial do devedor-executado como se ainda lhe pertencesse.

Diferentemente da fraude contra credores, que demanda a deflagração de um processo, mediante o qual o credor prejudicado deverá aduzir seu pedido anulatório do negócio jurídico realizado, na fraude à execução dispensa-se a deflagração de uma nova relação processual, de modo que a alegação e o reconhecimento da fraude pode operar-se no próprio feito executivo, assegurando-se ao terceiro adquirente do bem, por evidente, valer-se de oportunos embargos, mediante os quais se lhe oportunizará o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Importância dos marcos temporais

Assim, ao cotejar os institutos da fraude contra credores e da fraude à execução, pode-se notar, de plano, os diferentes momentos em que operam. Enquanto a fraude contra credores tem lugar desde quando existente uma obrigação jurídica suscetível ao inadimplemento em decorrência do esvaziamento patrimonial, na fraude à execução supõe-se a pendência de processo judicial executivo, ou apto a ensejar futura execução.

Quando se pretende refletir sobre a sujeição de bens de terceiros à pretensão executiva tributária, todavia, não basta empreender uma mera transposição de tais institutos, moldados à luz dos ramos do Direito Civil e Processual Civil. Antes, é necessário focar a obrigação tributária, de modo a identificar com precisão os marcos temporais que balizam o interesse de agir da Fazenda Pública.

Com efeito, a obrigação tributária surge mediante o ato de aplicação, levado a cabo pelo contribuinte — nos casos de autolançamento — ou pela Fazenda Pública, o qual constituirá, a partir da identificação, no mundo social, do evento abstratamente previsto na hipótese da regra-matriz de incidência tributária, a relação jurídica obrigacional, através da qual um determinado sujeito passivo estará obrigado a pagar tributo à pessoa política competente.

Somente a partir desse momento será possível à Fazenda Pública cogitar de fraude contra credores, diante de eventual alienação praticada pelo devedor, uma vez que, a teor do artigo 158, § 2º do Código Civil, apenas credores que já o eram ao tempo da celebração do negócio jurídico podem pleitear sua anulação sob este fundamento.

Por outro lado, pendente a constituição definitiva do crédito tributário, a que alude o artigo 174 do CTN, seja em decorrência do oferecimento de impugnação ao lançamento de ofício, seja em razão da concessão de tutela provisória suspensiva da exigibilidade obtida pelo contribuinte após o autolançamento, ainda não será possível falar em fraude à execução, a qual reclama, consoante disposto no artigo 185 do mesmo Código, a prévia inscrição em dívida ativa.

Assim, entre a constituição do crédito tributário, pelo contribuinte ou pela Fazenda Pública, e a sua definitividade, seguida da inscrição [1] em dívida ativa, o instrumento processual disponível para que o Fisco possa alcançar bens de terceiros, sobre os quais pretenda ver recair a execução fiscal, é a ação revocatória ou pauliana. Nela a Fazenda Pública deverá demonstrar cuidar-se de alienação gratuita ou onerosa, desde que, neste último caso, se trate de insolvência notória ou que deveria ser conhecida do adquirente.

Neste cenário, a medida cautelar fiscal poderá ser utilizada como instrumento processual auxiliar à ação revocatória aparelhada, uma vez que terá lugar precisamente a hipótese excepcional do artigo 2º, V, b da Lei nº 8.397/1992, o qual admite o deferimento do provimento acautelatório antes mesmo da constituição definitiva do crédito tributário, quando o devedor, após notificado, “põe ou tenta por seus bens em nome de terceiros”.

Por outro lado, tratando-se de alienação posterior à inscrição em dívida ativa, a qual resulte em esvaziamento patrimonial do executado, ou seja, sem que tenham sido reservados bens suficientes à satisfação da dívida, o bem alienado encontra-se automaticamente sujeito à execução fiscal, como se ao devedor executado ainda pertencesse, porquanto a alienação empreendida afigura-se ineficaz contra a Fazenda Pública, à luz do referido artigo 185, caput do CTN.

Nesta outra situação, caso já tenha sido ajuizada a Execução Fiscal, a pretensão fazendária de alcance do referido bem instrumentalizar-se-á nos autos do próprio executivo fiscal em curso, mediante requerimento fundamentado de ineficácia da alienação do bem, com a comprovação dos requisitos legais. E, à vista do pleito, incidirá o artigo 792, § 4º do CPC/2015, devendo o Juiz determinar a intimação do adquirente para que se manifeste quanto à alegação de fraude à execução, assegurada a oposição de Embargos de Terceiro.

Cumpre notar ainda que, caso tenha se operado a inscrição em dívida ativa, mas ainda inexista execução fiscal ajuizada, a Fazenda Pública também poderá lançar mão de medida cautelar fiscal, igualmente fundada no artigo 2º, V, b da Lei nº 8.397/1992, bem como no artigo 4º § 2º do mesmo diploma legal, segundo o qual “a indisponibilidade patrimonial poderá ser estendida em relação aos bens adquiridos a qualquer título do requerido ou daqueles que estejam ou tenham estado na função de administrador (§ 1°), desde que seja capaz de frustrar a pretensão da Fazenda Pública”.

Percebe-se que, por força do artigo 185 do CTN, o momento da inscrição em dívida ativa é, atualmente, o átimo para a definição dos instrumentos processuais aptos a viabilizar o alcance, pela Fazenda Pública, de bens alienados pelo devedor a terceiros, a fim de que sobre eles venha a recair a atividade executiva.

É bem verdade que, ao exame de tal dispositivo, não se pode deixar de notar o evidente descompasso que de há muito existe entre a disciplina constante do CTN e aquela vigente na legislação processual para as execuções cíveis não tributárias.

Isto porque, enquanto o estatuto processual vem, desde a reforma empreendida pela Lei nº 11.382/2006, que acrescentou o art. 615-A ao CPC/1973, estabelecendo os mecanismos adequados para que o exequente possa promover averbação nos registros de bens sujeitos à penhora ou arresto da pendência do processo executivo, os quais foram aperfeiçoados com o CPC/2015, na seara processual tributária reafirma-se, sobretudo a partir do julgamento do Recurso Especial repetitivo nº 1.141.990/PR, a plena suficiência da inscrição em dívida ativa para que se presuma, em caráter absoluto, a fraude à execução, independentemente de prévia averbação.

Tal conclusão, todavia, tende a ganhar novas cores com a amplificação da averbação pré-executória, trazida pelo artigo 20-B da Lei nº 10.522/2002, prevista no referido diploma para os créditos inscritos em dívida ativa da União, e que se espera ver ampliada para todas as Fazendas Públicas na reforma proposta pelo Projeto de Lei 2.488/2022, em trâmite no Senado Federal, permitindo-lhes promover a averbação de suas certidões de dívida ativa, o que, inegavelmente, há de conferir mais efetividade ao processo de execução fiscal, sem prejuízo da indispensável tutela da boa-fé e da segurança jurídica na circulação econômica de bens.

 


[1] Ato de controle de legalidade que documenta a instauração da relação jurídica de responsabilidade patrimonial

Autores

  • é procurador do estado de Goiás, com atuação nos tribunais superiores, mestre pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet, professor do Curso de Especialização em Direito Tributário e do Curso de Extensão Processo Tributário Analítico do Ibet, pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.

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