Embargos Culturais

A autobiografia intelectual de Karl Popper

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9 de fevereiro de 2025, 8h00

Karl Popper (1902-1994) notabilizou-se como um dos mais importantes pensadores do século 20. Nasceu na Áustria. Faleceu na Inglaterra. Pensador dos grandes temas e problemas da ciência e dos métodos científicos, também contribuiu imensamente para os debates nas ciências sociais. É o caso de dois de seus livros que suscitam intensa reflexão em torno das teorias da história e do uso das profecias históricas, em forma de falsidade: A pobreza do historicismo e A sociedade aberta e seus inimigos.

Arnaldo Godoy

Sua autobiografia intelectual (há uma edição em português publicada pela Universidade de Brasília, em colaboração com a Universidade de São Paulo, de 1977) foi traduzida pelos competentíssimos Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.

Um livro desafiador. Há registros da memória pessoal de Popper, muitos. Há referências a um momento histórico conturbadíssimo (o entreguerras e o tempo da 2ª Guerra). Há digressões profundas sobre epistemologia, física, matemática, música, ciência política, e tantos outros assuntos que ocuparam uma vida fascinante.

Em meio a essas digressões, Popper revela a formação de seu pensamento crítico, influenciado pela filosofia kantiana e pelo ceticismo científico, e seu permanente embate contra o dogmatismo intelectual. Em suas páginas, encontram-se relatos detalhados sobre o desenvolvimento do conceito de falseabilidade e sua luta para afastar a ciência da armadilha do verificacionismo, que, segundo ele, transformava o conhecimento em uma inútil busca por certezas.

Há relatos sobre encontros com personalidades marcantes: Albert Einstein, Friedrich Hayek, Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russel. Popper enfatiza o débito que tinha para com Hayek, a quem agradecia por intervenções quando Popper foi para a Nova Zelândia (protegendo-se do nazismo, Popper era judeu) e quando foi lecionar em Londres, na prestigiosa London School of Economics.

Popper faz referência a um célebre episódio ocorrido com Wittgenstein, em 1946, no Clube de Ciências Sociais de Cambridge. Mario Vargas Llosa, admirador de Popper, faz menção ao episódio no imperdível O Chamado da Tribo.

Conto aqui. Popper fora chamado para discutir com Wittgenstein um postulado desse último, para quem não haveria problemas filosóficos genuínos. Para Wittgenstein, só haveria “charadas linguísticas”.

Popper era um crítico da filosofia da linguagem e de obsessões sintáticas e semânticas. Para Popper, não deveríamos perder tempo com problemas de palavras e de seus significados. O que deveria ser encarado com seriedade são questões de fato. Não se deve abandonar problemas reais em favor de problemas verbais. Concordo. Especialmente em relação a algumas discussões de aspartame jurídico que poluem os imaginários giros linguísticos de filosofias do Direito desprovidas de contato com a vida real.

No célebre debate, Wittgenstein se enfurecia e gesticulava com um atiçador de fogo, ameaçando Popper, de quem era desafeto. Wittgenstein pôs um desafio: “Dê-me o exemplo de regra moral!”. Popper, com tranquilidade, respondeu: “Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo!”. Furioso, Wittgenstein deixou o recinto, batendo a porta…

Em sua autobiografia intelectual, Popper fixa o pano de fundo dos dois livros acima mencionados (A pobreza do historicismo e A sociedade aberta e seus inimigos). Nessas obras, há uma portentosa crítica a todas as formas de autoritarismo, tanto da esquerda quanto da direita.

Em A Pobreza do Historicismo, Popper critica concepções historiográficas que insistem que a história tem um sentido, uma marcha, um significado, um objetivo. O alvo é o sectarismo marxista. Para a doutrina (sic) marxista, a história é regida por leis que definem um inevitável caminho para o triunfo e a consolidação da ditadura do proletariado. Para Popper, não há como se imputar leis de causa e efeito para a História, como se fosse mais um dado das ciências físicas. A física social (Augusto Comte, na origem da expressão) é uma quimera.

Em A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Popper criticou o pensamento totalitário que radica em Platão, em Hegel e em Marx. Lê-se na autobiografia que Sociedade Aberta originalmente se chamaria Os Falsos Profetas: Platão, Hegel e Marx.

O pai de Karl Popper era um advogado militante, ainda que fosse mais interessado em história, filosofia e literatura. Popper conta que a casa paterna era cheia de livros. Um ambiente típico das famílias cosmopolitas de Viena no início do século 20.

O leitor terá muito material para refletir sobre a guerra, sobre a questão judaica, sobre temas de imigração. Interessantes são as reflexões sobre a passagem de Popper pela Nova Zelândia e pela Inglaterra. No fecho, Popper enfatiza que nossas vidas são dignificadas quando nossas teorias e nossos filhos se tornam independentes de nós mesmos e nos transcendem. Nesse momento, libertamo-nos do pântano de nossa ignorância. A expressão é dele. Nada mais socrático.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular do mestrado e doutorado do UniCeub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Délhi, Berkeley, Frankfurt, Málaga).

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