Novos contornos do dever de diligência
8 de fevereiro de 2025, 11h21
Os administradores de sociedades devem observar uma série de deveres que pautam a sua atuação, que podem ser classificados como gerais ou específicos. Os deveres gerais são aqueles que decorrem de normas com linguagem ampla que impõe padrões de conduta. Não impõem condutas pré-determinadas [1], mas, sim, standards que “exprimem uma linha de conduta, uma diretiva geral ou uma orientação que vão informar a conduta social média e servirão de medida ou elemento de comparação para o juízo de casos concretos” [2]; e os deveres específicos abrangem, muitas vezes, obrigações de resultado [3], determinando aos administradores condutas específicas [4].

Dentre os vários deveres gerais impostos aos administradores, destaca-se o dever de diligência, comumente indicado como o dever de maior importância, pois constitui “a transposição de um princípio geral de direito, que sempre acompanha a execução de qualquer obrigação, para o âmbito da gestão das companhias” [5]. Há quem sustente, inclusive, que dele decorreriam todos os demais deveres atribuídos aos administradores [6].
Ocorre que a decisão do Colegiado da CVM no PAS nº 19957.007916/2019-38 reabriu o debate sobre o dever de diligência, relativizando sua compreensão tradicional. Este artigo analisa os contornos tradicionais desse dever e as possíveis mudanças introduzidas pela decisão, ressaltando a importância de sua observância na atuação dos administradores.
Contornos tradicionais do dever de diligência
O dever de diligência tem como fonte legal o artigo 153 da Lei nº 6.404/1976 [7] e artigo 1.011 do Código Civil [8]. Ambos os dispositivos têm previsões semelhantes, determinado que o administrador deve atuar se valendo da diligência que “todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”.
A sua literalidade leva à conclusão de que se esperaria dos administradores adotarem o padrão de conduta do chamado bonus pater familias . Contudo, o dever de diligência exige mais do que uma atuação do bom pai de família, pois “incumbe ao administrador atuar buscando a consecução do objeto social e visando à obtenção de lucros (artigo 2º). Assim, o bom pai de família deve procurar manter o patrimônio, já o administrador deve buscar multiplicá-lo” [9].
Por consequência, o administrador deve observar padrões elevados de diligência. E, “[p]ara aferição do comportamento do diligente do administrador, deve-se examinar se ele atendeu aos deveres de: (i) se qualificar para o cargo; (ii) bem administrar; (iii) se informar; (iv) investigar; (v) vigiar” [10]; porém, esses altos padrões de conduta não alteram o fato de ser-lhe imputada uma obrigação de meio [11]. O administrador deve empregar os melhores esforços para atender aos padrões de conduta impostos, mas sua observância não exige um resultado específico.
A experiência estrangeira é similar. Nos Estados Unidos, o dever de diligência é definido principalmente pela jurisprudência. O sistema é fortemente influenciado pela “Business Judgment Rule”, que presume que os diretores agem de boa-fé, com razoável cuidado e no melhor interesse da companhia, oferecendo-lhes ampla proteção contra responsabilidade pessoal. No entanto, os diretores têm deveres fiduciários tanto para a empresa quanto para os acionistas, incluindo obrigações de transparência e lealdade [12].
No Reino Unido, o dever de diligência estabelece uma obrigação de cuidado, habilidade e diligência. O foco está nos processos de tomada de decisão, garantindo que os diretores ajam de forma responsável sem interferir em sua discricionariedade. Além disso, o sistema adota o princípio de responsabilidade coletiva, o que implica que todos os administradores devem demonstrar um nível básico de conhecimento sobre os assuntos da companhia, independentemente de suas funções específicas [13].
O que se tem, portanto, é que o dever de diligência, em seus contornos tradicionais, impõe ao administrador padrões de conduta elevados que vão além do que seria esperado do bonus pater familias. Decorre de tal dever uma obrigação de meio a partir da qual se exige do administrador os melhores esforços no exercício de suas funções, não lhe sendo exigido um resultado específico. Entretanto, esses contornos foram relativizados no PAS nº 19957.007916/2019-38.
PAS 19957.007916/2019-38 e novos contornos do dever de diligência
Em 19 de dezembro de 2024, o Colegiado da CVM concluiu o julgamento do PAS nº 19957.007916/2019-38. Foram analisadas as condutas de dois diretores da Vale S/A (Diretor Presidente e Diretor de Ferrosos) relacionadas ao incidente ocorrido no Município de Brumadinho, no Estado de Minas Gerais, em que, no ano de 2019, houve um rompimento de uma barragem de rejeitos, ocasionando um desastre de inédita magnitude.
No julgamento, os diretores da CVM entenderam que, por parte do diretor presidente, não houve violação ao dever de diligência (artigo 153 da Lei nº 6.404/1976); porém, em relação ao diretor de Ferrosos, o entendimento foi diverso, tendo sido, por maioria, condenado ao pagamento de multa no valor de R$ 27 milhões por violação ao dito dever.
Ao analisar a possível violação ao dever de diligência pelo diretor de Ferrosos, o relator, diretor Daniel Maeda, após mencionar que o dever de diligência não obrigaria o administrador à “efetiva obtenção de resultados satisfatórios”, limitando-se à análise do “comportamento do administrador, de forma que um eventual resultado negativo, por si apenas, não desqualifica sua atuação” (§ 9). Em seguida, concluiu que, as melhorias implementadas pela Vale após o desastre de Mariana em 2015 foram significativas, mas surgiram em resposta a uma tragédia que exigiu ações imediatas. Além disso, pontuou ser crucial comprovar que essas medidas produziram resultados efetivos, e não apenas atenderam a exigências burocráticas sem impacto prático (§§ 42-43).
Não se pode ignorar todo o cuidado dado ao caso pelo diretor Daniel Maeda, que analisou individualmente os subdeveres decorrentes do dever de diligência que entendia violados; porém, talvez por uma questão mais de semântica do que substancial, o conteúdo dos parágrafos acima levantou dúvida sobre uma possível relativização do entendimento de que o dever de diligência imporia aos administradores uma obrigação de meio, e não de resultado.
Sobre essa discussão, o diretor João Accioly, o qual divergiu do voto do relator sobre a condenação do Diretor de Ferrosos, expressou a sua preocupação. Ao manifestar o seu voto, além de expor que o desastre se deu por uma causa imprevisível, destacou que, além da necessidade de o colegiado não poder decidir a partir de um viés de retrospectiva (referenciado como “hindsight bias”), as medidas implementadas pelo diretor de Ferrosos teriam sido razoáveis e não permitiriam a conclusão de que teria tido uma postura negligente (§ 33).
Os diretores Otto Lobo e João Pedro Barroso buscaram afastar a ideia de um resultado específico esperado do diretor de Ferrosos, mantendo o entendimento do dever de diligência como obrigação de meio. No entanto, Otto Lobo destacou a necessidade de maior empenho do diretor estatutário em garantir a segurança das barragens e evitar a materialização de riscos com alto potencial de responsabilidade (§ 19).
Por consequência, parece-nos que era, sim, esperado um resultado específico de desempenho diligente de suas atividades (i.e., evitar o rompimento da barragem), ainda que isso seja expressamente negado nos votos que formaram maioria. Com isso, a compreensão dada ao dever de diligência no caso se aproximaria do chamado dever de legalidade, o qual imporia não apenas que administrador agisse conforme a lei, mas, também, que constituísse sistemas de controles internos eficientes [14].
Conclusão
Analisado o caso a decisão proferida, a primeira pergunta que surge é a seguinte: será que realmente são esses os contornos que se quer dar ao dever de diligência, impondo ônus excessivos aos administradores? Ainda que possa se dar uma resposta de pronto, indicando a necessidade de preservação dos contornos originais do dever de diligência, não há como dizer em absoluto que essa será a melhor alternativa.
Como destacado em todos os votos, o cumprimento do dever de diligência demanda uma análise cuidadosa do caso concreto para investigar o que era esperado de um administrador cuidadoso no desempenho de suas funções. Entretanto, para além dessa análise, deve-se (1) evitar o viés de retrospectiva e (2) avaliar as consequências de uma possível aplicação mais severa do dever de diligência. A observância dessas questões poderá, em um só tempo, afastar uma aplicação equivocada do artigo 153 da Lei 6.404/1976 e as consequências negativas de tal aplicação, como a perda de interesse por profissionais qualificados em ocupar os cargos de administração e o aumento dos valores dos seguros dos administradores, referidos como D&O [15].
Finalmente, é seguro afirmar que os impactos dessa decisão serão sentidos também na construção e registro dos chamados “três P’s” (práticas, políticas e processos) – a espinha dorsal da implantação de sistemas de governança corporativa. Registros concretos da análise de risco nas tomadas de decisão pelos administradores de sociedades podem ser fatores decisivos em cenários como esse ora comentado, especialmente para aquelas hipóteses qualificadas nas matrizes de risco no quadrante baixa frequência e alta gravidade [16].
[1] GONZALES, Gustavo Machado. CORRÊA, Bruno Tostes. Dever de legalidade dos administradores de sociedades. Revista semestral de direito empresarial – nº 30, janeiro/junho 2022. Rio de Janeiro: Renovar, pp. 3-4.
[2] PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 205, pp. 34-35.
[3] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A e as ações correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 183.
[4] GONZALES, Gustavo Machado. CORRÊA, Bruno Tostes. Dever de legalidade dos administradores de sociedades. Revista semestral de direito empresarial – nº 30, janeiro/junho 2022. Rio de Janeiro: Renovar, pp. 4-5.
[5] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A comentada. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2015, v.3, p. 115.
[6] LIMA, Osmar Brina Corrêa. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 56.
[7] Art. 153 da LSA: “O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.”
[8] Art. 1.011 do Código Civil: “O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.”
[9] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A comentada. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2015, v.3, p. 117.
[10] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A comentada. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2015, v.3, p. 120.
[11] RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 210.
[12] GERNER-BEUERLE, Carsten; SCHILLIG, Michael. Comparative Company Law. Oxford University Press, 2019, p. 480-506.
[13] GERNER-BEUERLE, Carsten; SCHILLIG, Michael. Comparative Company Law. Oxford University Press, 2019, p. 473-480.
[14] GONZALES, Gustavo Machado. CORRÊA, Bruno Tostes. Dever de legalidade dos administradores de sociedades. Revista semestral de direito empresarial – nº 30, janeiro/junho 2022. Rio de Janeiro: Renovar, p. 59.
[15] Afinal, não seria a primeira vez que isso ocorre na história recente dos escândalos corporativos no Brasil. Eventos de grande magnitude como a Lava-Jato e a fraude contábil na cifra de 20 bilhões de reais na Americanas têm o efeito de tornar a análise do seguro D&O mais criteriosa pelas seguradoras, além de impactar as taxas cobradas. Exemplificativamente, ver: SANTOS, Gilmar. Escândalo da Americanas aumenta critérios para análise do seguro D&O no país. InfoMoney, 14/02/2023, disponível em: <https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/escandalo-da-americanas-aumenta-criterios-para-analise-do-seguro-do-no-pais/>.
[16] Sobre o tema, ver: RIBEIRO, Milton Nassau. Governança Corporativa: Guia Prático de Implementação. São Paulo: Quartier Latin, 2024, pp. 130-131.
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