Crimes de lavagem de dinheiro e tráfico humano
8 de fevereiro de 2025, 9h20
É comum haver algum atraso e distanciamento entre a pacificação da jurisprudência de determinados crimes em cortes estatais e as adaptações criativas que criminosos fazem desses mesmos crimes para propiciar e potencializar outros esquemas mais complexos, nocivos e lucrativos. O crime de lavagem de dinheiro se enquadra perfeitamente nesta descrição.
No Brasil temos a Lei 9.613/1998 e sua alteração posterior, Lei 12.683/2012, que, apesar de tipificarem satisfatoriamente os crimes que descrevem, parece ter sido objeto de preocupação muito mais de mentes tributárias do que de penalistas propriamente, talvez consequência de um povo mais receptivo a um governo central e arrecadador voraz, do que de crimes desumanos e de motivação política (terrorismo).
Nos Estados Unidos, após as tragédias das Torres Gêmeas em Nova York, em setembro 2001, esse tipo penal foi alçado a um dos principais pilares da estrutura de grandes organizações criminosas transnacionais a partir da aprovação do USA Patriot Act, interessante acrônimo que já informava o objetivo que pretendia, Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act, ou seja, lei para a união e fortalecimento da América pela provisão de instrumentos apropriados e requeridos para interceptar e obstruir o terrorismo.
Considerando a dificuldade de se prevenir o terrorismo, dada sua capilarização e camuflagem na sociedade, a lei foi aprovada e deixou claro seu propósito de inviabilizar seu acesso ao sistema financeiro global, e foi rapidamente replicada para o mundo, através das agências de inteligência financeira (FIUs, em inglês, Financial Inteligence Units). Por aqueles anos, o sistema financeiro se preparava para o incrível aumento dos fluxos financeiros (em volume e velocidade), provocado pelo globalismo comercial, mas ao mesmo tempo, ainda estava à mercê de grupos criminosos tribais. Para a população em geral, o desconforto criado nos controles de embarque nos aeroportos foi um prenúncio pequeno de uma regulação muito maior que surgiria entre as nações.
Apesar de vários bons artigos pela internet, posto de forma simples, lavagem de dinheiro é a atividade de transformar, disfarçada e clandestinamente, dinheiro de origem criminosa em dinheiro apto ao uso lícito, propiciando tanto o intuito final de gastos ostentatórios como o financiamento para outros crimes, como o terrorismo e tráfico humano. A técnica de “follow the money” é a principal para rastreio dos rabos dos ratos.
Há uma clássica distinção entre crimes de lavagem de dinheiro e terrorismo a partir da origem dos fundos: apesar de o primeiro sempre envolver a procedência de uma atividade ilegal, que precisa ser omitida/lavada, pode ser meio preparatório essencial para o segundo; este, pode ser financiado com dinheiro lícito, mas também precisa ser disfarçado e clandestino. Tal simbiose pode ser bastante complexa, típico de grandes organizações, mas por envolver dinheiro grosso, padrão básico da corrupção humana, dá azo a esquemas muito piores, como tráfico humano e sua sub-variante ainda mais repugnante, o abuso sexual infantil.
Esse tipo de crime, ainda pouco enfrentado em nossos tribunais, conforme minha sugestão introdutória, envolve a coerção infantil a atos sexuais performáticos, praticada pelo agente, o traficante, e rende lucros vultosos (em 2015 foi registrado rendimento de US$ 31,6 bilhões[1]). Aliás, o dinheiro é tanto causa como consequência, atua tanto no exorbitante financiamento inicial da operação, com foco no retorno ou puramente na lascívia, mas também é resultado final e dependente da lavagem. Como se supõe, a atividade está muito relacionada a países de alto risco (pobreza, conflitos políticos, desastres naturais, guerra etc.), mas os Estados Unidos são o líder de consumo e também de produção desse tipo de material.
As atividades de abuso sexual infantil com transmissão ao vivo (livestreaming) e a produção de materiais de abuso sexual infantil (CSAM, em inglês) são moeda básica compartilhada entre os predadores. Os pagamentos por transferências eletrônicas, extremamente rápidos e em pequenas quantias (abaixo de US$ 100), e a utilização crescente de criptomoedas, desafiam os controles de pesquisa dinâmica dos bancos sobre seus correntistas, a primeira linha de defesa do sistema financeiro. Pior ainda são os métodos de pagamento direto de pessoa a pessoa, ou P2P (peer-to-peer, person-to-person), por meio de aplicativos de celulares, que coletam, transferem e lavam o dinheiro, camuflando a operação na própria rede do sistema financeiro internacional.

Segundo a ONU, em relatório disponibilizado em 2024 (Unodc) [2], o tráfico de seres humanos é estimado como a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo e está presente em todas as regiões (o relatório cobriu 156 países). Estima-se em 50 milhões de vítimas de escravidão no mundo todo, mais do que em qualquer outro momento da história [3].
Mais de 70% das vítimas são mulheres e meninas, estas são um terço do total e a exploração sexual é sempre o fim pretendido. Importante ressaltar que o número de condenações caiu 27% em 2020, em relação ao ano anterior, com quedas maiores no Sul da Ásia, 56%, América Central e Caribe, 54%, e América do Sul, 46% (!). O número de suspeitos, presos ou indiciados por tráfico de pessoas caiu 70% em 2020, comparado com 2019. No período 2020-2022 o número de condenados voltou aumentar a 36% em relação a 2019.
Tecnologias de monitoramento
De outro lado, o bom, a Coalisão de Resgate Infantil (CRC, Child Rescue Coalition [4], em inglês), tem usado, nos últimos 15 anos, dados e tecnologias de apoio a investigações internacionais e resgates de menores sexualmente explorados, monitorando permanentemente a internet em busca de carregamentos e compartilhamentos de materiais pornográficos (downloading/sharing). Seu moderno programa de análise de dados e rastreio foi distribuído gratuitamente a agências de investigação do mundo inteiro. Em 102 países, já foram identificados mais de 72,5 milhões de endereços de IP que compartilharam e baixaram imagens e vídeos sexuais de crianças.
Investigadores especialistas em lavagem de dinheiro, atentos a alertas específicos, usam análises de dados e outros indicadores de atividades criminosas. Os alertas de indicadores secundários, como pagamentos P2P para profissionais do sexo, despesas com hotéis locais, saques em caixas automáticos durante a madrugada, depósitos por meio de P2Ps de terceiros não relacionados, contas bancárias de uso exclusivo, etc., filtram a amostragem maior para clientes que provavelmente estão envolvidos em atividades ilegais ou potencialmente envolvidos na execução ou suporte/financiamento de redes de tráfico humano. Seguindo-se o caminho deixado pela lavanderia do dinheiro sujo chega-se aos crimes complexos (e conexos) de grandes organizações.
Embora ainda esteja distante do imaginário popular, que ainda encerra as figuras dramáticas e poéticas da escravidão do período colonial — comércio legalizado e bastante comum nas jovens cidades do mundo novo —, a escravidão moderna possui características tão desumanas e cruéis, ou até mais do que aquela, acrescentando ao conhecido trabalho escravo e exploração sexual, procedimentos “médicos” para extração e venda de órgãos das vítimas. Percorre trajeto inverso ao de outrora, pois costuma aprisionar as vítimas em cidades para explorá-las em lugares afastados como subúrbios de cidades ou países de selvas inóspitas.
As apostas aumentaram muito e os desafios cresceram. Cabe sempre a reflexão de quem foi mais beneficiado com o incremento trazido pelas novas tecnologias, o lado do bem ou o dos criminosos, mas, de uma forma ou de outra, a conscientização e treinamento, principalmente das agências de proteção governamentais e privadas, é condição fundamental para o controle e redução dos crimes que aqui foram tratados.
[1] Jeremy Haken. «Transnational Crime In The Developing World» (PDF). Global Financial Integrity. Consultado em 16 de janeiro de 2015. Cópia arquivada (PDF) em 18 de abril de 2015
[2] “Global Report on Trafficking In Persons 2024”, United Nations Office on Drugs and Crime, December 2024, https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2024/GLOTIP2024_BOOK.pdf
[3] “Top human trafficking prosecutors unite in bid to boost global conviction rates”, Justice and Care, março de 2024, https://justiceandcare.org/news/top-human-trafficking-prosecutors-unite-in-bid-to-boost-global-conviction-rates/
[4] Child Rescue Coalition, https://childrescuecoalition.org/
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