Interesse Público

Quando as mesas mudam de lugar: delegação de competências administrativas

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  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

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6 de fevereiro de 2025, 11h23

Imagine um tabuleiro de xadrez em que as regras do jogo estão estabelecidas, mas as peças podem — e devem — ser reorganizadas estrategicamente para avançar na busca de resultados. Essa imagem ilustra o fascinante paradoxo da administração pública brasileira: uma organização que necessita conjugar a previsibilidade e estabilidade das normas com a flexibilidade necessária para enfrentar desafios dinâmicos, estruturais e multissetoriais, continuamente renovados no plano econômico e social. Neste complexo xadrez administrativo, o legislador define as bases fundamentais — estabelece órgãos, entidades, competências, quadros de pessoal e recursos —, enquanto compete aos gestores públicos movimentar as peças no tabuleiro institucional por meio de instrumentos de organização como a delegação, a substituição e a avocação de competências.

Essas são ferramentas de estruturação adaptativa, ancoradas em leis, decisões individuais ou acordos infralegais, que efetivamente “mudam as mesas de lugar”: rearranjam as responsabilidades e o emprego de recursos dentro da administração pública para atender a exigências sociais em permanente transformação. No entanto, enfrentam atualmente no Brasil duas limitações, que considero interrelacionadas:

a) a precária disciplina legal vigente, lacônica e insuficiente;

b) excessos no controle público, que responsabiliza sem critérios precisos o gestor delegante por atos praticados pelo delegado.

Esses obstáculos comprometem a eficiência organizacional da administração pública brasileira. E evidenciam o descompasso entre a teoria e a prática: ferramentas pensadas para aumentar a capacidade adaptativa da administração são menos utilizadas do que poderiam e, quando são empregadas, geram insegurança jurídica e resultados limitados. De um lado, temos uma legislação administrativa omissa sobre vários aspectos da flexibilização organizacional. De outro, observamos um ambiente de controle que, ao responsabilizar gestores delegantes sem parâmetros claros, desencoraja práticas administrativas mais ágeis e colaborativas.

De forma resumida, pretendo examinar essa fragilidade da organização administrativa brasileira, com especial atenção à jurisprudência dos tribunais de contas sobre responsabilização por delegação de competências. A análise considera a aplicação que as Cortes de Contas fazem da teoria da culpa in eligendo (em escolher) ou in vigilando (em vigiar) como ponto de partida para uma reflexão mais ampla: como modernizar o arcabouço normativo administrativo para promover maior eficiência organizacional e ágeis relações interorgânicas e intersubjetivas no âmbito público sem comprometer fundamentos do Estado de Direito? Esta é a questão central que orientará uma investigação sobre o movimento das “mesas” — ou competências — no complexo tabuleiro da administração pública.

Delegação de competências: uma ferramenta de gestão plurissignificativa

A delegação de competências é dos mecanismos mais importantes para promover a eficiência na administração pública. No entanto, muitas vezes a expressão é empregada sem identificar com clareza o objeto referido: distingo a (a) delegação de competências intrassubjetiva (entre órgãos de uma mesma pessoa jurídica estatal), a (b) delegação de competências intersubjetiva (entre órgãos de pessoas jurídicas estatais distintas) e até a (c) delegação de competências intersubjetiva entre pessoas jurídicas estatais e pessoas jurídicas não integrantes da administração diretas ou indireta do Estado. As regras aplicáveis são distintas em cada caso e os desafios que suscitam de natureza diversa. Por limites de espaço, exploro nesta coluna apenas a delegação da primeira espécie.

Delegações intrassubjetivas: regras básicas e lacunas

As delegações intrassubjetivas são relativamente usuais e regidas pelas leis de organização e processo administrativo. A Lei Federal 9.784/1999, por exemplo, trata do assunto nos artigos 12, 13 e 14. O Decreto-lei 200/1967, aborda o tema sumariamente nos artigos 11 e 12.

Por esses singelos dispositivos, “um órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar parte da sua competência a outros órgãos ou titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados, quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial”, o que igualmente se aplica “à delegação de competência dos órgãos colegiados aos respectivos presidentes” (artigo 12, caput e §único, da Lei 9.784/1999).

Esse dispositivo deve ser harmonizado com o disposto no artigo 11 da Lei 9.784/1999, segundo o qual “a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos”.

Uma leitura apressada sugere ser difícil conciliar a cláusula da admissibilidade ampla da delegação referida no artigo 12, “se não houver impedimento legal”, com a cláusula de admissibilidade restritiva da delegação, prevista no artigo 11, ambos da Lei 9.784/1999, que a admite apenas “nos casos de delegação e avocação legalmente admitidos”.

Ocorre que, na sequência, a lei de processo indica quais os casos de delegação de competência não são legalmente admitidos: a) a edição de atos de caráter normativo; b) a decisão de recursos administrativos; c) as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade (artigo 13 da Lei 9.784/99).

Logo, de modo a harmonizar os dispositivos, deve-se entender que, salvo norma especial restritiva, todas as hipóteses que não estejam inseridas nas vedações do artigo 13 da Lei 9.784/1999 estão legalmente admitidas, sendo dispensada a autorização casuística.

Essa compreensão evidencia que a delegação de competências não é renúncia de competência. A autoridade delegante, com a delegação, permanece titular da competência, trespassando exclusivamente o exercício de poderes, encargos e deveres, e sempre de modo parcial, para o órgão ou a autoridade delegada.

A delegação intrassubjetiva é mera autorização de exercício para que órgão ou autoridade distinta do órgão ou autoridade titular da competência, desenvolva, sempre de modo parcial e revogável, em nome próprio e sob a própria responsabilidade, poderes, deveres e encargos cuja delegação a lei admite a atribuição.

Spacca

Por fim, a lei prescreve que o ato de delegação e sua revogação sejam publicados no meio oficial, especifiquem as matérias e poderes transferidos, os limites da atuação do delegado, a duração e os objetivos da delegação e o recurso cabível, podendo conter ressalva de exercício da atribuição delegada. Assegura ainda que a delegação seja revogável a qualquer tempo pela autoridade delegante e determina que as decisões adotadas por delegação devem mencionar explicitamente esta qualidade e considerar-se-ão editadas pelo delegado (artigo 14, caput e §§ 1ºa 3º, da Lei 9784/1999).

Entretanto, a lei de processo administrativo nada informa sobre diversos aspectos relevantes da matéria. Não esclarece se a subdelegação é permitida, ou se é presumida como admitida na delegação. Nada informa sobre como deve ser instrumentalizada a delegação entre órgãos e autoridades de mesma hierarquia (acordo, ato unilateral sob condição de aquiescência, convênio?). Não disciplina a possibilidade, ou não, do órgão ou autoridade delegada revogar atos praticados pela autoridade delegante emitidos antes da delegação. Embora preveja a necessidade de ser especificada a duração e os objetivos da delegação, não estabelece parâmetros temporais para a delegação ou se, na ausência deles, o prazo da delegação pode ser indeterminado. Não informa se a substituição do titular do órgão delegado acarreta a cessação da delegação ou se ela é transmitida automaticamente ao substituto eventual. Não estabelece exigências mínimas, de qualificação profissional ou técnica, para a escolha do agente ou órgão delegado, considerada a complexidade da competência cujo exercício é transferido. Nada informa sobre a possibilidade do órgão ou autoridade delegante permanecer, concomitantemente à delegação, exercitado as mesmas competências do órgão ou autoridade delegada, de modo concorrente ou acumulativo. E, o mais importante de tudo, não especifica parâmetros processuais e materiais relativos à supervisão do exercício dos poderes delegados pelo delegante.

Embora a doutrina reconheça ao delegante o direito de vigiar o uso dos poderes delegados, dado que a delegação não significa a renúncia ou a alienação da competência originária, a lei nada informa sobre como é viabilizada essa supervisão, sobretudo entre órgãos e autoridades de mesma hierarquia. Se a competência é inalienável, deveria a lei especificar — como exigência lógica — ao menos os deveres básicos de prestação de contas do órgão ou autoridade delegada perante o órgão ou autoridade delegante, com vista a viabilizar os deveres de superintendência.

O Decreto-lei 200/1967, lei federal de organização, é ainda mais lacônico. Embora proclame a delegação de competências entre os “princípios fundamentais” da administração federal (artigo 6º, IV), limita-se a informar que a “delegação de competência será utilizada como instrumento de descentralização administrativa, com o objetivo de assegurar maior rapidez e objetividade às decisões, situando-as na proximidade dos fatos, pessoas ou problemas a atender” (artigo 11), realizando assim confusão entre os conceitos de “descentralização administrativa” e “desconcentração administrativa”.

As delegações intrassubjetivas são sempre instrumentos de desconcentração (dispersão ou descompressão interna de competências entre órgãos integrantes de uma mesma pessoa administrativa). As delegações intersubjetivas é que podem ser instrumentos de descentralização administrativa, embora descentralização de exercício e não de titularidade de funções (transferência do exercício de competências administrativas entre órgãos de pessoas estatais distintas, na mesma unidade política ou entre unidades políticas distintas, ou ainda entre pessoas estatais e pessoas privadas externas ao aparato estatal).

Por fim, o Decreto-lei 200/1967, que tem força de lei, estabelece uma autorização genérica de delegação de competências de natureza intrassubjetiva, facultando ao presidente da República, aos ministros de Estado e, em geral, às autoridades da administração federal delegar competência para a prática de atos administrativos, conforme se dispuser em regulamento. Exige apenas que o ato de delegação indique com precisão a autoridade delegante, a autoridade delegada e as atribuições objeto de delegação. E nada mais informa ou prescreve.

É verdade que, ao menos no plano federal, pode-se invocar um antigo decreto de 1979, pouco referido nos livros de direito administrativo e em atos normativos posteriores, porém ainda vigente: o Decreto 83.937, de 6 de setembro de 1979. Ele responde a algumas das omissões que referi, mas sem força de lei, e sem tangenciar o problema fundamental da escolha do delegado e da supervisão ou controle interno dos atos do delegado pelo órgão ou autoridade delegante.

Responsabilização dos delegantes pelos atos ou omissões dos delegados

Em princípio, conforme a disciplina legal vigente, o delegado exerce a competência delegada em nome próprio e sob a sua própria responsabilidade. Recordo que, no plano federal, esta prescrição é expressa no artigo 14 da Lei 9.784/1999: os atos do órgão ou da autoridade delegada no âmbito do exercício dessa competência derivada devem explicitamente referir a delegação e serão considerados editados pelo delegado (artigo 14, §3º, da Lei 9.784/1999).

Essa previsão harmoniza-se com os termos da Súmula 510 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual: “Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe o mandado de segurança ou a medida judicial”.

Sequer a revogação da delegação afasta a responsabilidade do delegado pelos atos editados e a transfere para o órgão ou autoridade delegante, titular original da competência delegada. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, mesmo na hipótese de revogação da delegação, não se transfere ao delegante a responsabilidade pelos atos praticados pelo delegado na vigência da delegação (MS 23.411 AgR, rel. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 22/11/2000, DJ 09-02-2001).

A delegação de competências intrassubjetiva e interorgânica possui, por isso, efeitos administrativos e jurisdicionais. No plano administrativo, desconcentra atribuições e modifica a autoridade que receberá o recurso administrativo contrário ao ato da autoridade delegada. No plano jurisdicional, altera a jurisdição competente para conhecer de ações que impugnem os atos do delegado.

Por exemplo, se o presidente da República for competente para expedir a demissão de determinado servidor público, e delegar a ministro de Estado a competência para praticar o ato, o mandado de segurança que for impetrado terá de considerar a qualidade da autoridade delegada (o ministro de Estado), cabendo ao Superior Tribunal de Justiça (CF, artigo 105, I, “b”) processar e julgar, originariamente, o mandado de segurança do ato veiculado em portaria ministerial, não obstante essa punição disciplinar tenha derivado do exercício de competência delegada, que se exercida pelo Presidente da República atrairia a competência do Supremo Tribunal Federal (MS 23.559-MC/DF, rel. min. Celso de Mello – DJ 12/4/2000).

A doutrina igualmente salienta que a autoridade delegada fica “responsável pelo exercício ou prática das atividades delegadas, pois seria absurdo que o delegante transferisse atribuições e continuasse responsável por atos que não praticou” (v., Odete Medauar, Delegação Administrativa, in: Revista Forense, vol. 278/21-27, 26).

No entanto, na prática das Cortes de Contas a delegação tem sido alvo de críticas, sobretudo quando os resultados não atendem as expectativas. Um dos principais argumentos utilizados para responsabilizar autoridades delegantes é a teoria da culpa in eligendo. Segundo essa orientação, o delegante seria responsável por escolher inadequadamente o delegado, mesmo que não tenha participado diretamente dos atos irregulares praticados. Há inúmeros acórdãos que aplicam multas a secretários, prefeitos, reitores e diretores por irregularidades cometidas por delegados, sob o argumento de falha na escolha do delegado, supostamente sem atributos pessoais ou qualificação profissional suficiente para o bom desempenho da competência delegada, analisada circunstancialmente.

Outro argumento recorrente a chamada culpa in vigilando, atribuída ao delegante por falhas na fiscalização dos atos delegados, pela reiteração dessa deficiente supervisão, e pelo conhecimento efetivo ou potencial dos atos irregulares praticados.

Por outro lado, diversas decisões destacam que a responsabilidade da autoridade delegante não é automática, ou presumida, e sim apurada segundo as circunstâncias, e conforme os atos do delegado estejam efetivamente inseridos no âmbito da delegação:

“A culpa in vigilando é caracterizada pela falta de fiscalização sobre procedimentos exercidos por outrem. Contudo, não é possível o exercício da supervisão de forma irrestrita, sob pena de tornar sem sentido o instituto da delegação de competência e inviabilizar o exercício das tarefas próprias e privativas da autoridade delegante.” (Acórdão 1581/2017-1ª Câmara, Sessão 14/3/2017, rel. José Mucio Monteiro).

“A autoridade delegante pode ser responsabilizada sempre que verificada: a) a fiscalização deficiente dos atos delegados, pela lesividade, materialidade, abrangência e caráter reiterado das falhas e pelo conhecimento efetivo ou potencial dos atos irregulares praticados (culpa in vigilando); ou b) a má escolha do agente delegado, comprovada circunstancialmente em cada situação analisada (culpa in eligendo)” (Acórdão 8799/2019-1ª Câmara, Sessão 3/9/2019, rel. min. Benjamin Zymler).

Quando o gestor, discricionariamente, opta por delegar suas atribuições, assume o ônus de fiscalizar os atos do seu delegado, podendo ser responsabilizado pela chamada culpa in vigilando, salvo nas situações em que o subordinado exorbitar das atribuições delegadas, caso em que a responsabilidade recairia exclusivamente sobre o delegado. (Acórdão 2473/2007-Primeira Câmara, Sessão 21/08/2007, relator Marcos Vinicios Vilaça).

“A delegação de competência para execução de despesas custeadas com recursos públicos federais não exime de responsabilidade a pessoa delegante, porque inadmissível a delegação de responsabilidade, devendo responder pelos atos inquinados tanto a pessoa delegante como a pessoa delegada, segundo a responsabilidade de cada uma” (TCU, Acórdão 248/2010-Plenário | Relator: Walton Alencar Rodrigues).

Entendo que essas decisões (e muitas outras) constituem respostas institucionais à omissão da legislação quanto às exigências para a escolha dos agentes delegados, a definição dos deveres de informação e prestação de contas destes perante os órgãos ou agentes delegantes, bem como de diversos aspectos referentes a continuidade, descontinuidade e controle das delegações em curso.

Conclusão

A delegação de competências é instrumento essencial para desconcentrar decisões, aproximar a administração pública dos cidadãos, acelerar processos decisórios no âmbito público. É relevante ainda para liberar as autoridades superiores de tarefas rotineiras e burocráticas, permitindo que se dediquem a tarefas mais complexas de planejamento e articulação de políticas públicas. No entanto, esses objetivos ficam comprometidos se a responsabilidade das autoridades delegantes pela própria delegação for apurada de modo impressionista, sem parâmetros claros do que devem exigir, receber e presumir, consideradas as finalidades da delegação, que não pode efetivamente servir de álibi para uma renúncia indevida de responsabilidades.

A delegação deve ser específica e ponderada em juízos de eficiência, possuir natureza temporária e experimental, pois não pode significar alienação plena de responsabilidades. Deve circunscrever o seu objeto e as suas finalidades de forma precisa, a partir de uma cultura organizacional que valorize a delegação e a cooperação. Em muitos casos, lamentavelmente, autoridades preferem centralizar decisões para evitar conflitos ou responsabilizações futuras. Para evitar essa patologia, responsabilidades apenas podem surgir da delegação por vícios do próprio processo de delegação, o que exige provas claras de negligência grave na eleição do delegado e na fiscalização dos seus atos. Afinal, quando as mesas mudam de lugar, algo deve mudar na organização das tarefas e responsabilidades, no fluxo interno da informação e das decisões, com vistas ao melhor desempenho organizacional da administração pública. E este é um campo em que ainda há muito trabalho a realizar. (Praia do Buracão, Salvador, 2.2.2025).

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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