Pela Carnavalização

Ideias de Warat ajudam a formar profissionais do Direito críticos, e não tecnocratas

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6 de fevereiro de 2025, 8h56

O ensino jurídico atual é desenhado para formar tecnocratas. Para mudar o cenário, professores poderiam se inspirar no conceito da “carnavalização do Direito”, que prega a inversão da ordem e o desenvolvimento de um senso crítico pelos alunos. A ideia é do jurista e filósofo do Direito argentino Luis Alberto Warat, cuja morte completa 15 anos em 2025.

Warat ajudou a consolidar programas de pós-graduação em Direto no Brasil

Warat lecionou por mais de 40 anos e publicou mais de 40 livros. Boa parte de sua carreira docente foi no Brasil, onde ele lecionou na Universidade Federal de Santa Maria (RS); Universidade Federal de Santa Catarina; Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre outras instituições. Ele morreu em 2010.

O jurista teve atuação fundamental na consolidação da pós-graduação stricto sensu em Direito no Brasil. Ele ajudou a introduzir diversas novas disciplinas no currículo dos cursos, como Epistemologia Jurídica, Semiologia do Direito, Teoria Crítica e Dogmática Jurídica, Direito e Ecologia Política, Direito e Psicanálise, e Direito e Arte.

O professor criticava o “senso comum teórico dos juristas”, que, segundo ele, designa condições implícitas de produção, circulação e consumo de verdades nas diferentes práticas do Direito. Em nome da boa técnica, da ideologia, das verdades e da razão científica, obtém-se a infantilização dos profissionais do Direito, que “não conseguem mais pensar por si, pensam a partir da mediação que o Estado exerce sobre a produção, circulação e recepção de todos os discursos de verdade”, afirma Warat no livro Introdução Geral ao Direito: Epistemologia Jurídica da Modernidade.

A maioria dos cursos de Direito brasileiros “não constrói juristas aptos a compreender e responder às demandas oriundas dessas diversas formas de vida e de conhecimento”, afirmam Ângela Espíndola e Luana Seeger no artigo O ensino jurídico no Brasil e o senso comum teórico dos juristas: um ‘olhar’ a partir de Warat, publicado no volume 5, número 2, da Revista de Direito da Faculdade Guanambi. Portanto, o acesso à universidade não basta para formar profissionais capazes da enfrentar as diversas e complexas situações da prática jurídica. situações diversas e complexas que pululam a práxis jurídica.

“Por isso, os juristas acabam desenvolvendo uma representação precária e limitada sobre o que é o Direito e a sua integração à sociedade, limitando-se somente à reprodução da boa técnica e da dogmática retroalimentando o senso comum teórico do jurista e erosando o sentido do Direito. Nesse contexto, é importante lembrar que a forma como estruturam-se os concursos públicos e o próprio exame da Ordem dos Advogados do Brasil alimentam essa realidade. Não se estuda para conhecer algo, se estuda para ser aprovado. Formam-se juristas sem saber crítico, embora assumam-se como críticos, mas preocupados em decorar conceitos e procedimentos técnicos”, apontam Espíndola e Seeger.

Carnavalização do Direito

Como alternativa a essa padronização e em prol da construção de um saber crítico, Warat defendia a “carnavalização do ensino jurídico”. A “carnavalização” é um conceito elaborado pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin. Segundo ele, no carnaval há uma suspensão das normas e dos valores, além da supressão de hierarquias sociais.

A partir do conceito de Bakhtin, Warat propõe a carnavalização do ensino jurídico, que consistiria na transformação da sala de aula em um grande palco, a aula, em uma peça, e o professor, em um ator. O objetivo seria dessacralizar não só o Direito, mas também o ensino do Direito e seus atores.

O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, foi aluno de Warat no período em que ele escreveu A Ciência Jurídica e Seus Dois Maridos, uma paródia a partir do romance de Jorge Amado Dona Flor e Seus Dois Maridos. Para Lenio, o jurista argentino foi distópico e profético.

Em um dos textos, Warat diz: “Como mortos que falam da vida, o saber tradicional do direito mostra suas fantasias perfeitas na cumplicidade cega de uma linguagem sem ousadias, enganosamente cristalina, que escamoteia a presença subterrânea de uma ‘tecnologia da alienação’. Utopias fantasiadas de si mesmas que explicam com razões consumidas pela história, novas formas de legitimação das práticas ilícitas do Estado”.

“O que o uso das redes sociais, a simplificação da linguagem e a inteligência artificial são senão a ‘tecnologia da alienação’? Daí Warat ser distópico. E, assim, profético. Por isso, propunha modos de inverter a ordem”, explica Lenio.

Segundo o jurista, poucos professores de Direito atualmente sabem inverter essa “ordem” da qual falava Warat. “Longe de qualquer possibilidade de carnavalização, o ensino está mais para desfile militar, com uma estética ultrapassada, alguns ‘marchando’ estilo ‘passo de ganso’. Professores que não conseguem ministrar aula sem powerpoint. E que dependem de resuminhos. E alunos que já não leem, em uma geração de analfabetos funcionais.”

Também aluno de Warat, o advogado André Karam Trindade, professor do programa de pós-graduação em Direito do Centro Universitário de Cascavel (Univel-PR), destaca que a carnavalização do ensino era não só uma tentativa de superar o senso comum teórico dos juristas, mas uma prática revolucionária e disruptiva.

Infelizmente, os professores de Direito, em sua maioria, não sabem “carnavalizar o ensino”, diz Trindade. “Na área do Direito, como todos sabem, a qualidade da educação tem se mostrado inversamente proporcional à quantidade de cursos de graduação em funcionamento. Isso vem agravado e acentuado enormemente pela indústria em torno dos concursos públicos.”

Até porque, ressalta, é crescente o desinteresse de alunos pelo conhecimento aprofundado. “Isso nos leva a pensar se ainda há espaço para a ‘carnavalização do Direito’. De todo modo, nas últimas décadas, salvo raras exceções, o legado waratiano permanece vivo, mas se encontra restrito aos programas de pós-graduação stricto sensu, isto é, aos cursos de mestrado e doutorado, onde atuam muitos professores que tiveram sua trajetória marcada pelo pensamento de Warat”, diz o advogado.

Combate à tecnocracia

Para ultrapassar o senso comum dos juristas e formar profissionais do Direito que tenham um conhecimento mais amplo e menos tecnocrata, é preciso lutar contra a simplificação, avalia Lenio Streck.

“No meu livro Ensino Jurídico e(m) Crise — Ensaio Contra a Simplificação, faço um conjunto de sugestões. Reformar a grade curricular; estudar mais Teoria do Direito (Filosofia, Hermenêutica etc.); abandonar a simplificação, atirando fora das aulas resumos e sinopses e coisas prêt-à-porters; explicar aos alunos deste o primeiro ano que o Direito é um fenômeno complexo e que não dá para desenhar; e que o Direito não é o que os tribunais dizem que é. O ensino jurídico deve enfrentar, de frente, a construção da ignorância que se estabeleceu há muitas décadas. Talvez nisso esteja o sentido da inversão da ordem da qual falava o meu professor Warat.”

É difícil enfrentar a formação tecnocrática, aponta André Karam Trindade. Afinal, a formação de juristas críticos não interessa às carreiras jurídicas. “Basta vermos a lógica que impera nos concursos públicos e suas bibliografias simplificadas. O tecnicismo e o concurseirismo andam de mãos dadas. Ambos são a antítese da proposta de Warat.”

Porém, o professor aponta algumas formas de ensinar estudantes a pensar criticamente. Uma delas é introduzir na sala de aula a ideia de que o Direito, atualmente, deve ser concebido como uma prática social interpretativa, narrativa, intersubjetiva e cultural. Outra é discutir os efeitos, diretos e indiretos, da presença e das promessas da inteligência artificial.

“Tudo parece apontar, novamente, para a necessidade de mais ‘operadores’ do Direito, quiçá ‘programadores’ jurídicos. Na contramão disso, um dos principais movimentos críticos que buscam resgatar a importância de uma formação mais completa e, sobretudo, humanista, inclusive adotando as premissas waratianas, é o movimento em torno do Direito e Literatura, que, na verdade, termina abarcando todas as Humanidades”, diz Trindade.

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