Opinião

Ainda há juízes em Brasília?

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4 de fevereiro de 2025, 16h18

É bem provável que nos tempos atuais, em que o ópio inebriante das redes sociais banalizou as agressões no ambiente virtual, a pergunta lançada no título conduza à errônea crença de que o objeto deste texto é a crítica a magistrados.

Ao contrário, o que aqui se busca, em alusão ao conto do Moleiro de Sans-Souci, imortalizado por François Andrieux, é destacar a grandeza dos juízes anônimos que dedicam sua vida à nobre causa da justiça, alheios aos aplausos e aos holofotes que tão facilmente seduzem e atraem os não vocacionados para o sacerdócio da magistratura.

No âmbito do Poder Judiciário do Distrito Federal, por exemplo, diversos são os juízes anônimos que estão a merecer o devido reconhecimento por tudo o que fizeram em vida no exercício da jurisdição. É o caso do desembargador Lúcio Arantes, o primeiro juiz de Brasília, que antes mesmo de o Poder Federal aqui aportar, distribuía jurisdição em todas as competências, sem os luxos dos palácios de justiça, valendo-se apenas de uma Ford Rural, de uma mesa e uma cadeira [talvez o que os jovens de hoje chamariam de um juiz-raiz]. É também o caso dos desembargadores Edson Smaniotto e George Lopes Leite, que fizeram do humanismo a bússola que guiava suas decisões no âmbito da jurisdição criminal.

Mas quero aqui destacar uma figura única, que infelizmente deixou a comunidade jurídica do Distrito Federal no último dia 20 de janeiro, certamente para compor lá em cima, junto à última das instâncias, uma Corte de verdadeira Justiça. Refiro-me ao desembargador Marco Antônio da Silva Lemos. Ou melhor dizendo, ao bi-desembargador, como seus colegas o chamavam, tendo em vista que Silva Lemos é o único magistrado da história do país a ter se tornado desembargador em Tribunais de Justiça de dois estados diferentes, tendo alcançado tais cargos, nas duas vezes, pela promoção por merecimento.

Essa é uma das histórias que merecem ser contadas a todos que buscam motivos para seguir acreditando na justiça e na seriedade do Poder Judiciário. Existem, sim, juízes que priorizam o cumprimento do dever. E que por conhecerem sua vocação e as mazelas da sociedade, não conseguem deixar o ofício mesmo quando já esgotado o tempo do seu compromisso legal.

O desembargador Silva Lemos ingressou no TJ-DF em 1987 e atuou como juiz no então território do Amapá, sendo promovido ao cargo de desembargador do TJ-AP alguns anos depois. Cumprido o tempo previsto em lei, aposentou-se e retornou para Brasília, prestando concurso para juiz federal e para juiz do TJ-DF. Aprovado em ambos, escolheu novamente a magistratura local, por ter sido classificado em primeiro lugar, sendo promovido anos depois para o cargo de desembargador do TJ-DF.

Os que não tiveram o privilégio que tive de tê-lo como mentor, mas desfrutaram da sua amizade, certamente concordam que Silva Lemos foi uma pessoa de inteligência única. Suas decisões refletiam o juiz focado em aplicar o direito sem se afastar da justiça, e que enxergava a vida humana por trás do papel. O juiz que determinou a posse de candidata a cargo público eliminada na prova física de corrida (“qual a razoabilidade em exigir prova de corrida se nenhum agente do Detran precisará correr atrás de carros irregulares?”) e de outra eliminada no exame de saúde, por não ter a altura mínima exigida para o cargo de advogada do Corpo de Bombeiros (“em todos os meus anos de magistratura nunca imaginei que dois centímetros de altura pudessem influenciar no exercício da advocacia”).

Desembargador Silva Lemos, que morreu no último dia 20 de janeiro

Exemplo para os novos magistrados

A mais relevante, inclusive do ponto de vista processual, foi um verdadeiro marco na evolução da jurisdição. Uma servidora do Distrito Federal cuja companheira estava grávida, mas sem possibilidade de amamentar, submeteu-se a tratamento hormonal que lhe possibilitaria produzir o leite materno. Iniciada a  amamentação, e diante da recusa do Distrito Federal, impetrou mandado de segurança visando a usufruir do direito à licença maternidade. Considerando que o direito postulado era sustentado por tese jurídica ainda sem respaldo jurisprudencial que lhe reconhecesse força de direito líquido e certo, Silva Lemos possibilitou ao advogado a emenda da petição inicial para ajuste do procedimento, mas não antes de conceder de ofício medida amparada no poder geral de cautela, para permitir que a servidora usufruísse da licença para amamentar o filho de sua companheira.

Marco Antônio da Silva Lemos não foi apenas um grande magistrado. Foi uma pessoa que fez a diferença na vida de todos que com ele a compartilharam. Desde colegas e professores do mestrado, que se encantavam com sua simplicidade, aos advogados que sempre foram por ele bem recebidos. Não posso deixar de lembrar que, certa vez, ao lhe perguntar como ele preferia ser chamado no ambiente de trabalho, se por excelência ou por doutor, ele respondeu: “Senhor é o tratamento mais respeitoso que você pode dispensar a alguém. É reciprocamente justo. Não é informal demais, mas também não separa as pessoas por classes”.

Também não se pode deixar de registrar que sempre que lhe desabafavam alguma frustração enfrentada na advocacia e causada por algum mau juiz, Silva Lemos recordava do moleiro que lembrou ao rei da Prússia que ainda havia juízes em Berlim, e arrematava sorrindo: “Ainda há juízes em Brasília”.

A morte do desembargador Silva Lemos traduz-se em grande perda para a comunidade jurídica e para os seus amigos e familiares. Que a vida dele siga sendo exemplo para os novos magistrados que, verdadeiramente vocacionados, tem por objetivo a simples e justa prestação jurisdicional. E que levem adiante a máxima de que, sim, ainda há juízes em Brasília.

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