Opinião

Carf e Receita impedem compensação de crédito regular dos contribuintes

Autor

1 de fevereiro de 2025, 17h24

Decisões recentes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) têm chancelado despachos decisórios da Receita Federal que não homologam compensações realizadas pelos contribuintes com créditos de contribuições previdenciárias decorrentes de pagamentos indevidos realizados perante a Justiça do Trabalho. A restrição segue o entendimento de que a coisa julgada impediria a reavaliação administrativa dos pagamentos. Isso, entretanto, não encontra amparo nem na legislação, nem no posicionamento da própria Receita quanto à matéria.

André Corrêa/Agência Senado

Os contribuintes sustentam que o indevido pagamento das contribuições se dá tanto em razão da extinção da obrigação tributária pela decadência, quanto pelo fato de a empresa, no período reclamado, estar submetida ao regime da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB) e, portanto, desonerada da contribuição previdenciária patronal. Mas o Carf mantém os despachos decisórios por entender que a autoridade fiscal não teria competência para reconhecer a ilegalidade dos pagamentos, diante da coisa julgada operada entre as partes na reclamatória trabalhista (v.g. acórdãos 2201-010.130 e 2201-011.885).

O Código de Processo Civil define coisa julgada como o atributo da decisão judicial de mérito de tornar-se imutável e indiscutível após esgotadas as possibilidades recursais (artigo 502). Sob a perspectiva objetiva, a coisa julgada alcança a questão principal expressamente decidida e a questão prejudicial relacionada ao mérito da lide (artigo 503), enquanto sob a perspectiva subjetiva atinge somente as partes entre as quais é formada, sem prejudicar terceiros (artigo 506).

Essas disposições suscitam a incorreção do entendimento do Carf.

O artigo 791 da CLT prevê que são partes da reclamatória trabalhista os empregados e os empregadores. Logo, a União não compõe a lide laboral, salvo na hipótese do artigo 832, § 4º,da CLT, em que deve ser intimada acerca das decisões homologatórias de acordos que contenham parcela indenizatória. Ademais, as ações de casos que chegaram ao Carf têm por objeto relações jurídicas advindas do contrato de trabalho, dentre as quais não pode ser enquadrado o pagamento das contribuições previdenciárias. Isso ocorre por causa da vedação constante do artigo 18 do CPC no sentido de que ninguém pode pleitear direito alheio em nome próprio.

Nessa linha, inferem-se dois pontos de relevo: (1) a condenação da reclamada ao pagamento das contribuições previdenciárias não se insere nos limites objetivos da coisa julgada, pois é situada fora dos contornos da lide; e (2) a União não é parte da reclamatória trabalhista, de forma a não se beneficiar, nem se prejudicar pela coisa julgada trabalhista.

Quanto ao primeiro ponto, não se ignora que, na prática, é praxe constar das condenações trabalhistas o comando do pagamento das contribuições previdenciárias sobre os valores reconhecidos. Com a edição da EC nº 45, o juízo trabalhista passou a deter competência para executar de ofício as contribuições sociais decorrentes das suas condenações, nos termos do artigo 114, VIII, da Constituição. Todavia, é preciso definir a natureza jurídica desse comando incluído pelo juízo no provimento judicial exarado para, então, identificar os seus efeitos.

Nos termos do artigo 203 do CPC, a sentença consiste no pronunciamento do juiz que põe fim à fase de conhecimento do procedimento comum ou que extingue a execução. Quando proferida com resolução do mérito, enfrenta-se o pedido formulado (artigo 487, CPC), decidindo-se a causa nos limites em que está proposta, sendo vedado conhecer de questões não suscitadas pelas partes, quando a lei exigir essa iniciativa (artigo 141, CPC).

Nessa linha, a partir da premissa de que o pedido da reclamatória trabalhista, tecnicamente, não comporta o pleito de condenação da parte reclamada ao pagamento das contribuições previdenciárias, em razão da ilegitimidade ativa do Reclamante, não se pode atribuir a eventual comando nesse sentido natureza jurídica de sentença – ainda que incluído do documento assim denominado.

A sentença condenatória trabalhista tem força de lei entre as partes reclamante e reclamada no que diz respeito às relações jurídicas discutidas no processo. Essas relações, uma vez reconhecidas pelo juízo, podem gerar efeitos na esfera patrimonial da União, pois implicam o reconhecimento da ocorrência da hipótese tributária das contribuições previdenciárias. Esses efeitos, porém, são estranhos ao processo. Essa repercussão do provimento judicial sobre relações jurídicas estranhas ao processo é denominada pela doutrina processualista como efeito reflexo da sentença e, com tal, não está abrangida pela coisa julgada.

A corroborar que a condenação da parte reclamada ao pagamento das contribuições previdenciárias nada mais é do que efeito reflexo da sentença trabalhista, acrescenta-se que a União sequer depende de reclamatória trabalhista para lançar as contribuições. Basta que a União identifique, em fiscalização, que houve o pagamento de rendimentos de natureza remuneratória, conforme reconhecido pelo Poder Judiciário (REsp 575.086/PR) e, inclusive, pelo próprio Carf (acórdão 2402-012.803).

Vale dizer, a obrigação tributária decorrente das relações trabalhistas discutidas na reclamatória subsiste e se mantém hígida, independentemente de qualquer condenação.

O emprego da expressão ‘por qualquer motivo’

Quanto ao segundo ponto, a legislação deixa claro que a União não é parte do processo trabalhista e, via de consequência, não é atingida pela coisa julgada. Mesmo na hipótese de vir a se pronunciar acerca dos cálculos de liquidação, a homologação do juízo possui natureza de decisão interlocutória (artigo 203, § 2º, CPC), que não faz coisa julgada. Vale dizer, que essa manifestação não impede a rediscussão do cálculo em outras searas, dentro dos âmbitos das suas competências, a teor do artigo 502 do CPC.

É importante acrescentar que essa adstrição da coisa julgada trabalhista exclusivamente às partes do processo é reconhecida pela própria administração federal. Nos termos do artigo 172 da IN INSS nº 28/2022, chancelada pelo STJ por meio do Tema 1.188 de recurso repetitivo: “A reclamatória trabalhista transitada em julgado restringe-se à garantia dos direitos trabalhistas e, por si só, não produz efeitos para fins previdenciários”.

Mesmo diante do expresso reconhecimento judicial da existência de vínculo laboral e do exercício do trabalho dentro de determinado período, o cômputo do tempo de serviço perante o INSS exige do segurado a comprovação, sendo insuficiente para tal fim a apresentação apenas da sentença proferida na Reclamatória.

Ainda, o artigo 73 da IN RFB nº 2110/2022 obriga a Receita a efetuar o lançamento de ofício das contribuições devidas à Seguridade Social decorrentes de sentença condenatória trabalhista caso, por qualquer motivo, não houver a execução de ofício pela Justiça do Trabalho. O emprego da expressão “por qualquer motivo” implica que a Receita não está adstrita à sentença condenatória trabalhista.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!