Opinião

O STF não é uma ilha, nem um arquipélago

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29 de abril de 2025, 7h06

Os juristas têm, em geral, o péssimo hábito de analisar o Poder Judiciário de forma estática e isolada, por mais arrojado que seja o referencial teórico de que se servem. Quaisquer mudanças, grandes ou pequenas, na organização judiciária ou no sistema recursal já lhes parece suficiente para afirmar, com convicção, o nascimento de um “novo” Poder Judiciário ou a sua derrocada, ao passo que mudanças sociais cruciais são sumamente ignoradas ou relegadas ao status de questões periféricas em relação àquelas de que devem se ocupar os juristas.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Este hábito mental tem evidentes repercussões nos diagnósticos que fazem dos problemas e, consequentemente, nas soluções que propõem. Falta-lhes o ímpeto de ver o Judiciário como componente social que está imerso em e responde às demandas de uma sociedade dinâmica, complexa e em constante mutação. Vistas as coisas desta forma, empalidecem os diagnósticos que pretendem ver as grandes mazelas do Judiciário na atual composição do STF, na transmissão de suas sessões pela TV Justiça, nas relações — muitas vezes pouco transparentes, é verdade — entre juízes e políticos, ou na recalcitrância da Corte em adotar um “código de ética”.

Os membros do STF mantiveram ao longo de sua história relações políticas boas e ruins, muitos ministros, desde o início da República, exerceram cargos políticos de destaque, e a Corte sempre sofreu pressões mais ou menos intensas, não só da classe política como, também, da mídia. Vale dizer, certamente não é de hoje que o STF desperta as mais diversas paixões sociais.

Neste sentido, a descrição que Emília Viotti da Costa faz das reações suscitadas pelo STF pode até soar atual, mas trata do clima dos primeiros tempos da República: “[o]s ministros tornavam-se alvo de críticas, de defesas e de ataques. As sessões eram concorridas. O Tribunal transformava-se em teatro para o gozo do público que lotava as galerias e se manifestava ruidosamente a favor e contra argumentos e decisões: vaiava, assobiava, aplaudia os discursos e os acórdãos, apesar das reiteradas advertências do presidente, que ameaçava os manifestantes de expulsão[1].

Com isso quero apenas aludir ao fato óbvio, mas frequentemente escamoteado, de que a estrutura social muda e com ela mudam não só as demandas como, também, o manejo que seus componentes fazem do Judiciário, especialmente no que diz respeito ao seu uso político. É a partir daí que podemos avaliar o seu desempenho, reinterpretar as figuras jurídicas consagradas e até mesmo repensar sua forma de atuação para absorver melhor as demandas que lhes são submetidas.

Antes da Constituição de 1988, por exemplo, apenas o procurador-geral da República podia ajuizar ações de controle concentrado de constitucionalidade. Não só esse rol foi generosamente ampliado, como outras formas de se alcançar o STF, pelas vias originárias ou recursais, foram criadas ou modificadas, o que evidentemente altera o perfil das demandas que chegam ao conhecimento da corte.

Paralelamente a isso, o Brasil vem passando por imensas mudanças econômicas, políticas e culturais que reverberam profundamente em nossa estrutura social. A adoção mais generalizada de políticas sociais nas últimas duas décadas, por exemplo, resultou em maior mobilidade social e a formação de uma nova classe média mais afastada econômica e culturalmente das elites e mais próxima das classes populares, engendrando ressentimentos que são externalizados de diversas formas [2].

Spacca

As mudanças socioeconômicas, aliadas à ineficiência no combate à corrupção, reverberaram também no sistema político, reorientando a polarização partidária ao redor dos quais as coalizões presidenciais se organizaram nas últimas décadas. A desilusão das classes médias com os projetos do PT e do PSDB mudaram a cara da política nos últimos anos e abriram espaço para a ascensão de políticos “antissistema” que tendem a desprezar a política partidária em prol de meios mais personalistas de atuação.

Não à toa, Pierre Rosanvallon fala das articulações populistas como modos de representação que funcionam como “órgãos” do “corpo do povo” que representam agrupamentos sociais cada vez mais nebulosos e inespecíficos [3]. O desprezo pelas regras do jogo por estes atores acaba inescapavelmente tornando ainda mais urgentes as intervenções judiciais.

Estas dinâmicas são impulsionadas pelos novos meios de comunicação, que potencializam a formação de bolhas informacionais, interações massificadas e a produção, com o apoio das fake news, de “inimigos públicos” [4] nacionais que servem para mobilizar paixões e aglutinar interesses de grupos que outro modo permaneceriam rivais.

No caso específico do Brasil, os setores conservadores — melhor dizendo, reacionários — readquiriram os espaços de mobilização social de que não dispunham desde 1964 e que foram praticamente monopolizados por setores de esquerda desde o movimento das Diretas Já em meados dos anos 1980. A posição vacilante destes grupos, geralmente associados às classes médias, na defesa da democracia é um fator adicional de desequilíbrio na dinâmica que se estabeleceu com o fim da ditadura e torna ainda mais premente a atuação do Judiciário [5].

Além disso, a organização da política institucional do Brasil mudou profundamente nos últimos tempos, primeiro com a Carta de 1988, que desenhou uma “nova versão” do presidencialismo de coalizão [6], e depois com medidas formais e informais do Congresso. As manobras orçamentárias do Legislativo, por exemplo, inflacionam os custos das coalizações e forçam, como reforço de governabilidade, a distribuição de ministérios estratégicos, historicamente preservados da barganha política ordinária [7]. Em síntese, há desorganização do Executivo [8], à que se soma a maior influência que o Judiciário exerce na formação das alianças políticas em vista da possibilidade sempre presente de leis serem declaradas inconstitucionais pelo STF.

Mas não só política, econômica e socialmente o Brasil se alterou; em termos religiosos, o perfil nacional é também hoje bastante diverso. Houve crescimento exponencial dos movimentos evangélicos e o resgate de discursos reacionários dentro do catolicismo. Hoje, tal como ontem, os grupos pretensamente democratas, nacionalistas e moralistas suscitam “enorme indulgência para com atitudes e comportamentos que se chocam, precisamente, com os mores da democracia e da civilização cristã” [9].

A linguagem religiosa utilizada politicamente é um bom exemplo de alguns dos fenômenos a que me referi acima. Ela aproxima, sempre em regime de conveniência, grupos com convicções diferentes, algumas delas até incompatíveis, como é o caso de católicos e evangélicos, formando aquilo que Antonio Spadaro e Marcelo Figueroa denominaram “ecumenismo do ódio” [10]:

“Existe um mundo bem definido de convergência ecumênica entre setores que, paradoxalmente, são concorrentes em termos de pertencimento confessional. Esse encontro em torno de objetivos comuns acontece em temas como aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, ensino religioso nas escolas e outras questões geralmente consideradas morais ou ligadas a valores. Tanto os evangélicos quanto os católicos integralistas condenam o ecumenismo tradicional, mas promovem um ecumenismo do conflito que os une no sonho nostálgico de um tipo de Estado teocrático” [11].

É evidente que esta é apenas uma faceta do uso político da linguagem religiosa, particularmente presente na retórica política dos EUA, por nós importada com fervor. Mas há outros. O terrorismo, por exemplo, pode ser considerado um fenômeno moderno na medida em que fornece mecanismos de intervenção a grupos vitimados por profundos desenraizamentos sociais promovidos por uma “ocidentalização” do mundo sem que quaisquer compensações lhes tenham sido oferecidas [12]. Curiosamente, essas mesmas manifestações políticas em linguagem religiosas reingressam na esfera pública da parcela radicalizada do ocidente para reforçar sua retórica maniqueísta e retroalimentar os ecumenismos oportunistas.

O capital jurídico na atualidade

Como se vê, há pouco ou nada do Brasil de hoje que seja comparável ao país em que atuaram outras composições do STF. Não há saudosismo ou solução pronta que resista ao fato inescapável de que a corte sempre responde à sociedade de seu tempo, e o faz desde a sua própria perspectiva, a jurídica, que tende a ser socialmente menos dinâmica que a política, razão pela qual poder-se-ia dizer que o Judiciário e os poderes políticos funcionam em velocidades diferentes e orientados por lógicas de funcionamento igualmente diversas.

A política pode mudar a qualquer tempo e tem mais liberdade e agilidade para lidar com as realidades; o Judiciário tende a responder mais lentamente e tem constrições normativas que limitam sua margem de manobra frente ao “real”, justamente porque se orienta por grandes ideais normativos. Os políticos e as políticas mudam com frequência, até mesmo como reflexo das mudanças nas estruturais sociais e institucionais, sem que as grandes linhas a partir das quais o Judiciário tem que trabalhar sejam necessariamente alteradas, ao menos de forma explicita.

A avaliação serena do desempenho do STF e a reinterpretação do uso que faz de ferramentas tradicionais depende da qualidade das respostas a uma série de indagações. É necessário compreender a natureza das novas demandas sociais, das expectativas que a sociedade deposita em juízes e ministros, do manejo que os componentes da estrutura fazem do Judiciário, dos tipos de intervenção política que esperam dele e das reações concreta e simbólica através das quais o direito responde a tudo isso [13]. Dito de forma direta, precisamos entender o valor do capital jurídico na atualidade.

O STF não é uma ilha, nem um arquipélago. Mais adequado seria compreendê-lo como um grande país num continente tumultuado. Ele tem suas próprias dinâmicas internas, deve lidar com vizinhos difíceis que também as têm, e sua atuação, como a dos demais, pode ser tanto fator de ordem como de desordem, equilíbrio ou desequilíbrio. De qualquer forma, deve manter um equilíbrio dinâmico que considere seu entorno.

Talvez seus comentaristas é que o estejam observando desde uma perspectiva insular. Percebem imagens distorcidas, excessivamente focadas numa única porção de terra que, do seu ponto de vista, não interage com o restante.

 


[1] Emília Viotti da Costa. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania, 2. Ed., São Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 28.

[2] Cf. Leonardo Avritzer. Impasses da Democracia no Brasil, 3. Ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 97-107.

[3] Pierre Rosanvallon. The Populist Century: History, Theory, Critique, trad. Catherine Porter, Polity Press, 2021. pp. 27-31.

[4] Cf. Georges Abboud. Ativismo Judicial: Os Perigos de se Transformar o STF em Inimigo Ficcional, 2. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025.

[5] Leonardo Avritzer. Impasses da Democracia no Brasil, cit., pp. 14-16 e 109 e ss.

[6] Por todos, cf. Sérgio Abranches. Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 75 e ss.

[7] Cf. Wanderley Guilherme dos Santos. Sessenta e Quatro: Anatomia da Crise, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, pp. 128-129; e Sérgio Abranches. Presidencialismo de Coalizão, cit., p. 88.

[8] Leonardo Avritzer. Impasses da Democracia no Brasil, cit., pp. 11 e 40-48.

[9] Florestan Fernandes. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica, 6. Ed., Curitiba-São Paulo: Kotter Editorial/Contracorrente, 2020 [1975], p. 312.

[10] Devo a leitura deste texto à gentil recomendação de Felipe Koller.

[11] Antonio Spadaro, S.J. e Marcelo Figueroa. “Evangelical Fundamentalism and Catholic Integralism in the USA: A surprising ecumenism”. In: La Civiltà Cattolica, 13.7.2017. Disponível aqui

[12] Por todos, cf. Jürgen Habermas. Fé e Saber, trad. Fernando Costa Mattos, São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 3; e Jürgen Habermas. O Ocidente Dividido: Pequenos Escritos Políticos X, trad. Bianca Tavolari, São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 36.

[13] Cf. Jacques Commaille. À quoi nous sert le droit?, Gallimard, 2015, p. 43.

Autores

  • é doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mestre e bacharel pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), advogado e consultor jurídico.

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