Embargos Culturais

Coisa Julgada e Precedente, de Paulo Mendes de Oliveira

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27 de abril de 2025, 8h00

O tema dos limites temporais no contexto das relações jurídicas de trato contínuo é o pano de fundo de Coisa Julgada e Precedente, de Paulo Mendes de Oliveira, publicado pela RT, em 2015. O livro é um estudo sobre problemas e dilemas que marcaram a discussão do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015).

Pretendia-se um ajuste das regras processuais no ambiente de uma litigância massificada. Por essa razão a importância do “precedente”, transportado de outras culturas jurídicas e aqui adaptado. A técnica do precedente é hoje o tema mais sensível e mais importante na prática judiciária.

Para alguns, é uma colagem fragilizada do modelo do “common law”. Para outros, é um arranjo institucional que se contradiz na prática. Para outros, é um mal necessário. E para outros ainda, é um sinal de maturidade institucional. O assunto pode ser estudado no contexto da teoria das transposições normativas.

Um novo código era necessário. Eram inoperantes e imprecisas as regras e os modelos do Código de 1939 (recomenda-se a leitura da Exposição de Motivos, de autoria de Francisco Campos) ou do Código de 1973 (recomenda-se a leitura da Exposição de Motivos de Alfredo Buzaid). A Exposição de Motivos do CPC de 2015 não é assinada por um jurista singular: é assinada pela Comissão. Creio que essa autoria ao mesmo tempo pulverizada e unificada é emblemática, explicando uma abertura da técnica processual para a realidade de quem litiga e para compõe litígios.

O substantivo “Comissão” alcança não só os juristas que participaram ativamente na composição do Código. Alcança também grupo expressivo de processualistas que se empenhou na reformulação do CPC de 1973. O código antigo havia se esgotado na própria seiva. Paulo Mendes faz parte desse grupo de processualistas empenhados e obcecados com a concepção de um processo civil pronto para enfrentar o inadiável problema da litigância exponencial.

No desempenho dessa tarefa Paulo aglutina duas circunstâncias que abonam suas ideias: uma profissional e outra acadêmica. É Procurador da Fazenda Nacional, com vastíssima experiência em todos as instâncias do Poder Judiciário. Paulo conta com 20 anos de experiência profissional, defendendo a Fazenda Nacional desde as instâncias ordinárias até o Supremo Tribunal Federal.

Academicamente, doutorou-se pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fez estágios de pós-doutoramento em vários centros de excelência de estudos de direito processual. Paulo sabe do que está falando, e o leitor tem certeza desse postulado ao constatar o núcleo central que anima o livro: a segurança jurídica e a coisa julgada.

Spacca

Coisa Julgada e Precedente é sua dissertação de mestrado publicada em forma de livro na prestigiosíssima coleção “O Novo Processo Civil”. O livro sugere questões processuais desafiadoras: coisa julgada para quê? coisa julgada sobre o quê? coisa julgada até quando? Nessa última pergunta Paulo Mendes colocou um problema que ao longo dos anos tem atormentado a própria teoria geral do direito: a flexibilidade da coisa julgada. Valendo-me de imagem bem popular, Paulo colocou o bode na sala.

É um dos pioneiros no enfrentamento dessa questão. Com referência a discussões tributárias questionou como a coisa julgada (material) se relaciona com as relações jurídicas de trato continuado, o que é recorrente em relações tributárias que são ao mesmo tempo instantâneas (quanto ao fato gerador) e permanentes (quanto à obrigação de recolhimento).

O autor plantou uma pergunta incômoda, mas necessária: pode haver uma delimitação de limite temporal da coisa julgada? Uma resposta positiva é uma heresia radical. Isto é, se há limitação temporal à coisa julgada, não haveria (no sentido absoluto) a coisa julgada, tal como a estudamos, durante a faculdade. No meu caso, já faz bastante tempo.

É o que líamos naqueles livros de Introdução e de Teoria Geral (Miguel Reale, Hermes Lima, Paulo Nader, Franco Montoro, Tércio Sampaio Ferraz Jr., Paulo Dourado de Gusmão, Vicente Rao, entre tantos outros). A matéria estava nos capítulos em que esses autores tratavam das fontes do direito. Exploravam o conceito de jurisprudência, hoje totalmente reformulado. O livro de Paulo Mendes é uma compreensão muito precisa dessa reformulação conceitual.

Em seu estudo Paulo Mendes concluiu que “com a edição de um precedente das cortes de vértice em sentido contrário àquele definido pela decisão qualificada pela coisa julgada, opera-se uma alteração nas circunstâncias jurídicas existentes quando da prolação do julgado, apta a fazer cessar prospectivamente os efeitos da res judicata”.  

Penso que seja esse o núcleo da preocupação do autor: a concepção de que um precedente posterior dos tribunais superiores possa, ipso facto, ou ex-se, alterar o quadro normativo subjacente à coisa julgada, esvaziando seus efeitos futuros.

Se verdadeira a intuição de Paulo (e penso que seja) tem-se uma mudança de paradigma: a coisa julgada deixa de ser um marco definitivo da segurança jurídica para tornar-se um estado transitório, condicionado à jurisprudência dominante. O autor alerta, com sutileza, que essa mutação pode comprometer a própria ideia de estabilidade decisória ao submeter sentenças transitadas em julgado à fluidez de uma hermenêutica de precedentes.

Creio, todavia, que Paulo Mendes não adota uma posição absolutista. Não me parece ser contra toda forma de revisão da coisa julgada. Reconhece a legitimidade de sua relativização em casos excepcionais. Exemplifico com o problema do risco sistêmico à isonomia tributária e à concorrência leal, entre outros pontos.

Coisa julgada fraca

Há dez anos Paulo Mendes vem alertando com veemência para os riscos de uma dissolução acrítica da coisa julgada, especialmente quando essa dissolução se opera sem o instrumento adequado da ação rescisória, como posteriormente o STF parece ter aceitado. A erosão da autoridade da coisa julgada pode comprometer os pilares da segurança jurídica e da confiabilidade do sistema judicial.

Desde a publicação de Coisa Julgada e Precedente, Paulo Mendes vem discutindo um “sistema de coisa julgada fraca”, no qual a estabilidade da decisão é vulnerável a reinterpretações futuras, inclusive com retroatividade mitigada. Tal sistema enfraqueceria a previsibilidade das relações jurídicas e poderia reduzir o incentivo ao cumprimento espontâneo das sentenças.

Não obstante seu olhar crítico, Paulo Mendes parece reconhecer que há hipóteses em que a superação da coisa julgada se justificaria, sobretudo quando envolvem distorções concorrenciais graves. Na manutenção da ordem econômica a confirmação de decisões individualmente vantajosas — mas juridicamente superadas — pode gerar desequilíbrios incompatíveis com os princípios da isonomia e da livre concorrência.

Nesses casos, a revisão da coisa julgada não apenas se tornaria legítima. Seria necessária à preservação da equidade e da funcionalidade do sistema. Essa posição revela a lucidez e o equilíbrio de Paulo Mendes: longe de um dogmatismo conservador, sua crítica é calibrada pela ponderação entre segurança jurídica e justiça distributiva, no sentido aristotélico dessa enigmática expressão.

Paulo Mendes de Oliveira atua presentemente como adjunto do advogado-geral da União, Jorge Messias. Uma excelente escolha do AGU. Com Paulo, a advocacia pública federal tem em seus quadros e lideranças um profissional que encarna, com rara densidade, o produtivo amálgama entre a vivência sólida no contencioso e a sutileza intelectual necessária ao contínuo aprimoramento da atuação estratégica do Estado no plano jurídico.

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