SEGUNDA LEITURA

A série Adolescência, Direito e responsabilidade penal

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

    Ver todos os posts

27 de abril de 2025, 8h00

Adolescência é o nome da série da Netflix que tomou conta dos espectadores do Ocidente, que, entre incrédulos e assustados, tomaram conhecimento de um novo grupo de ativistas que podem levar adolescentes a atos extremos, inclusive a matar.

Spacca

O seriado, com quatro capítulos, trata do jovem Jamie Miler, morador de uma pequena cidade da Inglaterra, com 13 anos de idade, que mata uma colega de sua escola a facadas. Preso, ele deixa atônitos os pais, os policiais e a psicóloga que dele cuida no Centro de Treinamento de Segurança em que foi recolhido. Afinal, o que levou um adolescente de classe média, com família bem constituída e rosto angelical, a assassinar a estudante?

O filme impacta os brasileiros, principalmente os pais de adolescentes, porque aborda uma realidade que nos é próxima. Filhos distantes, apáticos, celular nas mãos por horas, muitas vezes frequentando redes altamente perigosas. E o desfecho trágico não é algo possível de ocorrer apenas em outra galáxia. Pode acontecer aqui.

Uma complexa forma de pensar embala a série Adolescência. Simplificando-a ao extremo, ela revela uma reação masculina ao feminismo. Ao início denominado Movimento de Libertação dos Homens, depois fragmentou-se em grupos de diversas tendências e origens.  Uma forte vertente é chamada de incels, que é uma abreviação em inglês de “celibatários involuntários”, ou seja, os que não conseguem conquistar uma mulher.

Segundo a BBC News Brasil, “a machosfera começou a ganhar força com o advento das redes sociais. Os incels se reuniram no Facebook, YouTube e Reddit — e tiveram acesso a públicos maiores. Os grupos começaram a se unir e a pegar emprestada a ideologia uns dos outros para ganhar mais apelo” [1].

A entrada dos incels nas redes conquistou os adolescentes e até mesmo crianças, tornando-se forte instrumento de dominação. A série Adolescência retrata a crença dos jovens de que não era justo as moças terem interesse por apenas 20% dos rapazes, deixando que 80% ficassem involuntariamente solitários.

Educação e punição em Adolescência

Após uma investigação policial feita nos moldes tradicionais, que levou um estudante, filho do policial, a mostrar ao pai o ridículo da forma como se conduzia, introduzindo-o nos códigos de comunicação por emojis, sobrevém a prisão do adolescente Jamie Miller.

A trama evidencia a decadência do ensino na Inglaterra. Os tradicionais uniformes dos alunos, usados de forma irreverente e descuidada. A perda de autoridade da diretora. Professores fora do ponto de equilíbrio, um mostrando-se alienado, outro radical extremista. E os estudantes mais preocupados em criar situações cômicas ou na prática de bullying. O final do filme fica reservado aos que o assistiram ou vierem a assistir.

O filme é ficção, mas inspirado em casos reais. Por exemplo, reportagem da BBC News Brasil, já citada, noticia sobre ocorrência nos Estados Unidos: “Em Isla Vista, na Califórnia, Elliot Rodger, um jovem de 22 anos que se autodenominava incel, matou seis pessoas e feriu 14 em uma tentativa de ‘punir’ as mulheres que o rejeitaram”.

Responsabilidade penal de menores

A responsabilidade penal de menores é tratada de forma parcialmente semelhante nos diversos países. Pesquisa feita pelo consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Ribamar Soares, pelo amplo aspecto de que se reveste, merece ser visitada. A única dificuldade é que ela é de 2006 e, possivelmente, algumas leis foram modificadas [2].

Regra geral, ela se divide em dois grupos. Países anglo-saxões e asiáticos costumam fixá-la em um mínimo muito baixo, estabelecendo depois uma idade maior. Nesse espaço de tempo a criança deverá ser submetida a exames que definirão se tinha condições de compreender o seu ato.

Bom exemplo dessa opção é Singapura, país que adota um sistema conhecido pela severidade. O Código Penal (Cap. 224) de 2009 estabelece na S 82 e 83 que a responsabilidade criminal começa aos sete anos de idade, mas, se a criança não tiver maturidade para compreender as consequências de seu ato, ela será de 12 anos [3]. Na Inglaterra, onde se passa o filme, fixa-se um período de responsabilidade condicionada entre nove e 14, sendo que a partir dessa idade a imputabilidade penal é plena.

Entre os países que optam pelo sistema de idade fixa, temos a Coreia do Sul, onde a legislação nacional de proteção de crianças estabelece, no artigo 9, a idade de 14 anos, abaixo da qual será inimputável [4]. Em Portugal, o Código Penal estabelece no artigo 19º que “os menores de 16 anos são inimputáveis” [5].

Na Espanha, a idade mínima é de 18 anos, conforme o artigo 19 do Código Penal [6]. Em Cuba, o artigo 18, incisos I e II, do Código Penal, adota os 16 anos, todavia apenas para determinados delitos, como os que demonstrem desprezo pela vida humana. Para os demais o limite é de 18 anos.

Nos Estados Unidos, onde os estados têm poder para legislar sobre Direito Penal, a responsabilidade varia de acordo com a unidade federativa. Na Flórida, ela está fixada em 18 anos de idade. Mas, na Carolina do Sul, até 17 anos ela se concentra em aconselhamento, educação e soluções comunitárias decididas por Tribunais Juvenis. Porém, a partir dos 14 anos, nos “crimes violentos, como assalto à mão armada, agressão sexual ou homicídio” [7], podem ser julgados por um tribunal para adultos, portanto, sujeito a penas severas.

Crime e menoridade no Brasil

No Brasil, o Código Criminal do Império, de 1930, fixava no seu artigo 10, inciso 1º, a idade mínima em 14 anos. Em 1890, entrou em vigor o Código Penal da República, fixando no artigo 27 a inimputabilidade dos menores em nove anos e no §2º, de igual forma, os de nove aos 14, sem discernimento. Portanto, a partir dos 14 anos a responsabilidade penal estaria presente [8]. Atualmente, pelo Código Penal de 1940, ela é de 18 anos de idade (artigo 23).

Todavia, a sociedade está em plena mudança de valores e condutas. E as infrações praticadas por menores também. A juíza Vanessa Cavalieri, titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, com experiência de mais de dez anos lidado com o problema, afirma que houve uma mudança no perfil dos infratores, que passou a incluir jovens de classe média e alta, envolvidos em graves infrações digitais [9].

As tragédias que nos vinham do exterior chegam aos nossos jovens e em nosso cotidiano, seja por estímulo de terceiros, seja por pura imitação das práticas exibidas em redes sociais. O conceito de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, sobre o “brasileiro cordial”, deixa aos poucos de ser uma realidade. Exemplos.

Dia 1º de abril de 2025, na Escola Municipal de Ensino Fundamental João de Zorzi, em Caxias do Sul (RS), dois estudantes, após desligar as câmeras, esfaquearam uma professora pelas costas, supostamente porque a diretora chamou os pais de um aluno para relatar problemas em que ele vinha se envolvendo. Uma terceira menor de idade estaria envolvida, porém na hora recusou-se a participar de forma ativa. Um dos envolvidos “publicou em seu perfil aberto, no dia 30 de março p.p., duas fotos em uma mesma postagem. Na primeira, ele aparecia encapuzado. Na segunda, segurando uma faca. Na legenda, emojis de um ninja e uma gota de sangue” [10].

Em 15 de abril p.p., ação da Polícia Civil do RJ, com apoio da CyberLab da Secretaria Nacional de Segurança, do MJSP, deflagrou uma ação em sete estados para investigar organizações criminosas voltadas para a prática de crimes de ódio contra crianças e adolescentes. A sede da quadrilha localizava-se em Campo Grande, onde dois adultos foram presos e seis menores, apreendidos. Detalhe: um adolescente de 14 anos foi apontado como um dos chefes [11].

Na outra ponta, em morros, bairros afastados, zonas que se caracterizam pela pobreza, em que líderes do crime são os que administram de fato, cumulando funções legislativas, executivas e judiciais, aliciam crianças e adolescentes para prestar-lhes serviços. Prática de todos conhecida, foi muito bem retratada no filme Vitória, com Fernanda Montenegro, em que uma criança é aliciada pelo tráfico. Trata-se de caso real de “uma senhora que gravou da janela de casa a ação de traficantes, denunciando um esquema que levou à prisão de cerca de 30 pessoas, incluindo policiais corruptos”[12].

Por vezes, o recrutamento é de adolescentes com notória experiência nas atividades ilícitas e idade muito próxima dos 18 anos. Em outras, a ação é voluntária, individual, com prática de crimes hediondos, com requintes de perversidade. Muitos acabam sendo objeto de internação em órgãos de reeducação por período máximo de três anos.

Minorar o problema

O que pode ocorrer com os envolvidos, do ponto de vista punitivo? O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê no artigo 121, §3º, a medida socioeducativa de internação, pelo período máximo de três anos. Se é o máximo, evidentemente, pode ser menor. E sendo menor, passa a ideia de que eventual punição por fato grave pode ficar em reduzido prazo de permanência.

É óbvio que nada justifica agravar-se a situação de menores para infrações de menor relevância. Mas nada justifica, da mesma forma, que ações violentas praticadas por jovens envolvidos em ações criminosas hediondas permaneçam sendo objeto de um simbólico afastamento da sociedade por alguns meses.

É preciso dar-se conta de que o Brasil mudou e que pesquisas de dez ou mais anos passados não conferem com a realidade atual. As promessas feitas pelo ECA no tratamento de jovens, dando-lhes condições de vida dignas de um país rico e socialmente justo, que incluem até convivência familiar e comunitária (capítulo III), ficaram apenas em idílicas intenções.

Conclusão

A defesa social precisa ser levada em conta, adequando as infrações cometidas pelos jovens atualmente, em 2025. A pesquisa da experiência de outros países revela que a melhor solução seria identificar condutas mais graves e dar-lhes tratamento especial, como feito na Espanha, em Cuba e na Carolina do Sul, nos EUA. Para estas, reduzir-se a responsabilidade do Código Penal para 16 anos ou estender-se o período de internação do ECA para seis anos. Afinal, diretores e professores de escolas públicas e — por que não? — privadas merecem. Da mesma forma, vítimas idosas ou mulheres, as preferidas nas ações violentas. Há muitos PLs no Congresso. Basta adequá-los e dar andamento.


[1] BBC News Brasil. ‘Adolescência’: como surgiu a sinistra ‘machosfera’ retratada pela série. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl0lxnrlezo. Acesso em 18 abr. 2025.

[2] CÃMARA DOS DEPUTADOS. Consultoria Legislativa. Ribamar Soares. Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/maioridade_penal_soares%20(4).pdf.

[3] Singapore.  Children and Young Persons Act 1969, s. 23(5). Disponível em: https://www.icmec.org/wp-content/uploads/2017/08/Singapore-National-Legislation.pdf. Acesso em 18 abr. 2025.

[4] Korea Legislation Research Institute. Criminal Act. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?hseq=28627&lang=ENG. Acesso em: 8 abr. 2025.

[5] Código Penal Português. Disponível em: https://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/legislacion/l_20080626_10.pdf

[6] Agencia Estatal Boletín Oficial del Estado. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-25444. Acesso em 25 abr. 2025.

[7] JJWLS. Qual é a idade de responsabilidade criminal na Carolina do Sul? Disponível em: https://aikenattorneys.com/age-criminal-responsibility-south-carolina/. Acesso em 26 abr. 2025.

[8] FindLaw. What are juvenile delinquents? Disponível em: https://www.findlaw.com/criminal/juvenile-justice/juvenile-delinquents.html#:~:text=Juvenile%20delinquents%20are%20minors%2C%20typically,through%20the%20juvenile%20justice%20system. Acesso em: 18 abr. 2025.

[9] Podcast Fio da Meada. Vanessa Cavalieri não quer prender o teu filho. YouTube – Rádio Novelo – 10 mar. 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q52jyluCug0. Acesso em: 18 abr. 2025.

[10] BBC News Brasil. Vou virar serial killer. Tô nem aí’: como adolescentes planejaram ataque a escola e esfaquearam professora no RS. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8x85rewn8vo. Acesso em 24 abr. 2025.

[11] G1 Mato Grosso do Sul. Adolescente de 14 anos era um dos chefes de rede de crimes de ódio contra menores na internet, diz polícia. Disponível em: https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2025/04/15/adolescente-de-14-anos-era-um-dos-chefes-de-rede-de-crimes-de-odio-contra-menores-diz-policia.ghtml. Acesso em 25 abr. 2025.

[12] CNN Brasil POP. Fernanda Montenegro agradece sucesso de “Vitória” e mostra novos bastidores. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/fernanda-montenegro-agradece-sucesso-de-vitoria-e-mostra-novos-bastidores/. Acesso em 25 abr. 2025.

Autores

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!