O reconhecimento de pessoas a partir de estudos empíricos (parte 2)
26 de abril de 2025, 8h00
Nesse artigo daremos continuidade ao tema cuja exposição iniciamos no artigo anterior dessa coluna (acesse aqui), principalmente considerando a aplicação dos conhecidos Princípios Méndez, elaborado por um comitê de especialistas liberados por Juan E. Méndez, visando a obtenção de informações precisas e confiáveis. Consideraremos, em especial, o primeiro dos princípios, segundo o qual “entrevistas eficazes devem ser guiadas pela ciência, pelo direito e pela ética, promovendo práticas que respeitem os direitos humanos e a dignidade dos entrevistados” [1].
A busca por maior confiabilidade no reconhecimento de pessoas no processo penal brasileiro ganhou impulso significativo com a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2021, o CNJ instituiu um grupo de trabalho coordenado pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, reunindo especialistas em psicologia do testemunho, com o objetivo de aprimorar os procedimentos de reconhecimento. Essa iniciativa culminou na edição da Resolução CNJ nº 484/2022, que busca padronizar o procedimento de reconhecimento, enfatizando a observância das normas processuais e das melhores práticas científicas.
Complementando essa iniciativa, em outubro de 2024 o CNJ lançou um manual de aplicação da Resolução 484/2022. Elaborado em colaboração com profissionais do sistema de justiça e pesquisadores da psicologia do testemunho, o manual visa reduzir erros judiciários decorrentes de falhas no reconhecimento, oferecendo diretrizes claras para a implementação de práticas mais seguras e confiáveis, alinhadas aos avanços na compreensão dos mecanismos cognitivos e sociais envolvidos nesse processo.
Apesar desses avanços, a legislação processual penal brasileira ainda carece de diretrizes claras e precisas para garantir um procedimento de reconhecimento alinhado às melhores práticas científicas. A ausência de parâmetros, como a quantidade mínima de pessoas não suspeitas (fillers) e as características para sua seleção, permite que procedimentos realizados sem os devidos cuidados técnicos e amparo científico sejam considerados válidos, aumentando o risco de erros judiciários.
Stein e Cecconello propõem orientações para um reconhecimento justo, alinhado às recomendações da psicologia do testemunho, divididas em três etapas [2]:
1. Antes do reconhecimento: A testemunha deve descrever o criminoso livremente, por meio de perguntas abertas, sem indução, detalhando aparência, local, hora do crime e ações do criminoso. É essencial que a testemunha forneça detalhes sobre a aparência do suspeito, como vestimenta, cor da pele, cabelos, acessórios, entre outros. Além disso, informações sobre o local, a hora do crime, a presença de outras pessoas e as ações do criminoso também devem ser solicitadas, garantindo uma descrição mais completa e precisa.
2. Preparação: O suspeito deve ser apresentado simultaneamente a fillers com características compatíveis, sem destaque, por meio de vidro espelhado ou fotografias, com apenas um suspeito por procedimento. Na fase preparatória ao reconhecimento, o suspeito deve ser apresentado simultaneamente a outros indivíduos não suspeitos (fillers) que possuam características físicas compatíveis com as descrições feitas pela testemunha, de modo que nenhum deles se destaque. Aqui uma importante observação: apenas uma pessoa suspeita deve ser incluída em cada procedimento de reconhecimento, sendo os não suspeitos (fillers) pessoas que não participaram do crime.
3. Durante o reconhecimento: O procedimento deve ser realizado por profissionais treinados, em “duplo cego”, com registro em áudio e vídeo. Durante o reconhecimento, que deve ocorrer o mais breve possível após o crime, os profissionais responsáveis pelo procedimento (que devem ser previamente treinados com base em evidências científicas) não devem saber quem é o suspeito nem sua posição no alinhamento (prática do “duplo cego”). Além disso, é fundamental que todo o processo de reconhecimento seja registrado por meio de áudio e vídeo, possibilitando a análise completa do procedimento, e não apenas do resultado.
Da necessidade de instrução antes do procedimento de reconhecimento
A mera convocação de uma testemunha para realizar um reconhecimento pode, inadvertidamente, gerar a expectativa de que o autor do crime se encontre entre os suspeitos apresentados. Essa presunção, conforme demonstrado por Wells et al. [3], pode desencadear o efeito compromisso, no qual a testemunha se sente compelida a identificar um culpado, mesmo diante da incerteza, comprometendo a precisão do reconhecimento. Aqui vale destacar também o efeito da retroalimentação da memória, em que a Autoridade que conduz o procedimento pode, sem sequer perceber, influenciar no resultado final, quer impulsionando um reconhecimento positivo (retroalimentação positiva), quer uma falta de reconhecimento (retroalimentação negativa) [4].

Nesse contexto, a instrução da testemunha antes do procedimento de reconhecimento assume papel crucial. A Resolução CNJ nº 484/2022 enfatiza a necessidade de informar à testemunha que o suspeito pode ou não estar presente no alinhamento e que não há obrigação de identificação. Essa orientação visa dissipar a pressão sobre a testemunha, assegurando que sua participação no procedimento ocorra sem interferências externas que possam contaminar o resultado. Além disso, essa abordagem contribui para aumentar a precisão da testemunha no reconhecimento, uma vez que diminui a sobrecarga cognitiva e favorece uma escolha mais assertiva [5].
Estudos como os de Brewer, Wells [6] e Clark [7] mostram que instruções tendenciosas, que induzem ou encorajam a identificação, aumentam as chances de a testemunha ou vítima apontar um suspeito, seja ele correto ou não. Em contrapartida, instruções imparciais, como informar que o suspeito pode ou não estar entre os apresentados ou que a testemunha pode ou não reconhecer alguém, reduzem as chances de uma escolha aleatória, promovendo um reconhecimento mais preciso [8].
Experimento empírico brasileiro
Com o objetivo de analisar na prática o cerne do tema tratado nesse artigo, realizou-se estudo, desenvolvido no âmbito do Programa de Mestrado em Psicologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná, em que foram investigados empiricamente os efeitos de instruções imparciais no reconhecimento de pessoas em contexto testemunhal. Foi apresentado aos participantes um vídeo curto retratando uma agressão, após o qual realizaram uma tarefa de reconhecimento usando dois alinhamentos fotográficos diferentes: um com pouca padronização (grupo A) e outro altamente padronizado (grupos B e C). A principal distinção foi que apenas o grupo C recebeu instruções explícitas de que o agressor poderia ou não estar presente nas fotos, além da garantia de continuidade das investigações independentemente do resultado obtido.
Os resultados indicaram que a maioria dos participantes fez uma escolha independentemente da sua exatidão, embora as instruções imparciais tenham levado mais participantes do grupo C a não identificarem qualquer suspeito, reduzindo potencialmente pressões implícitas para fazer um reconhecimento. Além disso, verificou-se que o grau de confiança manifestado pelos participantes não apresentou relação direta com a exatidão das identificações feitas, reforçando a conclusão de estudos anteriores, como o de Malpass e Devine, sobre o benefício de instruções imparciais na redução de reconhecimentos falsos, sem prejuízo significativo das identificações corretas [9].
Considerações finais
Os estudos destacados no texto e, bem assim, o experimento prático descrito no tópico anterior apontam que o reconhecimento de suspeitos pode ter sua falibilidade substancialmente reduzida com a apresentação de instruções imparciais antes de se proceder com a apresentação de suspeitos para as testemunhas oculares. Essa instrução imparcial é uma das engrenagens necessárias para que se garanta o mínimo de segurança do processo de reconhecimento, por permitir que a testemunha/vítima se sinta confiável, livre de qualquer pressão, para proceder, analisar e assimilar os rostos apresentados.
Os resultados, como sói esperar, reafirmam que a memória é algo frágil e suscetível aos mais diversos tipos de influências — internas ou externas. As narrativas apresentadas pelas testemunhas oculares de um crime devem, por isso, ser avaliadas e sopesadas, além de analisadas sob um ponto de vista científico, como recomendado pelos Princípios Méndez, não sendo recomendável sua utilização como provas isoladas para tomadas de decisão, sob o risco de que injustiças como a condenação de pessoas inocentes ocorram.
O reconhecimento de suspeitos é uma ferramenta importante para a investigação policial e para o sistema judiciário, sendo meio de prova dependente da memória; porém, ainda há muito a ser feito para aperfeiçoar as estratégias e lograr que o procedimento seja seguro e cientificamente embasado. Entre outras orientações técnico-científicas, a utilização de instruções imparciais antes e durante a etapa do reconhecimento pode auxiliar em muito para a qualidade no reconhecimento.
As pesquisas nessa área fornecem subsídios para o desenvolvimento de estratégias de instrução eficazes e a definição de padrões mínimos para a identificação de suspeitos (Cutler & Penrod [10]; Brown et al. [11]). A busca por um sistema de justiça criminal mais justo e preciso exige a integração de evidências científicas e a prática forense. Como defendem Wells et al. [12], a colaboração entre pesquisadores e profissionais do sistema de justiça é fundamental para aprimorar os procedimentos de reconhecimento e minimizar o risco de erros judiciais.
Afinal, falsos positivos ou negativos no ambiente processual, em especial o penal, equivalem a condenações equivocadas, destruindo vidas e, muitas vezes, reforçando injustiças epistêmicas já existentes em muitas camadas [13]. Um sistema injusto equivale, em tudo e por tudo, a uma manifestação estatal desacoplada ao padrão de correção que se espera no ambiente democrático-constitucional [14].
[1] MÉNDEZ, Juan E. Princípios sobre Entrevistas Eficazes para Investigação e Coleta de Informações. Genebra: Associação para a Prevenção da Tortura, 2021. Disponível em: https://www.apt.ch/sites/default/files/publications/apt_PoEI_POR_03.pdf. Acesso em: 24 abr. 2025.
[2] STEIN, L. M., & CECCONELLO, W. W. (2020). Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances En Psicología Latinoamericana, 38(1).
[3] WELLS, G. L., Kovera, M. B., DOUGLASS, A. B., BREWER, N., MEISSNER, C. A., & WIXTED, J. T. (2020). Policy and procedure recommendations for the collection and preservation of eyewitness identification evidence. Law and Human Behavior, 44(1), 3–36.
[4] WELLS, Gary L.; BRADFIELD, Amy L. Good, you identified the suspect: feedback to eyewitnesses distorts their reports of the witnessing experience. Journal of Applied Psychology, Washington, v. 83, n. 3, p. 360-376, 1998. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/232449763_Good_you_identified_the_suspect_Feedback_to_eyewitnesses_distorts_their_reports_of_the_witnessing_experience. Acesso em: 24 abr. 2025.
[5] STEBLAY, N. K. (2013). Lineup instructions. In Reform of eyewitness identification procedures. (pp. 65–86). American Psychological Association.
[6] BREWER, N., & WELLS, G. L. (2009). Obtaining and Interpreting Eyewitness Identification Test Evidence: The Influence of Police-Witness Interactions. In Handbook of Psychology of Investigative Interviewing (pp. 205–220). Wiley-Blackwell.
[7] CLARK, S. E. (2005). A Re-examination of the Effects of Biased Lineup Instructions in Eyewitness Identification. Law and Human Behavior, 29(4), 395–424.
[8] WELLS, G. L., Kovera, M. B., DOUGLASS, A. B., BREWER, N., MEISSNER, C. A., & WIXTED, J. T. (2020). Policy and procedure recommendations for the collection and preservation of eyewitness identification evidence. Law and Human Behavior, 44(1), 3–36.
[9] MALPASS, R. S., & DEVINE, P. G. (1981). Eyewitness identification: Lineup instructions and the absence of the offender. Journal of Applied Psychology, 66(4), 482–489. https://doi.org/10.1037/0021-9010.66.4.482
[10] CUTLER, B. L. & PENROD, S. (1995). Mistaken identification: the eyewitness psychology and the law. Cambridge University Press.
[11] BROWN, E., DEFFENBACHER, K., & STURGILL, W. (1977). Memory for faces and the circumstances of encounter. Journal of Applied Psychology, 62(3), 311–318.
[12] WELLS, G. L., Kovera, M. B., DOUGLASS, A. B., BREWER, N., MEISSNER, C. A., & WIXTED, J. T. (2020). Policy and procedure recommendations for the collection and preservation of eyewitness identification evidence. Law and Human Behavior, 44(1), 3–36.
[13] FRICKER, Miranda. Epistemic injustice: power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007.
[14] ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
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