Opinião

Proibição de importação de resíduos sólidos: exigências para aplicação da Lei nº 15.088

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  • é editor-chefe da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB) visiting-student na University of California Berkeley e pesquisador do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da UnB.

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  • é advogada bacharel em Direito pela UnB pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de Dados pela PUC-RS coordenadora e pesquisadora do Privacy Lab – Cedis/IDP.

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24 de abril de 2025, 6h38

Em 2023, a pretexto de suprir a demanda da indústria local, o Brasil gastou US$ 388 milhões para comprar cerca de 260 mil toneladas de lixo do exterior. Apesar disso, neste mesmo ano, apenas 4% dos resíduos sólidos gerados em território nacional foram reciclados ou reaproveitados.

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Essa contradição foi um dos elementos que levou o Congresso a se debruçar sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei nº 12.305/2010, que vedava a importação de resíduos perigosos e rejeitos que causassem danos ao meio ambiente e à saúde pública, mas permitia o ingresso no território nacional de outros tipos de resíduos.

Ciosos de que autorizar a importação de lixo ao invés de estruturar a gestão interna configura um contrassenso, os parlamentares editaram a Lei nº 15.088/2025, sancionada em 6 de janeiro de 2025, que proibiu “a importação de resíduos sólidos e de rejeitos, inclusive de papel, derivados de papel, plástico, vidro e metal”.

A lei representou um avanço significativo na política de gestão de resíduos e demonstra potencial para estimular a conclusão do ciclo produtivo dos bens que estão no Brasil: ao proibir a entrada de resíduos sólidos e rejeitos estrangeiros, o legislador encoraja o aproveitamento dos resíduos pós-consumo gerados internamente, fortalece a economia circular — termo que traduz a ideia de tratar os resíduos domésticos como insumos a serem reintegrados nos ciclos produtivos — e beneficia uma parcela vulnerável da força de trabalho brasileira, a dos catadores de materiais recicláveis.

O novo paradigma também reafirmou o princípio de que nenhum país deve se tornar depósito de lixo estrangeiro, em consonância com o princípio global da justiça ambiental e a Convenção de Basileia, ratificada pelo Brasil em 1993.

Apesar dos méritos da norma, celebrada por ambientalistas e cooperativas de catadores, o Congresso previu duas exceções à regra posta — permitiu a importação (1) de derivados de produtos nacionais previamente exportados e (2) de resíduos utilizados na transformação de materiais e minerais estratégicos e de resíduos de metais e materiais metálicos.

Ambas as exceções foram submetidas pelo legislador a regulamentação por parte do Poder Executivo, concretizada pelo Decreto nº 12.438, de 17 de abril de 2025. Dentre os principais aspectos definidos pelo governo federal, destacam-se a restrição quanto à finalidade específica dos materiais e minerais estratégicos, a delimitação e listagem dos resíduos passíveis de importação — com possibilidade de revisão e expansão posterior — e o detalhamento sobre a permissão para importação de resíduos originados de exportações brasileiras.

Postulados

Embora o decreto estabeleça formalmente exceções restritas à importação de resíduos sólidos, uma análise mais aprofundada revela fragilidades no conteúdo do ato normativo que podem ser exploradas de forma prejudicial à sustentabilidade ambiental e à justiça social. Isso ocorre especialmente porque o documento adota critérios excessivamente amplos para a inclusão de resíduos autorizados à importação.

Spacca

Assim sendo — e considerando que a aplicação do decreto em questão deve ser coerente com o espírito da norma editada pelo Legislativo, de modo a não esvaziar o comando legal —, convém rememorar certos postulados consagrados no ordenamento jurídico brasileiro que devem orientar os órgãos de controle no momento de emitir autorizações para a importação de resíduos.

Especialmente quanto à proteção do meio ambiente — que adquiriu status constitucional em 1988 — impõe-se ao poder público e à coletividade o dever de defender e preservar os recursos ambientais para as gerações presentes e futuras (artigo 225 da CF/88). Essa diretriz constitucional condiciona toda atuação administrativa e legislativa relacionada às políticas públicas ambientais.

Nesse sentido, o princípio da prevenção orienta a adoção de medidas capazes de evitar danos ambientais previsíveis, o que, no presente caso, justifica uma regulamentação restritiva quanto à entrada de qualquer resíduo no território nacional. O princípio da precaução, por sua vez, recomenda máxima prudência diante de incertezas científicas. Assim, sempre que houver dúvida sobre a segurança da importação de determinados resíduos deve prevalecer a proteção ao meio ambiente, com a rejeição da autorização de importação.

Além disso, o princípio da hierarquia dos resíduos, extraído da Política Nacional de Resíduos Sólidos, estabelece uma ordem prioritária para a gestão destes: primeiro, evitar sua geração; em seguida, reduzi-la ao máximo; posteriormente, reutilizar e reciclar os materiais produzidos; reservando-se apenas em último caso a disposição final. Permitir importação sem critérios claros ou rigorosos contraria diretamente essa hierarquia normativa, desestimularia o reaproveitamento de resíduos já existentes no país e comprometeria a eficácia da política nacional de resíduos sólidos.

A PNRS também consagra a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto, determinando que fabricantes, importadores, comerciantes, consumidores e o poder público dividam a obrigação pela correta gestão dos resíduos gerados. Essa lógica reforça o dever de priorizar materiais nacionais e incentivar as indústrias a investir em mecanismos internos eficientes de coleta, triagem e reciclagem, em vez de recorrer à importação de matéria-prima secundária por mera conveniência econômica.

Ademais, evitar que o país se torne rota para despejo irregular de resíduos e rejeitos é medida de soberania nacional. A já mencionada Convenção de Basileia consagra o princípio da autossuficiência na gestão de resíduos, segundo o qual cada nação deve priorizar a gestão interna dos resíduos produzidos internamente, desencorajando fluxos internacionais desnecessários.

Por fim, sob o ângulo da segurança ambiental, a importação de resíduos envolve o transporte desses materiais por longas distâncias, o que resulta em elevadas emissões de carbono e no agravamento do risco de introdução de resíduos contaminados ou incompatíveis com os padrões nacionais de segurança ambiental e saúde pública.

Critérios

Para assegurar que as exceções previstas na lei e no Decreto nº 12.438/2025 não fragilizem a regra geral de proibição da importação de resíduos, a sua aplicação deve considerar o estabelecimento de critérios rígidos e bem definidos, observando especialmente os seguintes pontos:

1) Comprovação de escassez interna do material: Qualquer autorização para importar resíduos deve estar condicionada à comprovação de que o material em questão é insubstituível e encontra-se indisponível ou insuficiente no mercado nacional. Essa exigência previne que a importação ocorra apenas por conveniência econômica, restringindo-a às situações específicas em que a cadeia produtiva seria seriamente prejudicada sem o recurso externo. Essa abordagem está alinhada ao princípio da subsidiariedade, pelo qual se deve privilegiar recursos nacionais antes de recorrer ao mercado externo.

2) Avaliação socioambiental: Além da exigência de se comprovar a escassez, a autorização excepcional deve avaliar detalhadamente os impactos econômicos, sociais e ambientais de qualquer importação excepcional proposta. Recomenda-se que essa análise seja conduzida ou validada pelo órgão ambiental federal competente — no caso, o Ibama — e considere fatores como os efeitos sobre a cadeia produtiva nacional (com ênfase nas cooperativas e catadores), o potencial de geração de resíduos perigosos ou não recicláveis, os riscos sanitários e as emissões de gases poluentes decorrentes do transporte.

Somente se a conclusão for no sentido de que a operação é ambientalmente segura, socialmente justa e economicamente válida é que a importação deve ser autorizada. Aqui se aplicam diretamente os princípios da prevenção e da precaução: diante de qualquer dúvida, deve-se negar ou postergar a licença até que se tenha segurança técnica sobre a segurança e a sustentabilidade da importação. Cumpre-se, então, o equilíbrio entre desenvolvimento econômico, inclusão social e proteção ambiental, conforme preconiza a PNRS.

3) Autorizações de caráter temporário e revisão periódica obrigatória: Mesmo atendidos os requisitos anteriores, as permissões excepcionais devem ter prazo certo e ser submetidas a revisões periódicas obrigatórias. Essa diretriz garante que a exceção não se cristalize em regra.  Nesse contexto, ao fim do prazo de validade das licenças, as empresas devem apresentar documentos atualizados que comprovem a necessidade da importação.

Eventuais mudanças nas condições originais, como aumento da oferta doméstica ou redução da necessidade industrial, podem levar à rejeição da permissão. Além disso, qualquer descumprimento das condições estipuladas pelo órgão regulador, como volume, destinação adequada ou prevenção de passivos ambientais, deve levar à suspensão imediata ou cancelamento da autorização, sem prejuízo da aplicação de punições previstas na legislação ambiental, como tráfico ilegal de resíduos.

4) Fiscalização multissetorial integrada e cooperação institucional: A regulamentação deve prever mecanismos integrados de fiscalização que envolva os diversos órgãos competentes: ambientais (como Ibama e órgãos estaduais do Sisnama), aduaneiros, sanitários e de defesa comercial. A adoção de procedimentos coordenados reduz vulnerabilidades e evita fraudes, como a descaracterização intencional de resíduos proibidos.

O fluxo constante de informações entre autoridades federais, estaduais e municipais, possivelmente por meio de um comitê interinstitucional específico, garantirá fiscalização efetiva desde a entrada dos resíduos até sua destinação final. Inspeções periódicas, conferências documentais e análises físicas das cargas devem constituir rotina operacional, assegurando resposta rápida e eficaz diante de qualquer irregularidade detectada.

5) Integração com economia circular e responsabilidade compartilhada: Por fim, a aplicação da lei deve estar alinhada à estratégia maior de transição para uma economia circular e da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, previstas na PNRS. As importações excepcionais devem ser explicitamente vinculadas à implementação de programas avançados de logística reversa, reciclagem integral e participação ativa de cooperativas e catadores na cadeia produtiva.

A concessão das licenças deve obrigar à apresentação e aprovação prévia de Planos de Logística Reversa, detalhando o tratamento dos resíduos importados desde o ingresso até sua reutilização final. Essa medida evita o risco de destinação inadequada dos resíduos importados e reforça o compromisso socioambiental estabelecido pela PNRS, promovendo simultaneamente sustentabilidade ambiental, inclusão social e desenvolvimento econômico equilibrado.

Conclusão

Embora o Decreto nº 12.438/2025 tenha esclarecido algumas proibições de importação, ele também abriu margem para a inclusão de outros resíduos que, ao invés de impulsionar uma economia circular robusta e inclusiva no Brasil, pode acabar por fragilizar a política nacional de gestão sustentável de resíduos sólidos.

Ainda assim, é possível preservar o espírito da lei. Cabe agora aos órgãos reguladores e fiscalizadores a responsabilidade de aplicar a norma com rigor técnico e compromisso socioambiental, assegurando que as exceções não se convertam em brechas, mas em instrumentos pontuais e justificados de apoio à cadeia produtiva nacional.

A interpretação e a implementação da norma devem, enfim, reafirmar os princípios da precaução, prevenção, responsabilidade compartilhada e economia circular, garantindo que o Brasil avance em sua política de gestão de resíduos sólidos com justiça social, sustentabilidade ambiental e segurança jurídica.

 


[1] Disponível em: https://www.poder360.com.br/conteudo-patrocinado/brasil-recicla-apenas-4-mas-importa-lixo-para-a-industria/

Autores

  • é professor de Direito Público (IDP), advogado, diretor do Departamento Jurídico da Fiesp, membro consultor da Comissão de Assuntos Regulatórios do Conselho Federal da OAB, auditor do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), pesquisador vinculado à Universidade de Brasília e à Universidade de São Paulo, ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

  • é advogada, bacharel em Direito pela UnB, pós-graduanda em Direito Digital e Proteção de Dados pela PUC-RS, coordenadora e pesquisadora do Privacy Lab – Cedis/IDP.

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