Mesmo sem previsão no contrato social, STJ valida exclusão extrajudicial em sociedade limitada
24 de abril de 2025, 15h18
Quando o Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria, admitir a exclusão extrajudicial de sócio em sociedade limitada mesmo sem cláusula contratual expressa autorizando tal mecanismo — desde que houvesse documento assinado por todos os sócios em que tal possibilidade estivesse acordada —, a 3ª Turma não apenas reinterpretou o Código Civil; ela, ainda que talvez inconscientemente, reacendeu um debate jurídico que há muito tremeluzia como uma vela esquecida nos bastidores do direito societário brasileiro: até onde vai o contrato social, e quando é que o “não escrito” se torna, para todos os efeitos, vinculante?
Na raiz da decisão está um raciocínio tão elementar quanto corajoso: se todos os sócios pactuaram, por instrumento autônomo e bilateralmente vinculante, a possibilidade de exclusão extrajudicial por falta grave, que razão haveria para desprezar tal consenso apenas porque o contrato social permaneceu, digamos, castamente silencioso sobre o tema? A resposta tradicional e dogmática teria sido: “porque a lei exige previsão contratual”. Mas o STJ optou por algo mais sofisticado — e, por que não dizer, mais fiel ao espírito da autonomia privada.
No caso julgado (REsp 1.629.164/RS), a exclusão de um sócio minoritário deu-se com base em um documento assinado por todos os sócios — um acordo de sócios em sentido lato — que previa, com razoável clareza, a possibilidade de exclusão por atos de inegável gravidade. O sócio excluído havia, segundo os demais, praticado reiterados atos de sabotagem contra a empresa, rompido deveres fiduciários e alimentado um ambiente de permanente hostilidade. Nada de trivial, diga-se. Ainda assim, a ausência de previsão contratual expressa gerou dúvida: seria lícito dispensar o Judiciário e lançar mão de uma exclusão direta, ainda que com base em documento assinado por todos?
A resposta do STJ foi afirmativa. E, com isso, a Corte desenha um cenário em que a autonomia privada — especialmente na sua forma mais moderna, isto é, por meio de acordos de sócios — deixa de ser mero adorno retórico e passa a funcionar como pilar prático da governança corporativa brasileira. Pode-se ouvir, ao fundo, um suspiro coletivo das startups, dos fundos de investimento, dos family offices e de todos os que, há anos, convivem com a incerteza jurídica em torno da efetividade desses instrumentos de organização societária.
Decisão é inovadora
Mas a decisão, embora inovadora, não é revolucionária no mau sentido. Pelo contrário. Ela representa, na verdade, um reencontro do direito societário brasileiro com a racionalidade contratual que embasa as jurisdições mais sofisticadas. A jurisprudência da Chancery Court é explícita ao afirmar que a vontade dos sócios — desde que expressa em documento escrito — deve prevalecer, ainda que não formalizada em instrumento arquivado publicamente.
O mesmo se dá na Alemanha, onde o Gesellschaftervereinbarung (acordo entre sócios) goza de elevada força normativa, especialmente no contexto de sociedades limitadas (GmbH), mesmo que não conste do contrato social registrado. No Reino Unido, as Shareholders’ Agreements são tratados com reverência quase eclesiástica: o contrato social (Articles of Association) pode ser um bibelô institucional, mas é no acordo de acionistas que se encontram os verdadeiros comandos da governança.
A lição, portanto, não está em copiar modelos estrangeiros, mas em compreender a lógica subjacente: a forma deve ceder ao conteúdo quando o conteúdo é inequívoco, consensual e juridicamente legítimo. É isso que a decisão do STJ ensina, ainda que com timidez. O Judiciário, talvez cansado de servir de árbitro para brigas societárias previsíveis e evitáveis, finalmente reconhece que os sócios podem e devem se antecipar aos conflitos e pactuar soluções extrajudiciais robustas.

Ainda assim, é importante não se embriagar com o entusiasmo. A decisão traz riscos — e aqui entra a crítica que não pode ser silenciada. A ausência de previsão expressa no contrato social gera um problema de publicidade e oponibilidade a terceiros. Embora o acordo de sócios tenha sido assinado por todos, ele não foi levado a registro na Junta Comercial.
Isso cria um dilema jurídico: até que ponto se pode admitir que uma deliberação baseada em documento não registrado altere, de forma tão drástica, a composição societária? O contrato social, afinal, continua sendo o único documento de registro obrigatório e de eficácia erga omnes. A decisão do STJ, nesse ponto, abre uma fresta perigosa: pode-se estar admitindo um novo tipo de informalismo societário, que escancara a porta para arbitrariedades disfarçadas de autonomia.
Mais seriedade à estrutura jurídica
É aqui que a doutrina brasileira precisa despertar do seu torpor. Se os acordos de sócios vão de fato ganhar protagonismo, será necessário tratar com mais seriedade sua estrutura jurídica, sua formalização e sua eficácia perante terceiros. A regra do artigo 1.085 do Código Civil — que admite a exclusão judicial do sócio por falta grave — permanece intocada. O que o STJ fez foi, em certa medida, permitir que os próprios sócios operem uma “judicialização privada” de suas relações. Um avanço? Sem dúvida. Mas também um convite à reflexão normativa. Por que não admitir, de uma vez por todas, que os acordos de sócios têm força vinculante e podem até mesmo complementar ou suplantar o contrato social em certas matérias?
Nesse ponto, a decisão da 3ª Turma é como uma trilha ainda pouco desbravada: bela, promissora, mas cheia de pedras ocultas. A jurisprudência futura terá de esclarecer se há limites para essa nova forma de exclusão extrajudicial e, principalmente, como proteger o equilíbrio entre controle societário e direitos minoritários.
Como todo avanço interpretativo, essa decisão do STJ precisa ser lida com cuidado: ela é menos um “liberou geral” e mais um “atenção aos detalhes”. A jurisprudência criou uma exceção, mas não aboliu a regra. O contrato social continua sendo a âncora de segurança jurídica nas relações societárias — e seu silêncio, embora agora não mais impeditivo absoluto, ainda é um terreno movediço. Portanto, um bom societarista segue a lei. E, se quiser segurança, insere a cláusula no contrato social e ancora tudo nos dois planos: o formal e o material. O acordo de sócios pode ser a alma, mas o contrato social ainda é — e por ora continua sendo — o corpo.
No fim, resta uma provocação que talvez incomode os puristas, mas que os pragmáticos abraçarão com gosto: e se o futuro do direito societário brasileiro não estiver no contrato social, mas justamente naquilo que ele omite — nos pactos paralelos, nos protocolos informais, nos entendimentos não registrados, mas reiteradamente respeitados? A decisão do STJ é o primeiro passo para essa inversão silenciosa. A pergunta que fica é se estamos preparados para um direito societário onde o que vale é o que se combina — e não necessariamente o que se publica. E talvez, apenas talvez, isso não seja uma heresia, mas um amadurecimento.
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