Depoimento especial paulista é antiético e autoritário
24 de abril de 2025, 9h19
Em texto publicado nesta ConJur (aqui), Aury Lopes Junior e Alexandre Moraes da Rosa demonstraram, já em 2015, o quanto o depoimento especial é um espetáculo punitivo do bem, criticado abertamente pelos conselhos federais (psicologia e serviço social) que o consideram ilegal, porque submetem esses profissionais a servir de instrumento como meio de obtenção da prova processual. Sugiro que o leitor parta daquela crítica feita pelos professores, com a qual concordamos, a fim de compreender a questão antiética, cujo termo emprestamos, para seguir na leitura deste texto. Mas, como bem lembra Moraes da Rosa a todo momento, o jogo está aí e é preciso saber jogar. Ao confronto.
O inconformismo, aqui, portanto, é com o método adotado por alguns julgadores do Tribunal de Justiça de São Paulo no depoimento especial que, mais grave do que o apontado pelos doutrinadores acima, estabelecem a prática de ato oculto e longe do controle estatal e das partes, contrariando as próprias diretrizes fixadas pelo TJ-SP. Autoritário, pois bem!
Em outro artigo também publicado nesta ConJur (aqui), trabalhando a respeito dos falsos reconhecimentos, alerta-se sobre a importância e a necessidade do tratamento jurídico probatório passar por uma “filtragem epistêmica”, o que exige que os procedimentos empregados nessa busca sejam capazes de ajustar a prova no contexto jurídico à realidade extrajurídica dos fatos, “nos limites admitidos pelo processo”. Tudo para que haja um diálogo do Direito com outras áreas do conhecimento permitindo a identificação de erros cometidos na forma pela qual as provas são produzidas [1].
Nessa linha da redução de danos na produção da prova, o artigo 12, da Lei nº 13.431/17 é que dita a forma como deve ser colhido o depoimento especial da vítima. Fixa que:
“I – os profissionais especializados esclarecerão à criança ou ao adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhes seus direitos e os procedimentos a serem adotados, e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;
II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;”.
A leitura dos incisos I e II, do artigo 12, não deixa dúvida de que os profissionais, como primeiro ato do depoimento especial, têm que esclarecer à criança ou ao adolescente sobre o depoimento, ou seja, como ele ocorrerá, mas, não do que se trata, tanto que não devem fazer menção à denúncia ou às peças processuais. Devem, ainda, informar seus direitos e, entre eles, o de ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer em silêncio (artigo 5, VI, da Lei nº 13.431/17).
Já, num segundo momento, os profissionais devem garantir a livre narrativa sobre a situação de violência, ou seja, é vedada a condução (induzimento) do depoimento; a realização de perguntas fechadas; ou perguntas sugestivas/confirmatórias. Por consequência, perguntar já respondendo.

Ademais, a própria regra ressalta que o profissional pode intervir, apenas, para elucidar fatos, ou seja, pedir explicações melhores sobre a narrativa. Mas, repete-se, jamais conduzir o depoimento.
A narração livre, portanto, é garantia epistêmica capaz de ajustar a prova no contexto jurídico à realidade extrajurídica dos fatos (Alexandre Moraes da Rosa [2]). É por essa razão que o profissional especializado deve agir dentro dos limites permitidos pela regra, assim como o magistrado quando do cumprimento do artigo 212 do Código de Processo Penal.
O que diz o protocolo
Não se pode perder de vista, também, o contido no Protocolo Brasileiro de Entrevistas Forense (PBEF) que foi construído como um “instrumento de concretização do artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança à medida em que contribui para ampliar as oportunidades para que as crianças sejam ouvidas em todos os processos judiciais e administrativo que lhes afetem”, e que foi instituído como uma referência metodológica nacional para o depoimento especial por meio da Resolução 299/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como forma de implementar a Lei nº 13.431/17, oferecendo metodologia de tomada de depoimento especial.
No Capítulo 2 do mencionado protocolo encontramos, dentre inúmeras recomendações — vamos reduzir o leque de incidência ao que interessa ao texto, não esgotando o assunto, e nem temos essa pretensão — uma que orienta, como forma de construir uma base para a “conversa forense”, que essa facilite a versão da criança sobre uma potencial ocorrência de violência contra ela, ou seja, sem que haja referência direta ao fato investigado. Espera-se que haja uma narrativa livre. O normativo estabelece, ainda, que “visando à proteção da criança e do adolescente e do entrevistador e à validação das evidências coletadas, deve-se gravar a entrevista, desde o início, incluindo a etapa da construção da empatia”.
E assim é, ou deve(ria) ser, porque nessa fase inicial da entrevista, da criação da empatia, a criança/adolescente pode perfeitamente começar a relatar a respeito dos fatos que são objeto do delito que teria sido vítima ou presenciado, e não deve haver o fechamento dessa abertura realizada pelo entrevistado, ao contrário, incentiva-se. Contudo, como se trata já de prova produzida, de rigor que a defesa e a acusação tenham pleno conhecimento do que esteja ocorrendo. Por isso a advertência a respeito da gravação.
Não obstante seja a regra clara, o depoimento especial, em muitas comarcas do Tribunal de Justiça de São Paulo, é realizado em total descompasso com o fixado pela Lei nº 13.431/17 e no PBEF. É que, muito embora, a Corregedoria Geral de Justiça e a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo tenham editado o Comunicado Conjunto nº 1948/2018 (CIJ nº 00066030/11), alterado pelo CGJ 2501/2021, em que expressaram que a entrevista prévia prevista no PBEF é ato integrante do protocolo do depoimento especial, recomendando algumas práticas no depoimento especial, ao fim e ao cabo, acabou modificada a estrutura fixada pela Lei nº 13.431/17, em razão da forma como o ato é praticado em algumas comarcas, além de outros desvios.
Uma das primeiras falhas da recomendação do comunicado está na liberação ao acesso dos autos para os técnicos (VII, “b”) que realizarão o depoimento especial. Ora, qual o propósito de se liberar aos profissionais o acesso aos autos se é vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais? Qual a necessidade de conhecimento do processo? Há nesse acesso um pré-juízo cognitivo dos profissionais, porque cria um pré-conceito e um pré-julgamento a respeito dos fatos em desfavor do acusado. Ou seja, há uma contaminação dos próprios profissionais, rompendo com a estética de imparcialidade. Mas isso é palco para outra discussão. Aqui, o tema principal é outro.
Longe da defesa
O comunicado fixa que o depoimento especial deve seguir as regras do artigo 12, da Lei nº 13.341/17. Insere, dentro do seu texto, a previsão da entrevista preliminar em que busca uma avaliação da família e da criança/adolescente, a ser realizada pelos profissionais da equipe técnica (item VII, “c”), cujo objetivo é criar um vínculo entre o técnico e a criança/adolescente, o que se denominou de fase de rapport, sem o acompanhamento do juiz, do Ministério Público e, mais grave, da defesa.
Notem que a Lei nº 13.341/17 não contém a previsão da entrevista preliminar, o que já indicaria uma ilegalidade do comunicado. Porém, como o comunicado se reporta às diretrizes do PBEF, como forma de suprir suas omissões, e onde é prevista a entrevista preliminar, poderíamos admitir um rastro de legalidade nesse ato. Acontece que as diretrizes do PBEF, por consequência, o Comunicado, não permitem que o profissional especializado converse antecipadamente com a criança/adolescente de maneira a criar um pré-julgamento, e em pré-juízo das partes, sem o acompanhamento da defesa e, menos ainda, o registro em áudio-vídeo, como é uma preocupação da Lei nº 13.431/17 (VI, do artigo 12) e do PEBF.
Entretanto, em diversas localidades do estado de São Paulo o ato tem sido praticado longe dos olhos da defesa, pior, em momentos distintos, quando os normativos são expressos em determinar que o ato (depoimento especial) é único. Há evidente ofensa à lei, porque o ato é praticado sem transparência, controle e publicidade, atingindo a plenitude da defesa do acusado.
A questão está na ausência de transparência, publicidade (artigo 5º, LX, da CF) e no controle do ato jurisdicional, se é que assim podemos chamar esse ato não previsto na legislação. A defesa, referente a esse “ato jurisdicional” fica absolutamente ignorante quanto ao modo “como” se posicionaram a vítima, as testemunhas (crianças/adolescentes), e, principalmente, os profissionais nessa entrevista preliminar.
Os profissionais relataram os fatos ou as provas à vítima ou às testemunhas? Não se sabe. Isso porque tiveram acesso ao processo, ou seja, estavam contaminados com os fatos colhidos na fase investigativa. Não se trata de colocar em dúvida a capacidade dos profissionais, mas, de reconhecer que eles estão sujeitos a pré-juízos cognitivos que o conhecimento do processo pode gerar. Não é possível ignorar esse fato. É por essa razão que o ato jurisdicional, especialmente o que busca a prova, não pode permitir dubiedades.
Mesmo que encontremos vozes a defender o ato de entrevista prévia, como dissemos, há ilegalidade, quando menos, na ausência de registro em áudio e vídeo de referido ato que foi realizado sem o acompanhamento da defesa, como é da regra do Decreto regulamentador da Lei nº 13.431/17 (§2º, do artigo 26, do Decreto nº 9.603/18). Pior, o comunicado visa, na entrevista prévia, que os profissionais avaliem as condições psicológicas da criança/adolescente e não os fatos como aconteceram, o que mais ainda se presta para se questionar o motivo, as razões, para que tenham acesso aos autos, o que não se te como recomendação no PBEF.
Quando o depoimento especial, da criança ou do adolescente, é cindido em duas etapas, como ocorre em diversas comarcas paulistas, para contemplar, complementar ou adicionar uma entrevista prévia ao ato, e que é realizada sem a participação da defesa e sem transparência, há ofensa direta ao artigo 12, e seus incisos, da Lei nº 13.431/17, que estabelecem como primeiro ato do depoimento especial, que os profissionais esclareçam à criança ou adolescente sobre o depoimento, ou seja, como ele ocorrerá (1), assegurando a livre narrativa (2), transmitindo o ato em tempo real (3), passando em seguida às perguntas do MP e às da defesa, se pertinentes (4); gravado em áudio e vídeo (5).
Não há entrevista prévia. Mas, mesmo que houvesse, conforme recomendação do protocolo, ainda assim, não poderia ocorrer longe dos olhos da defesa e, nunca, para tratar dos fatos.
O ministro Sebastião Reis, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, recentemente em decisão noticiada nesta revista, no AREsp 2.603.472 deixou claro que o depoimento especial deve observar o rito da Lei nº 13.431/17, isso num caso em que o Tribunal de Justiça de Goiás havia determinado que as crianças e adolescentes fossem ouvidos em juízo na presença de psicólogos do quadro de servidores do Judiciário, que deveriam auxiliar nas perguntas a serem feitas, mas em que a entrevista ocorreu, apenas, pelo servidor e sem a participação das partes, entendendo o ministro que o inciso IV, do artigo 12 da Lei Federal diz que, após o depoimento especial, o juiz deve consultar o Ministério Público, a defesa e os assistentes técnicos sobre perguntas complementares, cuja pertinência será avaliada. A conduta do Tribunal de Justiça de Goiás violou o contraditório, nas palavras da Corte.
Resumindo. Como se extrai do protocolo de regramento do depoimento especial e, também, do Comunicado Conjunto 2501/2021, não há, num Estado Constitucional de Direito, ato jurisdicional praticado às ocultas. Isso é típico de regimes autoritários e ditatoriais. Deve, portanto, o Tribunal de Justiça paulista atentar para o pleno cumprimento dos normativos de regência que tratam do depoimento especial, sempre lembrando que a entrevista preliminar é parte integrante desse, de modo a não permitir que juízo, desavisado, produza atos nulos, perpetuando o sofrimento das vítimas e familiares, pois serão, novamente e necessariamente ouvidas. Simples assim!
[1] ROSA, Alexandre Moraes da. Guia do Processo Penal Estratégico, de acordo com a teoria dos jogos, Ed. EMAIS, 2021, p. 261-264
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