Opinião

(In)constitucionalidade do §4° do art. 4° da Lei 13.988/20: limites à transação tributária

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23 de abril de 2025, 19h39

A transação tributária foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Medida Provisória nº 899/2019, posteriormente convertida na Lei nº 13.988/2020, com fundamento no artigo 171 do Código Tributário Nacional. Seu objetivo é viabilizar a celebração de acordos entre devedores e a Fazenda Pública para a resolução consensual de litígios fiscais, ajustando as condições do acordo à realidade econômica do contribuinte. A própria norma prevê a possibilidade de concessão de descontos e parcelamentos ampliados, condicionando tais benefícios à recuperabilidade do crédito e à capacidade contributiva do devedor (artigo 20 da Lei nº 13.988/2020).

Segundo o relatório Justiça em Números 2024, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, 31,4% dos processos pendentes no Poder Judiciário dizem respeito a execuções fiscais, o que evidencia a baixa efetividade arrecadatória do modelo tradicional e reforça a necessidade de soluções alternativas como a transação tributária.

Entretanto, o §4º do artigo 4º da Lei nº 13.988/2020 estabeleceu uma limitação relevante: veda, pelo prazo de dois anos, o acesso à nova transação ao contribuinte que tenha rescindido acordo anterior. Essa vedação automática ignora a análise individual da conduta do contribuinte, sua boa-fé e sua atual condição econômica, revelando-se incompatível com os princípios constitucionais que regem a matéria tributária. Neste artigo, examinam-se os vícios formais e materiais da referida norma.

Inconstitucionalidade do §4° do artigo 4° da Lei n° 13.988/2020

  • Violação à reserva de lei complementar

A aplicação do §4º do artigo 4º tem sido um obstáculo concreto para contribuintes que desejam regularizar seus débitos tributários. A única alternativa oferecida — o parcelamento tradicional — exige entrada mínima de 20% do valor consolidado e não prevê concessões quanto a juros ou encargos, o que inviabiliza sua adoção por empresas em crise. A transação, ao contrário, permite entrada reduzida, parcelamento ampliado (até 144 vezes) e descontos significativos, sendo muitas vezes o único instrumento viável de regularização fiscal. Até 2024, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional recuperou mais de R$ 61,3 bilhões por meio da transação tributária, o que confirma sua efetividade.

A vedação imposta pelo §4º, ao impedir a adesão à transação mesmo diante da demonstração de capacidade atual de pagamento, representa alteração no regime de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, matéria esta cuja normatização é reservada à lei complementar, conforme o artigo 146, III, ‘b’, da Constituição. A norma em questão foi veiculada por lei ordinária, o que viola expressamente esse dispositivo constitucional.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 917.285/SC (Tema 874), declarou inconstitucional a expressão “ou parcelados sem garantia” da Lei nº 9.430/96 justamente por tratar-se de matéria afeta à suspensão da exigibilidade do crédito tributário, sem respaldo em lei complementar. Reafirmou-se que “compete exclusivamente à lei complementar dispor sobre normas gerais em matéria de suspensão da exigibilidade do crédito tributário”. No mesmo julgado, o STF destacou que a extinção das obrigações tributárias está sob reserva de lei complementar, sendo formalmente inconstitucional qualquer inovação infraconstitucional nesse sentido.

Spacca

A inconstitucionalidade aqui debatida não é abstrata, mas decorre da aplicação concreta da norma que, de forma automática, impede o contribuinte de acessar uma via legítima de regularização, mesmo cumprindo os requisitos do edital vigente. Trata-se de controle difuso, plenamente admissível na via mandamental. O Superior Tribunal de Justiça, no AgInt no REsp 1.796.204/CE, firmou o entendimento de que “a alegação de inconstitucionalidade da norma que ampara os efeitos concretos resultantes do ato coator atacado pode ser suscitada como causa de pedir do mandado de segurança”, desde que não se trate de declaração abstrata de inconstitucionalidade.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), no julgamento do Agravo de Instrumento nº 0801350-37.2025.4.05.0000, também reconheceu que a aplicação irrestrita do §4º é incompatível com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, uma vez que delega a uma autoridade administrativa a restrição de direitos cuja regulação depende de lei complementar, além de esvaziar o propósito da política fiscal instituída.

  • Desproporcionalidade e sanção política

Sob o ponto de vista material, a vedação imposta pelo §4º mostra-se inconstitucional por violar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, isonomia, capacidade contributiva, função social da empresa e livre iniciativa. O mecanismo transforma um instrumento de justiça fiscal em penalidade automática e desproporcional, desconsiderando completamente as circunstâncias específicas do contribuinte, sua boa-fé e os esforços eventualmente realizados para manter o adimplemento.

A norma atua, na prática, como uma sanção política indireta, vedada pelo Supremo Tribunal Federal. As Súmulas 70, 323 e 547 consagram o entendimento de que é inconstitucional utilizar meios de coerção indireta, como interdição de estabelecimento, apreensão de mercadorias ou restrição ao exercício de atividade econômica, como forma de pressionar o adimplemento de obrigações tributárias. A vedação à nova transação opera efeito semelhante, uma vez que exclui, de maneira genérica e sem contraditório, o contribuinte da principal via de regularização fiscal disponível, impedindo-o de retomar sua atividade econômica regular.

Ainda que se argumente existir distinção técnica entre transação e parcelamento, é evidente que ambos os institutos têm, na prática, a mesma finalidade: promover a suspensão da exigibilidade do crédito tributário e sua posterior extinção. Leandro Paulsen aponta que “a transação tributária é um instrumento para a extinção do crédito tributário […]. Além disso, a transação é compatível com o parcelamento, permitindo que o devedor se comprometa a quitar o débito remanescente de forma parcelada”.

A exclusão automática compromete a arrecadação, fomenta a inadimplência e amplia a judicialização — resultados contrários à lógica da própria transação tributária. Não se trata de negar o dever de pagar tributo, mas de assegurar que a forma de cobrança esteja submetida aos limites constitucionais e aos princípios que norteiam a justiça fiscal.

Conclusão

Ao impor a vedação automática de dois anos à adesão à transação tributária, o §4º do artigo 4º da Lei nº 13.988/2020 é formalmente inconstitucional por dispor sobre matéria reservada à lei complementar, conforme o artigo 146, III, ‘b’, da Constituição e o entendimento consolidado no Tema 874 do STF. Simultaneamente, revela-se materialmente inconstitucional, por aplicar sanção política incompatível com o sistema constitucional tributário, violando os princípios da capacidade contributiva, da isonomia, da razoabilidade e da função social da empresa. Sua aplicação compromete a lógica da transação como instrumento de justiça fiscal, devendo ser afastada pelo Poder Judiciário sempre que o contribuinte demonstrar boa-fé e capacidade de pagamento.

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Referências

(Acessadas em 18/04/2025)

[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[2] BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm.

[3] BRASIL. Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a legislação tributária federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9430.htm.

[4] BRASIL. Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020. Dispõe sobre a transação nas hipóteses que especifica. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13988.htm.

[5] BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm.

[6] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2024. Brasília: CNJ, 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/03/relatorio-justica-em-numeros-2024.pdf.

[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). RE 917.285/SC, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 18/08/2020, DJe 06/10/2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=7531277.

[8] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

[9] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Súmulas 70, 323 e 547. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumula.asp.

[10] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). AgInt no REsp 1.796.204/CE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 21/05/2019. Disponível em: https://jurisprudencia.stj.jus.br/.

[11] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. AI nº 0801350-37.2025.4.05.0000. Disponível em: https://www.trf5.jus.br/.

[13] PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL (PGFN). Relatório de Resultados da Transação Tributária. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/transacao/relatorio-de-resultados.

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