Opinião

Banalização da curatela: entre proteção e silenciamento jurídico da pessoa com deficiência

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  • é advogado consultor jurídico professor universitário doutorando e mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) e especialista em Direito Civil e Processo Civil com atuação destacada em Direito de Família Sucessões e Responsabilidade Civil.

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22 de abril de 2025, 20h43

A curatela deveria ser a exceção. No entanto, tornou-se rotina. Com a justificativa de proteger, o Judiciário tem silenciado vozes, interditado existências e substituído vontades. O que era para ser mecanismo subsidiário de apoio à autonomia transformou-se, na prática, em sentença de invisibilização.

Ana Araújo/Ag. CNJ.
Cadeira de rodas em corredor branco, semelhante ao de um hospital

O paradoxo é evidente: quanto mais a legislação evolui em favor da inclusão, mais persistem decisões judiciais que repetem o paradigma da interdição total, herdado do século 19. Em vez de acolher a autonomia da pessoa com deficiência (PcD), o sistema ainda insiste em substituí-la — e o faz em nome da proteção.

Entre o texto da lei e a prática forense

A entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) deveria ter representado uma virada de chave no Direito Civil brasileiro. O artigo 6º da norma afirma expressamente que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer direitos sexuais, reprodutivos, de decidir sobre casamento, maternidade, adoção, entre outros.

A curatela, segundo o novo artigo 1.767 do Código Civil, alterado pela mesma lei, deve ser aplicada de forma proporcional e por prazo determinado, limitada aos atos de natureza patrimonial e negocial. A regra passou a ser o respeito à capacidade legal plena, com curatela como medida excepcional e suplementar.

Na prática, contudo, a aplicação da curatela tem ignorado esse novo marco. Em milhares de decisões, pessoas com deficiência continuam sendo interditadas integralmente, sem a observância da individualidade do caso, sem plano de apoio e, frequentemente, sem sequer serem ouvidas.

Violação silenciosa da autonomia

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional (Decreto nº 6.949/2009), estabelece, em seu artigo 12, o reconhecimento da pessoa com deficiência como sujeito de direitos em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive no exercício da capacidade legal.

A Observação Geral nº 1, publicada em 2014 pelo Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, reforça que os Estados não podem substituir a vontade da pessoa com deficiência sob nenhuma forma de regime de substituição, inclusive curatela, e devem fornecer apoio para o exercício de sua autonomia.

A prática forense brasileira, no entanto, contraria esse modelo. Como observa Ana Paula de Barcellos (2018, p. 91), “a retórica da proteção frequentemente é usada para justificar o cerceamento de direitos fundamentais, inclusive o direito de decidir sobre a própria vida”.

 STF e (re)afirmação do modelo inclusivo

Em julgamento paradigmático, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 5.357, declarou a constitucionalidade da Lei Brasileira de Inclusão, afastando o argumento de que ela teria extrapolado os limites da Convenção. Na ocasião, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou:

“A deficiência deixou de ser compreendida como incapacidade, passando a ser concebida como uma condição que pode demandar o fornecimento de apoios para o exercício da autonomia, e não sua substituição” (STF, ADI 5.357, j. 8/3/2021).

Apesar disso, a jurisprudência cotidiana das varas cíveis continua privilegiando a curatela integral. Há, evidentemente, decisões sensíveis e exemplares. No REsp 1.798.116/MG, o STJ reconheceu a possibilidade de interdição parcial e temporária, reiterando que a medida deve respeitar a autonomia do interditando e ser compatível com suas reais limitações.

Mas são decisões ainda minoritárias.

Persistência da curatela universal: velho novo normal

A figura do “curador universal”, responsável por todos os atos civis da vida da pessoa com deficiência, ainda impera. Muitos juízes, diante da complexidade do caso ou da ausência de estrutura para aplicar medidas proporcionais, preferem decretar a interdição total — mesmo que isso implique violação da dignidade humana e do direito à autodeterminação.

Como afirma Flávia Piovesan (2020, p. 145), “o que se observa é um déficit institucional de sensibilidade e de compromisso com o modelo de direitos humanos, resultando na adoção de medidas incompatíveis com a centralidade da autonomia individual”.

Essa realidade revela que não basta mudar o texto da lei. É preciso mudar a cultura jurídica.

Urgência da escuta e da individualização

A escuta da pessoa com deficiência não pode ser formal. Precisa ser significativa. O processo judicial deve se construir com a pessoa e não sobre ela. A curatela precisa ser discutida de forma contextualizada, com base em provas atualizadas, com oitiva obrigatória, e respeitando o direito à assistência jurídica especializada.

Como preconiza o artigo 84, §3º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a pessoa deve ser consultada, ouvida e participar de todas as decisões que afetem sua vida. Sem isso, o processo de curatela se torna ato de silenciamento institucionalizado.

 Direito ainda fala em nome de quem deveria escutar

Enquanto não houver compromisso com o modelo de decisão apoiada, a curatela continuará sendo usada como atalho jurídico para resolver questões que, em verdade, exigem tempo, sensibilidade e estrutura pública. O sistema jurídico tem preferido decidir em nome de pessoas com deficiência, quando deveria, por imposição constitucional, aprender a decidir com elas.

A curatela não pode mais ser o destino automático da deficiência. A proteção não pode significar exclusão. A justiça, para ser justa, precisa reconhecer que autonomia, quando apoiada, é sempre possível — e que a dignidade não admite tutela perpétua.

 


Referências

BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

______. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6949.htm. Acesso em: jan. 2025.

______. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: jan. 2025.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

STF. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5357. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Tribunal Pleno, julgado em 08 mar. 2021. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=7535649. Acesso em: jan. 2025.

STJ. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.798.116 – MG (2019/0014862-5). Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. 3ª Turma. Julgado em 12 nov. 2019. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Recurso-especial-permite-interdicao-parcial-e-temporaria.aspx. Acesso em: jan. 2025.

UNITED NATIONS. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. General Comment No. 1 (2014): Article 12: Equal recognition before the law. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/031/20/PDF/G1403120.pdf. Acesso em: jan. 2025.

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  • é advogado, consultor jurídico, professor universitário, doutorando e mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) e especialista em Direito Civil e Processo Civil, com atuação destacada em Direito de Família, Sucessões e Responsabilidade Civil.

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