O reconhecimento de pessoas a partir de estudos empíricos
19 de abril de 2025, 8h00
Abordaremos, em dois artigos, a complexa intersecção entre o procedimento de reconhecimento de pessoas pelo aspecto da psicologia e o Direito Processual Penal brasileiro. Nesta semana discutiremos alguns fenômenos psicológicos que podem impactar no reconhecimento e, no segundo artigo, apresentaremos uma reflexão a partir de estudos empíricos.
O reconhecimento de pessoas, no contexto do processo penal brasileiro, configura-se como uma modalidade de produção de prova alicerçada na memória de testemunhas ou vítimas que presenciaram eventos criminosos. Seu objetivo principal é o de identificar os indivíduos supostamente envolvidos na conduta criminosa. Por mais que esteja previsto no CPP, a eficácia desse método repousa na confiabilidade da memória humana, suscetível a influências cognitivas, emocionais e contextuais (tema já abordado anteriormente nesta coluna: aqui e aqui). Nesse ponto, a psicologia do testemunho assume papel preponderante, ao investigar esses aspectos e contribuir para a aplicação precisa e justa do procedimento de reconhecimento no sistema de justiça criminal.
A relevância do reconhecimento como prova é inegável, mas a jurisprudência e a literatura especializada evidenciam a ocorrência de erros judiciais decorrentes de reconhecimentos falhos, realizados sem observância de parâmetros técnicos e garantias mínimas de confiabilidade. Desta forma, a prova obtida por meio do reconhecimento não deve ser analisada isoladamente, mas sim em conjunto com outros elementos probatórios.
Ainda que o procedimento de reconhecimento seja conduzido em estrita conformidade com os preceitos da psicologia do testemunho, é imperativo reconhecer a falibilidade da memória humana[1]. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ciente dessa realidade, lançou em outubro de 2024 um manual de aplicação da Resolução CNJ nº 484/2022, que visa mitigar erros judiciários no reconhecimento de pessoas.
A psicologia do testemunho oferece ferramentas valiosas para otimizar a acurácia do reconhecimento, como instruções claras e objetivas, apresentação sequencial de suspeitos, coleta de declarações livres e registro audiovisual do procedimento. A condução do reconhecimento em diferentes fases (preparação, orientação e exposição ao suspeito e fillers) também é essencial para evitar interferências externas. Essas técnicas visam mitigar os riscos de erros de identificação, buscando provas de reconhecimento mais confiáveis, dentro dos limites da falibilidade da memória humana.
O Direito e a memória
Considerando a natureza da memória, o relato de um evento é intrinsecamente subjetivo, refletindo a percepção individual do declarante. Essa subjetividade torna a prova testemunhal vulnerável a distorções e imprecisões, uma vez que a descrição nem sempre espelha a realidade dos fatos. Diante disso, a prova testemunhal demanda análise cautelosa, considerando suas limitações, e a busca por outras formas de prova que corroborem ou refutem os depoimentos.

Ao presenciar um crime, a testemunha armazena as recordações do evento e a imagem do perpetrador em sua memória, independentemente da forma como os vivenciou. Contudo, o processo de armazenamento e evocação da memória é suscetível a falhas, como o esquecimento de detalhes e a modificação das recordações ao longo do tempo[2]. A memória humana, diferentemente de um registro audiovisual, não retém todos os detalhes visuais com precisão. Os falsos reconhecimentos durante a identificação de suspeitos são frequentes, decorrentes das limitações da memória humana, sendo que o esquecimento de detalhes pode levar a reconhecimentos baseados em suposições errôneas[3].
A interpretação tradicional do artigo 226 do CPP, que o relegava a uma mera recomendação, tem sido objeto de crescente questionamento à luz dos avanços da psicologia do testemunho. A jurisprudência, outrora permissiva com o descumprimento das formalidades legais, começou a demonstrar maior rigor na análise da prova de reconhecimento, como evidenciado pela decisão paradigmática da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no RHC 598.886/SC de relatoria do Min. Rogério Schietti.
Para além de dados internacionais, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro[4] constatou uma realidade preocupante. Entre 2012 e 2020, foram analisados 58 casos em que indivíduos que foram acusados injustamente no estado, sendo que, em 50 desses (86,2%), a prisão preventiva foi decretada com base exclusiva em reconhecimento fotográfico.
As alterações da memória
A memória humana, sujeita a manipulação, revela-se vulnerável a distorções por sugestões, como perguntas tendenciosas, interações entre testemunhas e exposição à mídia. Essa suscetibilidade resulta na incorporação de detalhes incorretos ou na alteração das recordações originais. Pesquisas na Psicologia do Testemunho[5] demonstram que instruções tendenciosas, ao direcionarem ou incentivarem a identificação, aumentam a probabilidade de seleção de um suspeito, independentemente da precisão da escolha.
A mesma pesquisadora investigou o fenômeno a partir das perguntas realizadas pelo entrevistador.[6] Os participantes assistiram a vídeos de acidentes de carro e, posteriormente, responderam a questionários com perguntas que variavam na forma como eram apresentadas. Os resultados indicaram que as palavras usadas nas perguntas influenciaram a percepção dos participantes sobre a velocidade dos veículos envolvidos nos acidentes, demonstrando o efeito da sugestão na formação de memórias. Essa suscetibilidade da memória a distorções por informações falsas, que podem ser internalizadas e evocadas como memórias reais, tem implicações significativas para a prova testemunhal.
Em 1999, Elizabeth Loftus conduziu um experimento chamado “Lost in a Shopping Mall”.[7] Nesse estudo, 24 indivíduos foram questionados se já haviam se perdido em um shopping quando crianças, um evento que nunca ocorreu. Através da manipulação das perguntas e informações fornecidas aos participantes, 29% deles acabaram lembrando total ou parcialmente do evento falso. Esse experimento demonstra claramente a possibilidade de implantação de falsas memórias por meio de sugestão, levando as pessoas a acreditarem em eventos que nunca ocorreram.
Por sua vez, a mídia e a cobertura jornalística de eventos criminais podem exercer um impacto significativo na memória das testemunhas, em razão da exposição de informações, muitas vezes imprecisas, o que pode acabar formando falsas memórias quanto ao relato de testemunhas.[8]
Cross-Race Effect
A análise dos dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro[9] revela um dado alarmante: em 80% dos processos com informações sobre raça/cor, os acusados eram negros. Esse dado lança luz sobre o fenômeno psicológico conhecido como efeito Cross-Race (raça cruzada), um viés cognitivo que impacta a precisão do reconhecimento facial.
O efeito Cross-Race, inicialmente descrito por Malpass e Kravitz[10], refere-se à tendência de indivíduos reconhecerem com maior precisão faces de sua própria raça em comparação com faces de outras raças. Essa disparidade não se resume a uma mera dificuldade de identificação, mas reflete um viés cognitivo que pode levar a erros judiciais graves, especialmente quando testemunhas não estão familiarizadas com a etnia do suspeito.
Já uma pesquisa de 2012 demonstrou que o efeito Cross-Race decorre de diferenças na capacidade de processar características faciais de outras raças[11]. Essa dificuldade pode ser explicada por duas teorias complementares: a teoria da percepção, que postula que a menor familiaridade com características faciais de outras raças dificulta a identificação e diferenciação; e a teoria da motivação, que sugere uma tendência inconsciente de prestar mais atenção a membros da própria raça, reforçando o reconhecimento intragrupo. A compreensão multifacetada do efeito Cross-Race, que engloba fatores perceptivos, motivacionais e sociais, exige estratégias de mitigação igualmente complexas. Os pesquisadores propõem o treinamento perceptual, que envolve a exposição contínua a faces de outras raças, como uma abordagem promissora. Além disso, a redução dos preconceitos raciais na sociedade, por meio de iniciativas educacionais e de conscientização, é fundamental para criar um ambiente mais justo e equitativo.
No contexto do sistema de justiça criminal, a implementação de protocolos de reconhecimento que levem em consideração o efeito Cross-Race é crucial. A utilização de técnicas de entrevista forense que minimizem a influência de estereótipos raciais e a valorização de provas objetivas, como exames de DNA, são medidas essenciais para garantir a justiça e a equidade no sistema de justiça criminal.
Após serem expostas algumas das principais fragilidades da memória e os vieses que afetam o reconhecimento, na segunda e última parte deste artigo abordaremos as propostas de padronização (em especial com a Resolução do CNJ nó. 484/2022) e a necessidade de instruções imparciais, detalhando um estudo empírico sobre o impacto dessas práticas, analisando esses achados, suas implicações e os caminhos para um procedimento de reconhecimento mais justo.
A credibilidade do reconhecimento é crucial para fundamentar condenações ou excluir suspeitas. A principal característica de um reconhecimento justo é garantir que o procedimento resulte em uma evidência confiável, que seja capaz de, não isoladamente, fundamentar uma condenação criminal ou, alternativamente, excluir a suspeita sobre um inocente.
[1] STEIN, L. M. (2010). Falsas memórias fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Artmed.
[2] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; JAEGER, Antonio. Memória e Conformidade: a confiabilidade da prova testemunhal e o transcurso de tempo. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 171. 2020.
[3] STEIN, L. M., & CECCONELLO, W. W. (2020). Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances En Psicología Latinoamericana, 38(1).
[4] https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf.
[5] Como as de Brewer e Clark: “BREWER, N., & WELLS, G. L. (2009). Obtaining and Interpreting Eyewitness Identification Test Evidence: The Influence of Police-Witness Interactions. In Handbook of Psychology of Investigative Interviewing (pp. 205–220). Wiley-Blackwell.” e “CLARK, S. E. (2005). A Re-examination of the Effects of Biased Lineup Instructions in Eyewitness Identification. Law and Human Behavior, 29(4), 395–424.”.
[6] LOFTUS, E. F., & PALMER, J. C. (1974). Reconstruction of automobile destruction: An example of the interaction between language and memory. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, 13(5).
[7] LOFTUS, E. F. (1999). Lost in the mall: Misrepresentations and misunderstandings. Ethics & Behavior, 9(1), 51-60.
[8] LOFTUS, Elizabeth; DAVIS, Deborah. Internal and External Sources of Misinformation in Adult Witness Memory. In: TOGLIA, M. P. et al (Eds.) Handbook of eyewitness psychology (vol. I): Memory for events. Mahwah (Nova Jérsei): Erlbaum, 2007, p. 208.
[9] https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf.
[10] MALPASS, R. S. & KRAVITZ, J. (1969). Recognition for faces of own and other race. Journal of personality and social psychology, volume 13, number 4, 330-334.
[11] YOUNG, S. G., HUGENBERG, K., BERNSTEIN, M. J., & SACCO, D. F. (2012). Perception and Motivation in Face Recognition: A Critical Review of Theories of the Cross-Race Effect. Personality and Social Psychology Review, 16(2), 116–142.
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