Direito, religião e fraternidade: semelhanças e dissonâncias
19 de abril de 2025, 16h16
A relação entre Direito e religião é, ao mesmo tempo, simbiótica e dissonante. Embora em diferentes planos — um normativo e outro espiritual — ambos compartilham fundamentos comuns, como a reverência a textos canônicos, a busca pela justiça e a construção de hierarquias normativas. Por outro lado, divergem em aspectos estruturantes: enquanto o Direito busca objetividade e racionalidade formal, a religião se ancora na fé e na transcendência.
Neste artigo, busca-se explorar as semelhanças e dissonâncias entre Direito e religião sob a perspectiva conceitual e histórica. Em especial, o conceito da fraternidade à luz do cristianismo, que possui o caráter polissêmico, remetendo inicialmente a laços de consanguinidade, que, posteriormente, se amplia para a ideia de fraternidade universal, evidenciando laços humanos e sociais.
Direito e religião: interseções e contrastes
Tanto o Direito quanto a religião são edificados a partir de textos normativos fundacionais — sejam eles a Constituição ou a Bíblia. Compartilham estruturas hermenêuticas, regras de interpretação e lógica interna. A Constituição brasileira, por exemplo, irradia seus princípios a partir de um texto unificado, tal como a Bíblia o faz em sua autoridade simbólica e teológica
Ambos também se organizam em sistemas hierárquicos: o Direito em suas cortes e instâncias recursais e a religião com seus sacerdócios e lideranças espirituais. A codificação do Direito Canônico é, inclusive, paradigmática na influência sobre o Direito de tradição civil law.
A busca por justiça — seja como valor terreno ou transcendental — é outra ponte entre esses dois campos. O Antigo Testamento sustenta a justiça retributiva e o novo testamento, a justiça misericordiosa. No Direito, tais tensões se refletem em debates entre legalismo e princípios como o da dignidade da pessoa humana.
Dissonâncias entre a fé e a legalidade
Apesar das interseções, Direito e religião se afastam nos fundamentos. O Estado brasileiro é laico e busca racionalidade pública, já a religião opera na fé e no sobrenatural. O primeiro se ancora no pacto social e na codificação da convivência, enquanto o segundo transcende o contrato, propondo dogmas e revelações.
O Direito se estrutura na objetividade da norma escrita [1] e a religião, na subjetividade da experiência espiritual e ainda pelo conjunto de escritos de abrangente influência em toda a literatura ocidental [2]. Isso se reflete na diferença entre o princípio da legalidade e o princípio da fé.
Fraternidade e o Estado democrático de Direito
Na crise contemporânea da democracia, a fraternidade emerge como categoria jurídica. Emerge com vigor a dimensão sociopolítica da fraternidade cristã, conforme delineada por Paulo na Carta aos Gálatas: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).

Marcela Bocayuva, advogada
Essa passagem reforça o imperativo ético e a exortação não apenas sugere um gesto de compaixão, mas afirma um princípio estrutural da fraternidade cristã — a corresponsabilidade entre os membros da comunidade.
Ao assumir o amor ao inimigo como mandamento, Jesus subverte a lógica da retaliação e propõe uma nova gramática para as relações humanas — fundada na reconciliação e na dignidade do outro.
Nesse horizonte, o amor cristão se revela como ágape: um amor incondicional, que parte de Deus para os homens e se manifesta entre irmãos. A fraternidade, nesse sentido, é a expressão concreta e recíproca desse ágape no mundo, convertendo-se em fundamento ético das relações sociais e em vetor de justiça nas estruturas políticas e jurídicas.
O conceito de fraternidade, portanto, é um conceito metafórico que vincula o âmbito da família com o âmbito da política [3]. A fraternidade apresenta três facetas: como princípio, como ideal e como virtude pública.
Esses conceitos revelam como a fraternidade transcende o campo da moral e ingressa no domínio do Direito como vetor de interpretação [4] constitucional e concretização de políticas públicas.
Conclusão
Direito e religião dialogam mais do que se imagina. Ambos compartilham estruturas normativas, princípios e vocações de ordenação social. A fraternidade, herança do pensamento cristão e da Revolução Francesa, é a ponte ética e normativa que os conecta em tempos de crise.
Enquanto a laicidade separa o Estado da Igreja, a fraternidade pode uni-los no compromisso comum com a dignidade humana. Ela revela que, mais do que um princípio residual é um fundamento indispensável para o exercício pleno da liberdade e da igualdade — e, por isso, merece resgate e efetivação no constitucionalismo do século 21.
[1] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
[2] Cf. FRYE, Northrop. O Código dos Códigos: a Bíblia e a Literatura. Tradução: Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2014 .
[3] MORAES, Maria Cecilia Bodin. O princípio da solidariedade. In: Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes: direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
[4] MORIN, Edgar. O método 6: ética. Trad. Juremir Machado Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
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