Opinião

Súmula 7 e voto vencido: possibilidades no STJ

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  • é advogado em Brasília especializado em tribunais superiores mestrando em Direito Constitucional pelo IDP LLM em Processo e Recursos nos Tribunais Superiores pelo IDP coordenador de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Recursos e Processos nos Tribunais Superiores (IRTS). Cursou Advanced Standard Level Course: Law Varndean College (Reino Unido).

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15 de abril de 2025, 16h23

O voto vencido pode estar relacionado com a matéria fática e probatória a ser analisada pelo Superior Tribunal de Justiça no recurso especial. No entanto, a doutrina é tímida: aborda o voto vencido apenas sob o viés do prequestionamento, sem considerar a relevância dele para efeitos de Súmula 7 do STJ. O presente artigo objetiva, assim, explorar o potencial pleno do voto vencido.

No Código de Processo Civil (CPC) de 1973, o voto vencido não integrava o acórdão. Isso mudou com o artigo 941, § 3º, do CPC de 2015, que estabeleceu que “O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento” (grifo do articulista).

A expressão “para todos os fins legais” mostra a profundidade irrestrita da norma. Da perspectiva recursal, o voto vencido passou a irradiar os mesmos efeitos legais do voto vencedor. Portanto, manusear o voto vencido só para fins de prequestionamento é subutilizá-lo, é retirar o seu pleno potencial. A boa técnica recursal permite muito mais: a requalificação jurídica dos fatos descritos no voto vencido.

Voto vencido e requalificação jurídica dos fatos

A Súmula 7 proíbe que o STJ folheie os autos para verificar se os fatos descritos no acórdão condizem com a prova produzida. Se o acórdão diz que o céu é verde, o recorrente não pode remeter o STJ a um vídeo nos autos que comprovaria que o céu é, na realidade, azul.

Contudo, nada impede que o STJ requalifique juridicamente fatos expressamente delineados no acórdão recorrido. Por exemplo, o STJ, partindo da premissa de que o céu é verde, pode decidir que a ele não se aplica a lei x; mas, a y. Nesse caso esdrúxulo e hipotético, talvez randômico, o STJ trata os fatos do acórdão recorrido como estáticos, limitando-se a lhes conferir novo enquadramento jurídico. Não há, assim, óbice na Súmula 7.

Essa técnica também é chamada de revaloração jurídica. Segundo o STJ, “o entendimento consolidado na Súmula 7 do STJ não impede a revaloração jurídica dos fatos delineados no acórdão recorrido” [1] (destacou-se).

Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero salientam que “as questões impugnadas mediante recurso extraordinário ou recurso especial devem ser julgadas à luz da verdade ou falsidade [dos fatos] estabelecida pela decisão recorrida” [2]. Aí que entra a importância do voto vencido.

Se é possível revalorar fatos descritos no acórdão recorrido e o acórdão recorrido é composto, em caso de votação não unânime, pelos votos vencedor e vencido, as descrições de fato pintadas no voto vencido também podem ser analisadas no julgamento do recurso especial — tal qual como ocorre com o voto vencedor.

O voto vencido é o replay do lance por outra câmera. Ele é capaz de ampliar a visão do telespectador, revelando algum fato significativo oculto no voto que venceu, alguma nuança fática que muda tudo.

Decisões do STJ que afastaram a Súmula 7 mediante a matéria fática descrita no voto vencido

No EREsp nº 1.837.435/SP [3], a 2ª Seção do STJ esclareceu que não incide a Súmula 7 quando as circunstâncias fático–probatórias do voto vencido são adotadas no julgamento do recurso especial — mesmo que em linha divergente das do voto vencedor:

“(…) 2. A par dessa premissa legalmente estabelecida — de que o voto vencido integra o acórdão para todos os fins legais —, não há que se falar em incidência da Súmula 7 do STJ, quando este Tribunal Superior, em sede de recurso especial, adotar como razões de decidir o juízo de valor constante do voto vencido acerca das circunstâncias fático-probatórias da causa, em ponderação com a linha de fundamentação divergente aposta no voto vencedor, pois tal medida caracteriza mera revaloração jurídica do quadro fático-probatório devidamente exarado no acórdão recorrido.” (grifos do articulista)

Inclusive, no inteiro teor desse acórdão, o ministro relator Marco Aurélio Bellizze foi cirúrgico ao articular que é “descabida a interpretação (…) de que o voto vencido integra o acórdão apenas para prequestionamento”, porque o conteúdo normativo do artigo 941, § 3º, do CPC “não é restritivo ou excludente” [4]. O ministro concluiu que essa norma “possui abrangência ampla, conferindo ao voto vencido todos os efeitos legais ínsitos ao voto vencedor integrante do acórdão, incluindo não apenas, mas também, o efeito de prequestionamento” [5].

Por isso que, dentro da boa técnica recursal, utilizar o voto vencido apenas para prequestionamento é subutilizá-lo.

No AgInt no AgInt no AREsp nº 1.501.406/SC [6], o STJ destacou a relevância dos fatos descritos no voto vencido do acórdão recorrido para o julgamento do recurso especial — a afastar a Súmula 7 no caso concreto:

“(…) III – Esse é precisamente o caso dos autos, pois o acórdão recorrido, notadamente por seus votos vencidos, relata fatos e circunstâncias, descrevendo os indícios da conduta ímproba. Desse modo, é perfeitamente possível que o Superior Tribunal de Justiça exerça a sua função interpretativa e uniformizadora sem recorrer ao exame das provas. IV – Recorde-se que, à luz do disposto no art. 941, § 3º, do CPC/2015, ‘o voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento’. Ou seja, as descrições de fato expostas, no voto vencedor ou vencido, podem ser tomadas em conta para o julgamento do recurso especial; o enfrentamento da questão federal sob a perspectiva do voto-vencido prequestiona a matéria e viabiliza sua análise nas instâncias especiais (…).” (grifos do articulista)

Spacca

Nesse caso, o voto vencedor do acórdão recorrido havia estabelecido que a petição inicial deveria ser rejeitada de plano porque inexistiam indícios mínimos de improbidade administrativa. Porém, o voto vencido descreveu uma série de elementos fáticos que, na visão dele, configurariam o ilícito.

O STJ, então, requalificou juridicamente essas premissas fáticas fornecidas pelo voto vencido do acórdão recorrido para determinar o prosseguimento da ação de improbidade administrativa. Segundo o ministro relator Francisco Falcão, o voto vencido “dá conta de que existem indícios bastantes da prática de ato de improbidade, ao menos com a densidade suficiente para o recebimento da petição inicial” [7].

Já no AgInt no REsp nº 1.837.435/SP [8] (do qual o EREsp supramencionado é oriundo), o ministro Salomão destacou “a desnecessidade de reexame do contexto fático–probatório dos autos, ante a completa descrição da moldura fática da demanda pelo Juízo de piso e pelo voto vencido”.

Advertiu, ainda, que havia o dever de revalorar juridicamente os fatos sob a perspectiva do voto vencido porque a “interpretação da matéria fático-probatória contida no voto vencedor — realizada de forma literal e, portanto, mais frágil — foi diametralmente oposta àquela (…) constante do voto vencido” [9].

Nesse acórdão do STJ, consta que “a revaloração dos fatos [sob a perspectiva do voto vencido] é medida não apenas possível em sede de recurso especial mas também imperiosa”, sob pena de “se atribuir ao voto vencedor um aberrante absolutismo jurídico [em relação ao vencido] dissonante do que preceitua a legislação processual [art. 941, § 3º, do CPC]” [10].

Na área penal, o artigo 941, § 3º, do CPC também se apresenta pertinente ante a aplicação subsidiária e analógica admitida pelo artigo 3º do Código de Processo Penal (CPP).

Por exemplo, no AgRg nos EDcl no REsp nº 1.834.872/RS [11], o ministro Ribeiro Dantas afastou a incidência da Súmula 7 mediante as premissas fáticas delineadas no voto vencido e na sentença. Manteve, dessa forma, sua decisão monocrática anterior que havia dado provimento ao recurso especial.

Com efeito, do ponto de vista do STJ, é possível revalorar os fatos delineados no voto vencido do acórdão recorrido sem obstáculo na Súmula 7.

Além dos julgados já citados, há farta jurisprudência nesse sentido: (1) REsp nº 2.077.205/GO, (2) AgRg no AREsp nº 1.707.852/DF, (3) REsp nº 2.044.569 (no inteiro teor), (4) REsp nº 2.122.314/SP (inteiro teor) e (5) AgRg no AREsp nº 1.707.852/DF.

Em outros casos, o STJ é mais sutil: não diz expressamente que afastou a Súmula 7 com arrimo no voto vencido; mas, na prática, fê-lo.

Por exemplo, no REsp 1.969.648/DF, o ministro relator Moura Ribeiro se valeu de premissas fáticas que constavam apenas do voto vencido para aplicar o direito à espécie. Aliás, deu provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença com os acréscimos do voto vencido.

Em relação ao citado caso, uma leitura atenta do voto do acórdão em recurso especial revela que o ministro se utilizou da técnica trazida à superfície neste artigo. Embora o acórdão seja sutil, o diálogo dos ministros da 3ª Turma durante a sessão de julgamento foi explícito.

Conforme vídeo da Sessão da 3ª Turma de 18/10/2022 (manhã), disponível no canal oficial do STJ no YouTube [12] (em 1h02min5s), o ministro Marco Aurélio Bellizze diz que “aquele voto vencido, que também integra o acórdão para efeitos de debate… de acesso desta corte superior aos fatos, dão margem totalmente à conclusão do eminente relator”. Em 1h02min50s, o ministro Marco Aurélio Bellizze complementa que “isso consta do acervo probatório, passível de exame e tá no voto vencido” [13].

O ministro Villas Bôas Cueva vai na mesma linha e afirma que há “um conjunto de circunstâncias que tornam a análise muito robusta e que absolutamente não esbarram no óbice da Súmula 7” [14] (1h04min49s do vídeo).

Transparece claro, pois, que, no REsp 1.969.648/DF, o STJ afastou a incidência da Súmula 7 em razão das premissas fáticas descritas no voto vencido.

STJ reconhece que o voto vencido preenche lacunas do voto vencedor

O STJ já reconheceu que o voto vencido supre eventuais omissões do voto vencedor.

No REsp nº 2.092.851/RJ[15], a ministra Nancy Andrighi cravou que:

“(…) 3- Se o voto vencedor, conquanto de modo sucinto e genérico, manifesta a sua convicção a respeito da questão controvertida, não se pode qualificar a decisão como omissa, especialmente quando eventual insuficiência de fundamentação do voto vencedor tenha sido sanada com elementos constantes no voto vencido, que, na forma do art. 941, § 3º, do CPC/15, incorpora-se ao acórdão recorrido para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento. (…)” (grifos do articulista)

Em igual sentido se manifestou a Corte Especial do STJ EDcl no REsp nº 1.340.444/RS [16] ao esclarecer que:

“(…) 10. Como todos os votos do colegiado, vencidos e vencedores, compõem o acórdão para todos os fins legais (art. 941, § 3°, do CPC/2015), certo afirmar que inexiste a propalada omissão (como reconhecido pelo próprio embargante), afastando-se a necessidade de que TODOS os Ministros enfrentem expressamente os mesmos argumentos e tomem suas decisões com base em iguais fundamentos. Afinal, nosso modelo de julgamento colegiado nos Tribunais é plural (serial), em que são agregados os votos dos componentes do órgão colegiado, na sua expressão individual, vindo ao final a conclusão de cada um, computada aritmeticamente (ainda que por fundamentos diversos), compor o acórdão. (…)” (grifos do articulista)

Esse entendimento tem sinergia com a tese aqui defendida. Ora, se o voto vencido é capaz de suprir omissões do voto vencedor, tal raciocínio também vale para o quadro fático–probatório descrito na origem.

Nessa toada, caso o voto vencido ilumine fatos ignorados pelo voto vencedor, a omissão sobre eles está sanada — e, nessa medida, o STJ pode revalorar esses fatos juridicamente.

Conclusão

Apesar da timidez da doutrina, é certo que a descrição fática do voto vencido é extremamente relevante para o julgamento do recurso especial, sendo capaz, inclusive, de repelir o óbice na Súmula 7. Ademais, o voto vencido deve ter especial prestígio quando apresentar algum fato determinante negligenciado pelo voto vencedor do acórdão recorrido.

Todo esse contexto tem amparo na jurisprudência do STJ e na melhor interpretação do artigo 941, § 3º, do CPC.

Não se trata de reexame de fatos e de provas. Jamais. Trata-se, sim, de reenquadramento de premissas fáticas fornecidas pelo próprio acórdão recorrido — o qual é incorporado tanto pelo voto vencedor quanto pelo vencido (artigo 941, § 3º, do CPC).

Com as lacunas do voto vencedor preenchidas pelo voto vencido, o contexto fático-probatório do acórdão recorrido fica completo; assim, o STJ pode verificar com maior precisão eventuais violações a lei federal, aplicando o direito à espécie sem se socorrer ao reexame de fatos e de provas.

O voto vencido é, portanto, poderoso instrumento que pode auxiliar o STJ a dar unicidade ao direito federal infraconstitucional.

O raciocínio desenvolvido neste artigo também se aplica, mutatis mutandis, ao recurso extraordinário dirigido ao Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à Súmula 279.

É no detalhe do voto vencido que muitas vezes repousa a alma do processo.

 


[1] AgInt nos EDcl no REsp n. 2.106.084/MG, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 2/9/2024, DJe de 6/9/2024.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Recurso Extraordinário e Recurso Especial, do Jus Litigatoris ao Jus Constitutionis. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pág. 189.

[3] AgInt nos EREsp n. 1.837.435/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 18/4/2024, DJe de 25/4/2024.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] AgInt no AgInt no AREsp n. 1.501.406/SC, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 21/9/2020, DJe de 24/9/2020.

[7] Ibidem.

[8] AgInt no REsp n. 1.837.435/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 7/6/2022.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] AgRg nos EDcl no REsp n. 1.834.872/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 5/12/2019, DJe de 16/12/2019.

[12] https://www.youtube.com/watch?v=WrSX8n8VGho&list=PL4p452_ygmscySkaCAwNS6XYJ6HJ0l1AC&index=562

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] REsp n. 2.092.851/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023.

[16] EDcl no REsp n. 1.340.444/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, julgado em 16/6/2021, DJe de 3/8/2021.

Autores

  • é advogado em Brasília especializado em tribunais superiores, mestrando em Direito Constitucional pelo IDP, LLM em Processo e Recursos nos Tribunais Superiores pelo IDP, coordenador de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Recursos e Processos nos Tribunais Superiores (IRTS). Cursou Advanced Standard Level Course: Law Varndean College (Reino Unido).

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