Nicômaco, pau que dá em Chico, chocolate e Súmula 7 do STJ
15 de abril de 2025, 13h19
Aristóteles dedicou o livro V do Ética a Nicômaco para examinar conceitos de justiça, equidade e igualdade. Ele dizia que o justo era o meio termo entre dois extremos, a moderação entre duas coisas ou pessoas. Haverá igualdade entre duas pessoas se elas forem iguais e receberem coisas iguais. Mas não haverá igualdade se elas forem desiguais e receberem coisas iguais. Esse princípio básico de racionalidade prática pode ser ilustrado na expressão popular “pau que dá em Chico, dá em Francisco”. Chico é pessoa humilde. Francisco, alguém com posição social de destaque. Perante o Estado, ambos são iguais; ambos apanham com o mesmo pau. Experimente colocar seus dois filhos à mesa, servindo tomate para um e chocolate para outro, para entender rapidamente o significado da lição.
Nosso último artigo [1] aqui na ConJur abordou um aspecto da busca por tratamento isonômico no que diz respeito ao direito à prova. Todos os elementos coletados durante a investigação criminal devem ser disponibilizados a todos os investigados, denunciados e réus em igualdade de condições. São todos Chicos; ou Franciscos.
Agora, iremos bisbilhotar o tratamento dado a Chicos e Franciscos que atuam na jurisdição criminal quando o assunto é admissibilidade de recursos especial e extraordinário nos tribunais de apelação e no STJ/STF.
Certa feita, numa aula de prática de processo penal na PUC-RS, surgiu o debate acerca do tratamento diferenciado que vinha sendo dado ao exame de admissibilidade daqueles recursos, dependendo de quando interpostos por Ministério Público ou pela defesa. Uma aluna, confrontada com alguns dados, disse que o resultado era justificável porque os recursos do parquet eram de melhor qualidade que os da defesa. Chico e Francisco não eram iguais, pois este trabalhava melhor que aquele. Logo, a diferença seria aristotelicamente justificável.
Mas a gente sabe que o resultado final disso não tem essa causa; ou geralmente não tem. Um exame geral do tema mostra que uma questão jurídica idêntica tem recebido tratamentos distintos, a revelar uma certa leniência sobre os pressupostos recursais exigidos quando o recurso é da acusação, que não se repete na mesma medida quando o recurso é da defesa.
A Súmula 7 do STJ e a Súmula 279 do STF proíbem o reexame de matéria fático-probatória em sede de recursos especial e extraordinário. São enunciados que, hoje, parecem ter pesos diferentes a depender de a irresignação ser interposta pela acusação ou pela defesa.
É verdade que, em alguns casos, a defesa tenta contornar um ou outro pressuposto de admissibilidade na esperança de que a questão jurídica seja examinada pela Corte Superior. Essa tentativa é legítima, especialmente em matéria criminal, e se justifica em nome da ampla defesa. Ou será que ninguém ouviu falar de concessão de habeas corpus de ofício em análise de agravo de instrumento interposto contra o não-conhecimento de recurso especial [2]?
Não são desses casos que estamos tratando. Falamos de situações processuais em que a questão fática e jurídica é a mesma para Chico e Francisco.

Eis um exemplo, ocorrido no AREsp 2.814.806/RS, interposto pelo Ministério Público: o STJ conheceu e deu provimento ao recurso especial para afastar a causa especial de diminuição de pena prevista no artigo 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, que havia sido concedida ao acusado. No julgamento, aquela corte avaliou que a apreensão de um rádio comunicador em poder do réu e de balança de precisão constituiriam elementos concretos que, aliados à natureza e à quantidade dos entorpecentes apreendidos — totalizando 75 g de cocaína e 186 g de maconha, amparariam a conclusão de que o réu se dedicaria à atividade criminosa, o que seria suficiente a afastar a minorante.
Para justificar o afastamento da Súmula 7, o STJ registrou que “o conhecimento e provimento do recurso especial interposto pelo órgão ministerial prescindiu de reexame de fatos e provas, na medida em que a apreciação das questões suscitadas demandou tão somente a revaloração jurídica da moldura fática já expressamente delineada pelas instâncias ordinárias” [3].
Trata-se do antigo debate entre valorar provas sobre fatos controversos ou incontroversos. A Súmula 7 não impede o exame de provas, mas sim um juízo de valor sobre fatos controversos que não contem com amparo probatório simétrico. Uma questão legal ou constitucional pode ser apreciada pelo STJ e pelo STF na via dos recursos especial e extraordinário sempre que a prova a ser examinada recaia sobre fato incontroverso. É por isso que tais Tribunais não podem ser considerados um terceiro grau de jurisdição. O efeito devolutivo dos recursos não é pleno. Apenas questões jurídicas que recaiam sobre suposto material fático indiscutível é que merecem exame. O curioso é que essa lição básica muda de coloração quando o recurso é interposto pela defesa.
Boate Kiss
No AREsp 2.826.532/ES [4], o mesmo relator e o mesmo colegiado, apreciando alegação da defesa no sentido da incidência do mesmo § 4° do artigo 33 da Lei n° 11.343/06, afirmou: “Para afastar a conclusão da instância ordinária seria necessário o revolvimento de matéria fático-probatória, providência inadmissível na via do recurso especial. Incidência da Súmula 7 do STJ.” No recurso anteriormente citado, o tribunal não viu problemas em examinar o material probatório (“revaloração jurídica”) para o fim de afastar a minorante que havia sido aplicada pelo tribunal de origem. Neste, entendeu que o material probatório indicava estar correta a decisão recorrida pela defesa. Ora, a diferença entre as duas decisões até se poderia justificar mediante o exame do mérito de ambos os recursos especiais conhecidos. Mas certamente não seria, a Súmula 7, o instrumento para tanto.
Caso emblemático que bem ilustra essa postura dicotômica é o julgamento dos imputados pelo incêndio na Boate Kiss. O recurso especial da acusação foi conhecido no juízo de origem (REsp 1.790.039/RS); todos os recursos especiais interpostos pelas defesas subiram via agravo. No julgamento, a 6ª Turma decidiu reformar a decisão do TJ-RS que desclassificou os crimes para outros de competência do juiz singular (uma explicação necessária: o TJ-RS poderia examinar provas de modo a chegar à conclusão de que não havia dolo eventual).
O voto do relator concluiu que o juiz da pronúncia estava correto no exame das provas; o TJ-RS, não. Para contornar a Súmula n° 7, o voto disse: “É evidente, portanto, que a verificação do elemento subjetivo depende de todo o substrato probatório (circunstâncias que orbitaram a prática do ilícito). Por isso, perscrutá-lo em recurso especial, cujo exame de provas é inadmissível, somente é possível em uma única hipótese, qual seja, quando a instância de origem incorrer na equivocada valoração das provas, as quais, é bom que se diga, devem ser incontroversas (não devem pairar dúvidas sobre o quadro fático que subjaz à acusação).
Ora, se há um caso em que jamais poderemos falar em existência de provas incontroversas, é este. Todos os depoimentos foram na mesma linha? A prova documental aponta para os mesmos responsáveis? Não houve debate sobre outros autores que deveriam ter sido imputados? Aceitar-se, ou não, como possível, aquelas dezenas de mortes, não pressupõe análise de provas num ou noutro sentido? É evidente que estamos muito além de “valoração de provas incontroversas” quando selecionamos as que nos interessam, desprezando aquelas que não são simpáticas à nossa conclusão. Aliás, a mera divergência entre as instâncias ordinárias no exame das provas é um grande indicativo de estarmos diante de provas e fatos controversos.
A mesma 6ª Turma, em caso em que a defesa alegava não estarem presentes os pressupostos jurídicos e fáticos do dolo eventual, valeu-se de metodologia diversa: “As instâncias ordinárias concluíram pela existência de provas suficientes da materialidade e de indícios de autoria para respaldar a pronúncia por homicídio qualificado. Assim, cabe ao Conselho de Sentença a análise das evidências, pois é defeso a esta Corte conhecer da matéria ante a imperiosa necessidade de revolvimento do acervo fático-probatório, providência obstada pela Súmula n. 7 do STJ” [5].
Esses exemplos bastam para nos perguntarmos as razões para esse tratamento diferenciado. Uma pesquisa acadêmica aprofundada poderia revelar antinomias ainda mais assustadoras. Os sujeitos processuais são iguais perante o direito, mas um vem se lambuzando com chocolate, enquanto outro tem de contentar-se com o armargor de um tomate. E não tem pai algum para colocar ordem nessa bagunça.
Talvez esse seja só mais um episódio da seletividade do poder punitivo, tão denunciada pelas mais variadas escolas criminológicas contemporâneas. O direito, a lei, mais parecem peças de um lego que são manipuladas por sujeitos que desejam construir um determinado objeto previamente escolhido. A decisão final não segue um silogismo perfeito, bem pelo contrário. A questão é que o jogo processual não vem seguindo regras iguais para Chico e Francisco. As agências penais dão um jeito de, à sua maneira, seguirem distribuindo jurisdição de forma desigual. Alguns dizem que Nicômaco, filho de Aristóteles, morreu ainda jovem durante uma batalha. Se hoje estivesse vivo e exercesse advocacia criminal, certamente estaria às voltas com as lições do seu pai.
[1] https://www.conjur.com.br/2025-mar-27/tentativa-de-golpe-o-stf-e-o-standard-de-defesa/
[2] Apenas um exemplo: STJ, AgRg no AREsp 2285319 / RJ, 5ª Turma, rel. Min .Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 21/11/2023, DJe de 27/11/2023.
[3] STJ, AgRg no AREsp n. 2.814.806/RS, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 11/3/2025, DJe de 19/3/2025.
[4] STJ, AREsp 2826532/ES, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. em 18/03/2025, DJEN 26/03/2025.
[5] STJ, AREsp 1661189/PI, 6ª Turma, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. em 20/04/2021, Dje de 30/04/2021.
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