Opinião

Justiça como cassino: viés otimista, algoritmo e loteria da litigância

Autores

  • é doutoranda em Análise Econômica do Direito (UFSC) mestre em Análise Econômica do Direito (UFSC) professora de processo civil da graduação em Direito (Cesusc) presidente da Comissão de AED da OAB-SC e advogada com ênfase em resolução de disputas e Energia do BBL Advogados.

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  • é sócio do BBL Advogados diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind vol. 2Regulação 4.0 vol. I e II e Litigation 4.0.

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15 de abril de 2025, 20h48

A decisão de seguir com uma ação ou celebrar um acordo não é apenas uma questão de análise racional de custos e benefícios. O comportamento humano é permeado por vieses cognitivos, incertezas e fatores emocionais que moldam nossas escolhas. Entre esses fatores, o viés de otimismo e a imprevisibilidade jurídica exercem papel central na superlotação do Poder Judiciário brasileiro e na baixa taxa de conciliação de conflitos.

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Segundo o relatório “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça, em 2024, o Brasil registrou quase 84 milhões de processos em tramitação, um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior, com uma taxa de congestionamento ainda superior a 70% (CNJ, 2024). Isso significa que, a despeito dos esforços para agilizar a resolução dos litígios, o sistema judiciário continua sobrecarregado. Esse cenário não se deve apenas ao acesso amplo à Justiça, mas também à percepção de incerteza quanto à decisão final do processo, o que incentiva as partes a litigarem em vez de negociarem acordos.

O viés de otimismo é um dos principais motores dessa tendência litigiosa. Estudos em economia comportamental demonstram que as pessoas tendem a superestimar suas chances de sucesso e subestimar os riscos de perda. No contexto jurídico, isso significa que um autor pode acreditar que seu caso tem uma chance muito maior de êxito do que as evidências objetivas indicam, levando-o a rejeitar ofertas de acordo e insistir na litigância.

A neurocientista Tali Sharot  descreve o otimismo como uma característica fundamental da cognição humana, levando as pessoas a projetarem um futuro mais positivo do que o realista. Em seu estudo sobre a ilusão de otimismo, Sharot demonstra que esse viés pode ser um motor de persistência, mas também pode levar indivíduos a subestimar riscos e consequências adversas. No cenário jurídico, essa visão distorcida reforça a tendência de litigar, pois os demandantes acreditam que possuem mais chances de sucesso do que realmente têm.

Essa tendência é agravada pela imprevisibilidade das decisões judiciais. No Brasil, a ausência de um sistema forte de precedentes vinculantes gera uma variabilidade significativa nas decisões dos tribunais, dificultando a previsão do desfecho de uma demanda. Como destacou Posner, “um sistema legal sem regras claras torna difícil a previsão dos resultados, incentivando a litigância”. A incerteza aumenta a percepção subjetiva de sucesso, reforçando o viés de otimismo dos demandantes e dificultando acordos.

Outro fator que contribui para o alto número de litígios é o custo reduzido para o autor. No Brasil, o acesso à Justiça é amplamente subsidiado, e a concessão de justiça gratuita é comum. Isso reduz o impacto financeiro da litigância, tornando-a uma opção atraente mesmo quando as chances de sucesso são incertas. Como destacou Shavell, “quando o custo de ajuizar uma ação é baixo, a quantidade de litígios tende a aumentar, independentemente do mérito das demandas”. Isso sem falar que há estudo demonstrando  uma captura pela classe média da justiça gratuita , enquanto os reais beneficiários de fato permanecem em um apagão de acesso à justiça.

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A atual conjuntura do Judiciário brasileiro reflete não apenas a imprevisibilidade de decisões, mas também a atuação do Supremo Tribunal Federal, que, em diversos momentos, proferiu decisões que ampliam ainda mais a incerteza jurídica. A frequente mudança de entendimento sobre temas cruciais e a judicialização da política criam um ambiente onde as partes não conseguem prever os desfechos de suas demandas, incentivando uma postura litigiosa. A insegurança jurídica gerada por decisões contraditórias e mudanças constantes na interpretação constitucional faz com que a confiança no sistema seja minada, favorecendo a perpetuação do excesso de litígios.

Resolução 615 do CNJ

Além dos vieses cognitivos já mencionados, um fator que merece destaque é o viés dos algoritmos (automation bias). A utilização de inteligência artificial e aprendizado de máquina no sistema judiciário pode tanto mitigar quanto potencializar certos vieses. Algoritmos de análise preditiva podem ajudar a estimar probabilidades de sucesso em litígios, fornecendo informações mais precisas e reduzindo a incerteza jurídica. No entanto, se não forem devidamente calibrados, esses sistemas podem reproduzir e amplificar vieses humanos, tornando decisões ainda mais inconsistentes e reforçando padrões discriminatórios já existentes.

Não à toa o CNJ, em recente resolução publicada no dia 11 de março de 2025 (Resolução nº 615), definiu no seu artigo 4º, inciso XIII, o conceito de “viés discriminatório ilegal ou abusivo”, fazendo alusão justamente à existência do viés algorítmico. Segundo o referido dispositivo, esse viés seria verificado em decorrência de “resultado indevidamente discriminatório que cria, reproduz ou reforça preconceitos ou tendências, derivados ou não dos dados ou seu treinamento”.

Ainda, o artigo 8º da citada resolução estabeleceu diretrizes para a implementação de “medidas preventivas para evitar o surgimento de vieses discriminatórios, incluindo a validação contínua das soluções de IA e a auditoria ou monitoramento de suas decisões ao longo de todo o ciclo de vida da aplicação”. E, caso verificada a existência de algum viés discriminatório, impõe a resolução que as medidas corretivas necessárias deverão ser adotadas, “incluindo a suspensão temporária (imediata ou programada), a correção ou, se necessário, a eliminação definitiva da solução ou de seu viés”.

É claro que a tecnologia – e as aplicações de IA – quando bem empregada, pode ser uma aliada na mitigação de vieses cognitivos na tomada de decisão. Cass Sunstein argumenta que ferramentas digitais e inteligência artificial podem ser usadas para estruturar melhores escolhas e criar arquiteturas de decisão que reduzam erros sistemáticos. Aplicando essa lógica ao sistema judiciário, o uso de bases de dados organizadas, ferramentas de predição de decisões e mecanismos de recomendação baseados em precedentes podem tornar o ambiente jurídico mais previsível e reduzir a necessidade de litígios desnecessários.

Diante desse cenário, a previsibilidade jurídica e a mitigação do viés de otimismo são fundamentais para reduzir o número de processos judiciais. O fortalecimento do sistema de precedentes vinculantes, como previsto no Código de Processo Civil de 2015, é uma medida essencial para proporcionar maior segurança jurídica e previsibilidade aos jurisdicionados. Quando as partes conseguem estimar com maior precisão suas chances de sucesso, a tendência à litigância diminui, e os acordos se tornam mais frequentes.

Outra medida relevante é o uso de nudges (empurrõezinhos), conforme proposto por Thaler e Sunstein . Pequenas mudanças na estrutura de decisão podem influenciar positivamente o comportamento dos litigantes, incentivando a conciliação. Exemplos incluem a imposição de taxas proporcionais ao valor da causa para ajuizamento de novas demandas, o uso de incentivos financeiros para soluções extrajudiciais e a ampliação do uso da mediação em determinadas categorias de ações.

Em conclusão, a combinação do viés de otimismo com a imprevisibilidade jurídica e o fácil acesso ao Judiciário contribui significativamente para o alto número de litígios no Brasil. Além disso, a falta de estabilidade nas decisões do STF amplia a incerteza, incentivando a judicialização excessiva e minando a confiança no sistema. O uso de tecnologia e inteligência artificial, quando bem implementado, pode ajudar a mitigar vieses cognitivos e trazer maior previsibilidade ao sistema jurídico. Compreender esses fatores e adotar políticas públicas que promovam maior previsibilidade e incentivos para a conciliação pode ser a chave para um sistema de justiça mais eficiente e menos congestionado. Ou, melhor, para decisões menos intuitivas e mais deliberadas sobre a efetiva necessidade de ajuizamento de ações.

Autores

  • advogada da área de contencioso e arbitragem com ênfase em energia do BBL Advogados, especialista em Energia & Renováveis.

  • é sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados e Inteligência Artificial no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados, diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), especialista litígios contratuais oriundos de setores regulados, organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind, O fim dos Advogados? Estudos em Homenagem ao Professor Richard Susskind, Vol. 2, Regulação 4.0, Vol. I e II Litigation 4.0, e Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados, todos publicados pela Revista dos Tribunais.

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