Opinião

Residência inclusiva para pessoa com deficiência: direito a moradia digna

Autor

  • é mestre em Constitucionalismo e Democracia e graduado pela Faculdade de Direito do Sul de Minas Gerais pós-graduado em Ciências Penais pela Uniderp e em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá habilitado na Ordem dos Advogados do Brasil autor de diversos livros e analista em Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

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14 de abril de 2025, 18h47

A Residência Inclusiva possui amparo no artigo 3º, inciso X, e artigo 31, caput, ambos da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto do Deficiente), sendo utilizada quando jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, que não dispõem de condições de autossustentabilidade e com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, garantindo-se o direito a uma moradia digna, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Andre Borges/Agência Brasília

A Residência Inclusiva difere de Residência Terapêutica, que, por sua vez, não é o mesmo que Comunidade Terapêutica. A  Residência Terapêutica está ligado ao SUS, sendo entendidas como moradias destinadas a cuidar de portadores de transtornos mentais crônicos, egressos de internações psiquiátricas e hospitais de custódia.

A Comunidade Terapêutica são serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes de uso abusivo de substâncias psicoativas, em regime de residência, que oferece ajuda no processo de recuperação e reinserção social.

Este artigo tem por foco a Residência Inclusiva, que quando implementada atende ao princípio da dignidade da pessoa humana, que pode conflitar com a autonomia administrativa, seja esta encarada como princípio ou como regra, já que, em tese, compete aos municípios organizar e executar suas políticas públicas, especialmente aquelas relacionadas à assistência social e à saúde.

Ademais, em determinados casos, poder-se-ia alegar a existência de conflito com o princípio da eficiência, vez que a gestão pública deve assegurar que os recursos disponíveis sejam utilizados de forma a beneficiar o maior número possível de cidadãos, sendo que os municípios que não disponham de residência inclusiva, teriam que suportar os custos de uma transferência para outro município.

Havendo resistência do poder público municipal, por óbvio a questão chegaria ao Judiciário, a quem competiria compor a lide, solucionando o conflito de interesses entre o ente municipal e o legitimado ordinário ou extraordinário.

Ingerência indevida do Judiciário

Primeiramente, não se vislumbra ser caso de ingerência indevida do Judiciário, vez que o controle no vigente sistema republicano é baseado na tradicional teoria dos “freios e contrapesos”, o que implica na vigilância recíproca, e, apesar de cada ente público possuir sua parcela de autonomia, é controlado pelos demais poderes, evitando a ocorrência de abusos no exercício de seu mister.

Gustavo Nogami (2009) defende que o desrespeito a qualquer comando constitucional, seja por ato comissivo ou omissivo, seja na ausência de Política Pública necessária e constitucionalmente exigida, ou, naquela equivocada, por infringir princípios tais quais o da proporcionalidade, autoriza a correção pelos demais órgãos da república.

Spacca

A exigência de implementação de políticas públicas em prol dos direitos fundamentais, quando constitucionalmente previstos e exigidos, constitui dever do Estado e direito que poderia ser reivindicado pela sociedade, através daqueles legalmente legitimados, não configurando ingerência indevida.

Aliás, sobre o tema, o STF (2023) possui o entendimento segundo o qual a intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos Poderes.

Desta forma, quando se estão em jogo direitos fundamentais, notadamente aqueles intitulados como o “mínimo existencial”, como a saúde e a moradia digna, é possível o controle judicial de políticas públicas, porque seria pequena ou inexistente a margem de efetiva discricionariedade do administrador público.

Direito fundamental à moradia digna

Comprovada a imprescindibilidade de determinada política pública que envolvam direito fundamental, este deve ser fornecido de forma irrestrita, sendo que a negativa do poder público implica em manifesta ofensa a direito constitucionalmente assegurado.

A transferência de pessoa com deficiência para a residência inclusiva, quando a família natural ou extensa não possua meios de acolhê-lo, assegura o direito fundamental à moradia digna, e, por consectário, a própria dignidade, razão pela qual não haveria que se falar em ingerência indevida do judiciário.

Em muitos casos, a família pode não possuir a infraestrutura adequada para atender as específicas necessidades do portador de deficiência, motivo pelo qual seria necessária a transferência para “Residência Inclusiva”.

A alegação de que a gestão pública deve pautar-se pelo princípio da eficiência, assegurando que os recursos disponíveis sejam utilizados de maneira a beneficiar o maior número possível de cidadãos, possui amparo no utilitarismo, teoria filosófica da moralidade, desenvolvidas pelos filósofos Jeremy Bentham e John Stuart Mil, que defendem que uma ação é correta quando gera mais prazer e bem-estar para o maior número de pessoas.

Direitos precisam ser protegidos

Ronald Dworkin (2019) entendia que os direitos dos cidadãos precisam ser protegidos do raciocínio utilitarista, sendo que mesmo aqueles desprotegidos, como eventuais minorias, estariam acautelados contra o interesse geral da comunidade.

No mesmo sentido, Michael Sandel (2015), estudioso de Imannuel Kant, defendeu que o princípio da dignidade da pessoa humana atende aos requisitos kantianos, porquanto prevalece em quaisquer circunstancias, sendo aplicado incondicionalmente, razão pela qual se acredita que Kant não seria adepto do princípio da eficiência administrativa.

No que se refere à autonomia municipal, sendo esta considerada regra ou princípio, é possível defender que eventual transferência do portador de deficiência para a residência inclusiva atende ao princípio da dignidade da pessoa humana e deve prevalecer em detrimento da regra/princípio supra mencionada.

Ronald Dworkin (2019) deu um papel de destaque aos princípios jurídicos, sendo que, para ele, uma questão de princípio tem a ver com o dever dos agentes em aplicar o direito independentemente de suas consequências, com a ressalva de que sua utilização não pode conduzir a qualquer tipo de discricionariedade, devendo o julgador respeitar a história institucional, em que o pronunciamento judicial faça parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar.

Na obra “Levando os Direitos a Sério” (2010), Ronald Dworkin vai admitir que uma regra pode ser afastada em nome de um princípio, desde que o princípio seja entendido como verdadeiro padrão de conduta, respeitando-se a coerência e integridade.

No mesmo sentido, o eminente jurista Lenio Luiz Streck (2017, p. 634) que elencou seis possibilidades para que um juiz possa deixar de aplicar uma regra:

  • 1) quando lei ou ato normativo for inconstitucional e deve ser declarado dentro da formalidade do controle concentrado ou difuso de constitucionalidade;
  • 2) quando for um caso de solução das antinomias jurídicas no estilo proposto por Noberto Bobbio;
  • 3) Verfassungkonforme Auslegung, que significa a aplicação da interpretação conforme a Constituição;
  • 4) Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung, que significa a redução dos sentidos da norma sem ocorrer uma redução de seu texto;
  • 5) deixar de aplicar uma regra em nome de um princípio jurídico, ou seja, um verdadeiro padrão de conduta, como ocorre na possibilidade de deixar de aplicar a norma do furto em nome do Princípio da Insignificância.

Princípio da dignidade da pessoa humana

No caso da transferência da pessoa com deficiência em residência inclusiva, estaria ela amparada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, sendo considerado verdadeiro padrão de conduta, porquanto poderia ser aplicado em casos semelhantes, razão pela qual não se vislumbra ofensa à história institucional, à coerência e à integridade.

Em outras palavras, ainda que se entenda a autonomia municipal como regra e não como princípio, é possível que a dignidade da pessoa humana prevaleça, aplicando este princípio em detrimento da regra.

Por outro lado, caso se compreenda a autonomia municipal como princípio, é possível notar que eventual pronunciamento judicial que imponha a obrigação ao ente público de garantir que a pessoa com deficiência possua uma moradia adequada, em uma residência inclusiva, encontrará fundamento na teoria procedimentalista de Robert Alexy.

Na esteira de Alexy (2023) princípios são mandados de otimização, devendo ser extrair o máximo benefício de um deles (princípio da dignidade da pessoa humana) em detrimento do outro (princípio da autonomia municipal, ou o princípio da eficiência administrativa).

Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade possuirá aplicação em tais casos, vez que se verificada a colisão entre princípios (princípio da dignidade da pessoa humana vs princípio da autonomia municipal e/ou da eficiência administrativa).

A aplicação do princípio da proporcionalidade não prescinde, todavia, da sua correta aplicação, pela constatação das máximas da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, de forma sequencial.

É possível verificar que se encontra atendida a máxima da “adequação”, quando se constata que o meio (transferência para residência inclusiva) é adequado à finalidade que se espera, qual seja, garantir a saúde e a moradia ao deficiente.

A máxima da “necessidade” consiste em constatar se o meio (transferência para residência inclusiva) é necessário, e se não existe qualquer outro que possa alcançar a finalidade (saúde e moradia digna), o que pode ser verificado quando se concluir que a família do deficiente não possui a infraestrutura necessária para acolhê-lo.

Ultrapassa as máximas da “adequação” e “necessidade”, é possível a aplicação da “proporcionalidade em sentido estrito”, com a ponderação dos princípios em conflito, criando-se uma regra ao caso, sendo que o “princípio da dignidade da pessoa humana” deverá prevalecer sobre os “princípio da autonomia municipal, e/ou eficiência administrativa”.

Desta forma, tanto sob a perspectiva de Ronald Dworkin, quanto a de Robert Alexy, o pronunciamento judicial que deferir o pleito de transferência do deficiente para uma Residência Inclusiva, atenderá ao princípio da dignidade da pessoa humana, podendo prevalecer ante o princípio da eficiência administrativa, bem como da autonomia municipal, ainda que se entenda esta última como regra ou princípio.

Ademais, no nível processual, em sede de antecipação dos efeitos da tutela, poder-se-á verificar a presença da probabilidade do direito e o perigo de dano ao deferir o pleito de transferência do deficiente para uma Residência Inclusiva, que pode oferecer a infraestrutura adequada para atender à sua situação peculiar.

Com efeito, a probabilidade do direito estará presente porquanto o pleito formulado possuí amparo no artigo 3º, inciso X, e artigo 31, caput, ambos da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto do Deficiente), sendo um direito legalmente previsto.

Autonomia municipal

O perigo de dano advêm do próprio fato de que o deficiente não poderá esperar o julgamento do mérito, devido ao extenso lapso temporal, para receber o tratamento adequado à sua condição de vulnerabilidade social.

Por fim, não haveria perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, mesmo porque o ente público poderá se valer do instrumento processual adequado para reformar a decisão.

Segundo já decidiu o TJ-MG, as normas que vedam a concessão de liminar satisfativa não possuem caráter absoluto (artigo 1º, §3º, Lei nº. 8.437/92 e art. 300, §3º, do CPC/15), devendo ser flexibilizadas, nas hipóteses de ineficácia da medida, caso outorgada a prestação jurisdicional somente ao final do procedimento e sempre que a situação de fato envolver bem jurídico de relevante importância.

Em conclusão, a Residência Inclusiva é medida que garante o direito à uma moradia digna à pessoa com deficiência, possuindo amparo legal, e, como direito fundamental que é, não constitui ingerência indevida do Poder Judiciário, podendo prevalecer, em determinados casos, o princípio da dignidade da pessoa humana em detrimento da autonomia municipal e do princípio da eficiência administrativa.

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Referências

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Ed. Forense. 2023.

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Ed. Martins Fontes. 2019.

Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3º ed.São Paulo: Martins Fontes. Ano 2010.

NOGAMI; Gustavo. Temas Aprofundados Ministério Público Federal: ed. JusPodivm. 2009.

SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 26ºed. Ed. Civilização Brasileira. 2015.

STF. Plenário. RE 684.612/RJ, julgado em 01/7/2023 – Repercussão Geral – Tema 698.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva. 2017.

TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.023467-2/001, Relator(a): Des.(a) Alexandre Santiago, 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/07/2020, publicação da súmula em 28/07/2020.

Autores

  • é mestre em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas Gerais. Pós-Graduado em Ciências Penais pela Uniderp e em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá. Autor de diversos livros. Atualmente é analista em Direito do Ministério Público de Minas Gerais

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