'Edward Albert Lancelot': uma lex Barbarius brasileira?
14 de abril de 2025, 21h22
O juiz aposentado José Eduardo Franco dos Reis viveu por quase quatro décadas sob uma falsa identidade — a de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. Essa inusitada história tomou conta do noticiário brasileiro nas últimas semanas. Seu peculiar enredo faz também recordar um conhecido — e difícil — caso do Direito romano: a história de Barbário Felipe (Barbarius Philippus) [1].

Barbário Felipe era um escravo em Roma. Tendo conseguido fugir, pleiteou a pretura — uma das magistraturas romanas — e foi eleito pretor. Rigorosamente, por ser escravo, não poderia ter sido eleito [2]. A despeito disso, ele exerceu, durante um tempo, as funções de pretor. Questionou-se, uma vez descoberta a verdade, sobre a validade de seus editos e decisões durante o tempo em que exerceu o cargo e ocultou sua verdadeira condição:
“Deveriam ser tais atos considerados nulos ou válidos por causa da utilidade daqueles que, perante ele, requereram ou por força da lei ou de qualquer outro direito?”
O jurista Ulpiano respondeu “que nenhum deles deve ser julgado nulo, por ser isto mais equitativo” [3].
Nenhuma sanção se aplicou aos atos, porque se considerou ser “mais humano” (humanius) proteger os cidadãos romanos que, de qualquer modo, tenham recorrido àquele magistrado. Ulpiano pronunciou-se, portanto, em favor da validade (ou ausência de sanção) dos atos realizados pelo – modernamente dito – “funcionário de fato” [4] [5].
Em sua interpretação “mais humana”, Ulpiano acrescentou ainda que, se o povo romano (Populus Romanus) podia conferir o poder (potestatem) da pretura ao escravo, poderia mesmo então tê-lo também libertado [6]. Para o jurista, “[e]ste direito, com mais força de razão, deve ser observado” [7].

A curiosa narrativa de Ulpiano não parece descrever, contudo, uma situação hipotética ou isolada em Roma. O historiador romano Dião Cássio, que nasceu em 165 d.C., dá notícia em sua História de Roma do caso de um escravo que foi descoberto exercendo indevidamente o cargo de pretor. Seu destino, porém, foi trágico. Depois de o terem libertado, aplicaram-lhe a dura pena – infligida apenas sobre homens livres – de ser atirado pelas rochas do Capitólio [8].
Mais tarde, diante do caso de Barbário, juristas como Bártolo e Acúrsio recorreram à parêmia “error communis facit ius” [9] (“o erro comum se torna direito”) [10] para fundamentar a validade dos atos [11]: a crença equivocada de que aquele escravo fosse um verdadeiro pretor teria, por ser tão ampla e difundida — tratava-se de um “erro do povo” (error populi), segundo Bártolo — [12], o condão de determinar o que deveria ser, naquele caso, “de direito”.
Função de fato
Voltando ao Brasil, em 1959, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) apreciou um caso no qual um juiz, mesmo após ter ultrapassado a idade limite para a aposentadoria compulsória, continuou a exercer, indevidamente, sua função [13]. Ao julgar a situação, em segunda instância, o relator citou uma antiga decisão da Corte de Apelação de Minas Gerais, de 1935, em que o tribunal mineiro se referiu ao caso que seria “a fonte de tôda a teoria da função de fato”: a decisão de Ulpiano diante de Barbário Felipe [14].
Para a corte de Minas Gerais, “a parêmia romana tem sido conservada”. Dessa maneira, no caso do juiz que exerceu sua função sem ter mais direito a tanto, “a idade do Magistrado era desconhecida ao ser proferido o julgamento; dependia de prova para ser decretada, não podia ser impedido pelas partes, pois continuava a exercer o cargo sem contradição. Não se pode razoavelmente inquinar de nulidade a decisão que proferiu” [15].
Portanto, nada de novo sob o sol. É o que também observa Almiro do Couto e Silva, ao tratar do tema dos funcionários de fato: “[n]ão é outra a solução que tem sido dada, até hoje, para os atos praticados por ‘funcionário de fato’”. Afinal, o que se protege, nesses casos, tal qual concretizou Ulpiano, é “a confiança gerada nas pessoas em virtude ou por força da presunção de legalidade e da ‘aparência de legitimidade’ que têm os atos do poder público” [16].
No caso de “Edward Albert Lancelot”, já se levanta a questão da nulidade de seus atos na qualidade de juiz em virtude da suposta falsidade ideológica [17]. Poder-se-ia cogitar de um vício no ingresso do magistrado ao cargo, caso se comprovasse o emprego da falsa identidade para ocultar, por exemplo, aspectos sociais e morais (artigo 78, § 2º, da Lei Orgânica da Magistratura) que compunham a sua avaliação no concurso público.
Mesmo nessa hipótese — de grave vício na investidura, a solução de Ulpiano — de não aplicação da sanção em virtude da utilidade dos atos do “funcionário de fato” para os cidadãos que nele confiaram — ainda se imporia. É o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao afastar a nulidade de sentença prolatada por “desembargador que teve a nomeação declarada nula” [18], considerando-o um verdadeiro “servidor público de fato”.
No entanto, pelo que se divulgou até o momento, no atual caso, o mero “uso indevido do nome, se comprovado, não retira daquela pessoa a condição de juiz. Será apenas um juiz com nome trocado” [19]. Não se trata, por isso, como ocorreu com Barbário Felipe, de uma situação em que as decisões e editos estejam viciados pela total incapacidade do sujeito para o exercício do cargo (que, em Roma, era eletivo). De todo modo, em qualquer cenário, a História do Direito ganha mais um singular episódio.
[1] A história é narrada em Ulpiano, no 38º [Livro de Comentários] a Sabino, D. 1, 14, 3 e ficou conhecida, entre romanistas, como “lex Barbarius” (fragmentos do Digesto eram, até não muito tempo, indicados como “lex”). O caso sempre despertou a atenção de juristas. Em 1675, o título de uma obra já qualificava a passagem como “difícil e intricada”: MOLLENBECK, Anton Heinrich; SCHRÖTER, Johann Wilhelm. Discursus Legalis Ad difficilem & intricatam L. Barbarius Philippus 3. ff. de Off. Praetor. Giessae: Karger, 1675.
[2] Paul. 17 ad ed., D. 5, 1, 12, 2: “Mas nem todos podem ser nomeados juízes por aqueles que têm esta faculdade, porque a lei proíbe que certas pessoas possam ser juízes. Alguns, pela natureza; outros, pelo costume […] Pelo costume o são as mulheres e os escravos, não por lhes faltar o uso da razão, mas por estar adotado que não têm direito de exercer funções civis”. Tradução de VASCONCELLOS, Manoel Cunha Lopes e et alii. Digesto ou Pandectas do Imperador Justiniano – Livros 5–11. São Paulo: YK, 2017. v. 2, p. 12. A respeito do fragmento, cf. GAMAUF, Richard. § 36 Sklaven (servi). In: BABUSIAUX, Ulrike et al. (org.). Handbuch des Römischen Privatrechts. Tübingen: Mohr Siebeck, 2023. p. 939, nt. 67, com indicação de literatura e referência a Barbário.
[3] As traduções deste parágrafo são de VASCONCELLOS, Manoel Cunha Lopes e et alii. Digesto ou Pandectas do Imperador Justiniano – Constituições preliminares e Livros 1 a 4. São Paulo: YK, 2017. v. 1, p. 99.
[4] GUARINO, Antonio. La pretura di Barbario Filippo. In: Pagine di diritto romano. Napoli: Jovene, 1994. v. 3, p. 415. O autor sugere, em seu breve artigo, interessantes questões para a exegese desse fragmento.
[5] Além da teoria do “funcionário de fato”, o caso costuma ser também citado pelos defensores da moderna “teoria da aparência”, como, por exemplo, MALHEIROS, Álvaro. Aparência de Direito. Revista de Direito Civil (RDCiv), v. 41, n. 6, out.-dez./1978, e DE MATTIA, Fábio Maria. Aparência de representação. São Paulo: Gaetano Dibenedetto, 1999, p. 6. No entanto, a teoria da aparência, quando ligada à representação voluntária, já foi objeto de percucientes críticas. Nesse sentido, COMPARATO, Fábio Konder. Aparência de representação: a insustentabilidade de uma teoria. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo, v. 36, n. 111, p. 39–44, jul./set. 1998, e ADAMEK, Marcelo Vieira von; CONTI, André Nunes. Teoria da aparência: críticas à sua irrefletida aplicação em matéria de representação voluntária. In: BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da (orgs.). A evolução do direito empresarial e obrigacional: os 18 anos do Código Civil – Societário & Direito de Empresa. São Paulo: Quartier Latin; 2021. v. 1, p. 643–684.
[6] STAGL, Jakob Fortunat. Favor libertatis: Slaveholders as Freedom Fighters. In: SCHERMAIER, Martin (ed.). The Position of Roman Slaves: Social Realities and Legal Differences. Berlin: de Gruyter, 2023. p. 192.
[7] VASCONCELLOS, Manoel Cunha Lopes e et alii. Digesto ou Pandectas do Imperador Justiniano – Constituições preliminares e Livros 1 a 4. São Paulo: YK, 2017. v. 1, p. 99.
[8] Dio 48, 34, 4–5. Cf. a tradução inglesa – a obra, de 80 volumes, foi originalmente escrita em grego: CASSIUS, DIO. Roman History (Loeb Classical Library). Tradução de Earnest Cary. Cambridge: Harvard University Press, 1917 [1955]. v. 5, p. 293: “yet another slave who was detected while serving as a praetor was hurled down the rocks of the Capitol, having first been freed, that his punishment might take on the proper dignity”.
[9] Accursius ad D. 1, 14, 3 (Corpus iuris civilis. Digestum vetus: mit der Glossa ordinaria von Accursius Florentinus. Mit Gedicht von Johannes Sulpitius, Perugia: Heinrich Clayn für Jacobus Langenbeke und Johann Vydenast, 1476): “circa factum error communis facit ius”. Depois, também Bartolus ad D. 1, 14, 3, n. 2, p. 74 (Bartoli, Interpretvm Ivris Civilis Coryphaei, In Ivs Vniversvm Civile, Commentaria. 1. Basileae: Froben, 1562). Essa máxima influenciaria, mais à frente, a doutrina francesa, de acordo com GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: RT, 1980. p. 117–118.
[10] MORAES, Bernardo B. Queiroz de. Expressões de latim forense e brocardos jurídicos. São Paulo: YK, 2021. p. 32. O autor propõe também outra possível tradução: “O erro recorrente se torna lei”.
[11] TRISCIUOGLIO, Andrea. Error communis facit ius. Origine ed evoluzione di un principio. In: MICELI, Marilina Andrea (coord.). Pervivencia actual de los aforismos jurídicos latinos. Buenos Aires: Universidad Abierta Interamericana, 2022. p. 900–905. Também ROSSI, Guido. Representation and Ostensible Authority in Medieval Learned Law. Frankfurt: Klostermann, 2019. p. 35 ss.
[12] “[…] error populi pro veritate habetur ut hic et ius facit […]” = “o erro do povo é tido como verdade aqui [neste caso] e se torna o direito” (Bartolus ad D. 1, 14, 3, p. 75). A expressão de Bártolo é referida, entre outros, por TRISCIUOGLIO, Andrea. Error communis facit ius. Origine ed evoluzione di un principio. In: MICELI, Marilina Andrea (coord.). Pervivencia actual de los aforismos jurídicos latinos. Buenos Aires: Universidad Abierta Interamericana, 2022. p. 904 e por BOYER, Laurent. Sur quelques adages: notes d’histoire et de jurisprudence. Bibliothèque de l’École des chartes, Paris, v. 156, n. 1, p. 13–76, 1998. p. 50.
[13] TJSP, HC n. 55.947, Rel. Des. Pinto do Amaral, Impetrante: Eugênio Stoll, p. 215. A decisão foi publicada pela Revista de Direito Administrativo: AMARAL, Pinto do. Juiz – Aposentadoria compulsória. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 56, p. 210–218, 1959. Ementa: “JUIZ – APOSENTADORIA COMPULSÓRIA – A aplicação da norma que determina a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade depende da verificação, em cada caso, do preenchimento dessa condição. – São válidos os atos praticados pelo juiz em exercício, após o implemento da idade limite. – Interpretação do art. 95, § 1.º, da Constituição”.
[14] TJSP, HC n. 55.947, Rel. Des. Pinto do Amaral, Impetrante: Eugênio Stoll, p. 215.
[15] TJSP, HC n. 55.947, Rel. Des. Pinto do Amaral, Impetrante: Eugênio Stoll, p. 215.
[16] COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 237, p. 271–316, 2004. p. 275.
[17] A título de exemplo: REDAÇÃO MIGALHAS. Decisões do juiz que usou nome falso podem ser anuladas? Advogado explica. Migalhas, São Paulo, 08 abr. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/428020/decisoes-do-juiz-com-nome-falso-podem-ser-anuladas-advogado-explica. Acesso em: 08 abr. 2025.
[18] STF, HC 71834/RR, Segunda Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 26/09/1995, DJe 27/10/1995: “[…] A declaração de insubsistência da nomeação de magistrado que haja participado de julgamento não implica a nulidade deste. Milita a favor da administração pública a presunção de legitimidade dos respectivos atos, sendo o magistrado considerado como servidor público de fato […]”. Essa decisão foi, mais recentemente, em 2017, retomada para reafirmar, na jurisprudência do STF, a “validade dos atos praticados” – no caso, por auditor fiscal – “a despeito de eventuais irregularidades que possam afetar a investidura no cargo” (STF, ARE 785651 AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01/12/2017, DJe 14/12/2017).
[19] FREITAS, Vladimir Passos de. O incrível caso do “juiz inglês”, razões e consequências. ConJur, São Paulo, 6 abr. 2025, 8h08. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-06/o-incrivel-caso-do-juiz-ingles-razoes-e-consequencias/. Acesso em: 08 abr. 2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!