Custas de arbitragem, impecuniosidade e impossibilidade de superação da convenção arbitral
14 de abril de 2025, 16h18

A natureza jurídica da arbitragem ora é qualificada como expressão de um negócio jurídico, ora como um retrato, mais ou menos típico, da jurisdição [1]. A divergência [2] entre as duas correntes decorre, nuclearmente:
- da origem consensual deste método de resolução de disputas, que conta com amplo espaço negocial de ajuste do procedimento, em contraposição à razoável rigidez das regras do Código de Processo Civil;
- da necessidade de homologação do laudo arbitral, hoje superada, mas que por longo período vigorou em diversos países, inclusive no Brasil;
- da impossibilidade de execução da sentença arbitral sem a “muleta” da coerção para imposição do comando meritório, se necessário; e
- da defendida tese de titularidade exclusiva do Estado no exercício da jurisdição, em contrapasso à ausência de participação pública no procedimento arbitral.
Após a promulgação da Lei nº 9.307/96, e movimentos legislativos subsequentes, no entanto, a dualidade doutrinária perdeu relevo no país, reconhecendo-se na tese publicista o abrigo da qualificação jurídica da arbitragem, ainda que com raiz contratual. Seja pelo disposto no artigo 18, da Lei nº 9.307/96, que reconhece o árbitro como juiz de fato ou direito; seja pela disposição do artigo 1º, da Lei nº 10.358/2001, que fixa a sentença arbitral como título executivo judicial, sem necessidade de homologação, ou, ainda, pela limitação das hipóteses de ação anulatória do laudo arbitral e aplicação da doutrina do kompetenz-kompetenz [3], é certo que a arbitragem converteu-se em um “equivalente jurisdicional”, nas palavras do ministro Luiz Fux [4].
Mas se a arbitragem é jurisdição [5], qual a consequência do estado de impecuniosidade de uma das partes [6]? O princípio da inafastabilidade do controle judiciário [7] (artigo 5º, inciso XXXV da Constituição) justifica a anulação da cláusula compromissória sob a hipótese de impossibilidade de pagamento das despesas e honorários por um dos litigantes?
Legislação italiana
A legislação processual italiana reconhece, em seu artigo 816-septies [8], que, se as partes não efetuarem o adiantamento das custas no prazo estabelecido pelos árbitros, não estarão mais vinculadas à convenção de arbitragem, podendo se socorrer no Poder Judiciário.
No Brasil, no entanto, não há propriamente uma solução legal.
Na jurisprudência, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em mais de uma oportunidade [9], já fixou que a hipossuficiência financeira superveniente não é causa para afastar a obrigatoriedade de submissão do conflito à solução arbitral, “seja porque, quando firmada, já se tinha […] conhecimento dos custos do procedimento, seja porque o sistema arbitral não está submetido à política de amplo acesso. Não fosse só isso, como bem destacou o Desembargador Enio Zuliani, no julgamento de apelação nº 1010093-17.2014.8.26.0001, ‘se essa questão financeira for alçada ao patamar de revogação da cláusula compromissória, haverá insegurança contratual injustificável e que depõe contra a ideologia de uma jurisdição estabilizada e coerente com os princípio maiores da função (solucionar conflitos)” [10].

A interpretação é irretocável.
A proclamação da arbitragem como método jurisdicional importa reconhecer a existência de algumas particularidades, ônus e bônus na clássica acepção de jurisdição [11]. Partes hiperssuficientes, litigando direitos patrimoniais disponíveis [12] (suscetíveis de livre disposição), devem arcar com os efeitos decorrentes da eleição do método privado de solução de controvérsias, sobretudo por haver razoável previsibilidade das despesas envolvidas em eventual ulterior litígio [13].
A renúncia à jurisdição estatal já ocorreu, ao tempo do ajuste clausulado, sendo que a mera dificuldade financeira posterior não afeta a capacidade civil, e, tampouco, a existência, validade e/ou eficácia da prestação endereçada pela convenção arbitral. [14]
Além disso, a obrigação do Estado em oferecer o benefício da gratuidade processual, por óbvio, não alcança a jurisdição privada, e as Câmaras e árbitros não se submeterão à execução de um serviço sem a respectiva remuneração.
Pedidos de recuperação judicial
O Brasil registrou, em 2024, 2.273 pedidos de recuperação judicial. Este é o maior índice contabilizado desde o início da série histórica (2014), segundo o indicador da Serasian Experian, além de representar um aumento de 61% em relação a 2023 [15]. O alarmante cenário, seguido da tendência de impossibilidade de anulação da cláusula compromissória nos casos de impecuniosidade de um dos litigantes, revela a importância de uma reflexão e ponderação minuciosa a respeito da inclusão de cláusula compromissória em contratos empresariais.
Aquilo que foi consensuado livremente na convenção arbitral, classificada como negócio jurídico processual, irá, em regra, se sobrepor ao estado ulterior de hipossuficiência financeira, e, eventualmente, inibir, sem máculas legais e já com chancela jurisprudencial relevante, o exercício do direito de ação da parte.
[1] ALVIM, Carreira J. E. Direito Arbitral. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 46.
[2] BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de Arbitragem. São Paulo: Atlas, 2014. p. 03.
[3] “Segundo a regra da kompetenz-kompetenz, o próprio árbitro é quem decide, com prioridade ao juiz togado, a respeito de sua competência para avaliar a existência, validade ou eficácia do contrato que contém a cláusula compromissória, nos termos dos arts. 485 do NCPC e 8º, parágrafo único, e 20 da lei 9.307/96”. (STJ. AgInt no REsp 1746049/SP. Rel. Min. Moura Ribeiro. J. 29.06.2020).
[4] STJ. MS 11.308/DF. Rel. Min. Luiz Fux. J. 09.04.2008.
[5] Sucintamente, a jurisdição pode ser compreendida como uma atividade dirigida à realização do ordenamento jurídico (ROSENBERG, Leo. Tratado de Derecho Procesual Civil. Tomo I. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America. 1955. p. 45), por meio da substituição da vontade do particular, seja no afirmar a existência da vontade da lei, seja no torna-la, praticamente, efetiva. (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 3).
[6] “Uma definição talvez mais precisa seja aquela compartilhada por Detlev Kuhner, que aponta que a definição de parte ‘impecuniosa’ está atrelada à condição financeira que efetivamente impossibilite a parte de fazer frente aos custos do procedimento arbitral.” (ZAKIA, José Victor Palazzi. Os efeitos da convenção arbitral e a parte sem recursos. In: Revista Brasileira de Arbitragem. Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB, Kluwer Law International 2020, Vol. XVII, n. 68, p.17).
[7] A “atividade jurisdicional é inafastável […] Nenhuma lesão ou ameaça de direito individual ou transindividual (difuso ou coletivo) pode ser subtraída do controle judiciário” (ARAKEN DE ASSIS, Processo Civil Brasileiro. Vol. I. São Paulo: RT, 2015. p. 574)
[8] “Se una delle parti non presta l’anticipazione richiestale, l’altra può anticipare la totalità delle spese. Se le parti non provvedono all’anticipazione nel termine fissato dagli arbitri, non sono più vincolate alla convenzione di arbitrato con riguardo alla controversia che ha dato origine al procedimento arbitrale”.
[9] Neste sentido: (a) AC 1010893-44.2016.8.26.0011, Rel. Des. Fortes Barbosa. J. 03.08.2017; (b) AC 0036760-07.2007.8.26.0000. Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy. J. 10.01.2012; (c) AC 0029502-72.2012.8.26.0451. Rel. Des. Ricardo Negrão. J. 19.05.2014.
[10] TJSP. AC 1002077-20.2021.8.26.0457. Rel. Des. Jorge Tosta. J. 29.03.2022.
[11] APRIGLIANO, Ricardo. Fundamentos processuais da arbitragem. São Paulo: Direito Contemporâneo, 2024. p. 115.
[12] “Direitos patrimoniais devem ser entendidos como aqueles que possuem por objeto um determinado bem, inerente ao patrimônio de alguém, tratando-se de bem que possa ser apropriado ou alienado […] os direitos a serem objeto de arbitragem devem ser aqueles tidos como disponíveis, ou sejam, suscetíveis de livre disposição das partes” (PARIZATTO, João Roberto. Arbitragem. Leme: Editora de Direito, 1997. p. 16)
[13] Na doutrina, são sugeridas algumas soluções para a parte que se encontra impossibilitada de arcar com as custas arbitrais, como, por exemplo, a revogação consensual da cláusula compromissória, que exige concordância da parte adversa, ou o third party funding, que autoriza um terceiro – uma parte sem envolvimento material no conflito – financiar os custos de uma das partes litigantes. As respostas, no entanto, figuram como alternativas metajurídicas, e, por esta razão, sofrem algumas críticas doutrinárias.
[14] ALVES, Rafael Francisco, VERONESE, Ligia Espolaor. Arbitragem e empresas em crise: o acesso à justiça e o cumprimento da convenção de arbitragem em vista da incapacidade financeira de uma das partes. In: Revista do Advogado, v. 36, n. 131, out. 2016, p. 179
[15] VEJA. Brasil Bateu Record de Pedidos de Recuperação Judicial de Empresas. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/radar/brasil-bateu-recorde-de-pedidos-de-recuperacao-judicial-de-empresas>.
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