Associações de pacientes com cannabis: direitos fundamentais e precedentes judiciais
13 de abril de 2025, 17h27
O direito constitucional de associação para fins lícitos expressamente prevê reserva legal para imposição de limites a este direito (artigo 5º, XVII, CF), garantindo-se sua criação na forma da lei, independentemente de autorização, vedando-se a interferência estatal em seu funcionamento.

Trata-se de direito público subjetivo a permitir a união voluntária para fins lícitos e sociais [1]. Desde a doutrina constitucional existe a concretização (legal ou judicial) de direito fundamental com intervenção em sua “área de proteção”. Esta intervenção estatal deve ser justificada constitucionalmente seja para limitar ou para concretizar o direito fundamental, podendo explicitar seu conteúdo (na concretização) ou limitar seu exercício com base na reserva legal e/ou em virtude de colisão com outros direitos fundamentais [2].
Os limites da liberdade de associação estão dispostos no Código Civil brasileiro, na Lei de Registros Públicos e no Decreto-Lei nº 41 de 18 de novembro de 1966, que dispõe sobre dissolução de entidades assistenciais que recebam subvenção social.
No que se refere às associações de pacientes que se tratam com extratos artesanais no âmbito do cultivo associativo, com critérios de controle de qualidade estabelecido no bojo da auto-organização associativa, de se demarcar a esfera de autonomia constitucional médico(a)-paciente.
Qualquer ato estatal, seja da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou de conselho profissional que venha a agredir a dignidade humana e o exercício da autonomia do(a) paciente de se tratar (artigo 5º, caput, inciso X combinado com 198, II, CF) e do(a) médico(a) de assim indicar, recomendar e acompanhar mediante sua responsabilidade e prática clínica no exercício de sua autonomia profissional (artigo 5º, III, CF) no âmbito do exercício de auto-organização da liberdade associativa (artigo 5º, XVII, CF) deve ser reputado por inconstitucional. O Estado brasileiro deve observar e proteger a dignidade humana (artigo 1º, III, CF). Controle de constitucionalidade serve para identificar intervenções ou omissões que violem direitos fundamentais.
De se reconhecer a existência de práticas populares de saúde. Observe que a Organização Mundial da Saúde concebe por planta medicinal o vegetal a partir do interesse terapêutico de seus compostos ativos e não a partir do fato da planta ser usada como medicinal pela população [3], como expressão do conhecimento popular e da tradicionalidade do uso.
Nos tempos atuais, desde a antropologia, aponta-se a redescoberta dos usos terapêuticos da cannabis e a constituição de regime de verdade enquanto planta-remédio e não enquanto este ou aquele princípio ativo, conforme o paradigma biomédico [4].
Clordana H. Lima de Aquino Oliveira realizou estudo antropológico sobre associações paraibanas. A partir da noção de “rede de biossociabilidade” [5], amparada no conceito de Paul Rabinow, atestou que cuidados da vida e da saúde de entes familiares possibilitaram o aprendizado sobre cannabis por meio da realização do cultivo doméstico, com constituição de saberes populares em saúde para além da biomedicina.
Projetos de lei
Em matéria de associações canábicas, tramitam proposições legislativas, comentando-se: PL 399/15; e PL 5511/23.
Quais intervenções legislativas no direito de associação seriam justificáveis constitucionalmente e quais seriam excessivas, como no caso de PL 399/15, que equipara associações a farmácias de manipulação? Em carta aberta, 22 associações manifestaram-se a respeito da proposta legislativa, conforme trecho:
“(…) demandamos que seja incluído no relatório do PL 399/2015 o acesso ao remédio pelo cultivo doméstico da Cannabis e que seja prevista uma clara diferenciação na atividade das associações (tanto as de pequeno porte, tanto as de grande porte) das atividades da indústria, evitando que exigências desnecessárias sejam feitas às entidades que cultivam e produzem o remédio tão somente para o seu corpo associativo sem finalidade mercantil” [6].
De acordo com este projeto de lei, as associações também poderiam passar a fornecer produtos magistrais (prescrição individualizada) e oficinais (fórmula padronizada) a seus associados, com adoção de boas práticas aplicáveis a Farmácias Vivas do SUS (RDC 18/13). Preparações magistrais podem ter formulações variadas conforme padrões de qualidade, já produtos oficinais podem exigir padrões descritos em monografias constantes do formulário de fitoterápicos da farmacopéia brasileira. Nada mais antiquado invocar a RDC 18/13, que é voltada para o poder público, sem qualquer proporcionalidade para a realidade associativa.

O PL 399/15 ignora a realidade do autocultivo, contendo em seu anexo pormenores típicos de decreto regulamentar. Contém ademais exigências agrícolas difíceis de cumprir, quando a Lei de Sementes (Lei nº 10.711/03) possibilita o livre intercâmbio de sementes de pequenos agricultores, contando com dispensa de inscrição no Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) de sementes importadas para uso próprio dentro da propriedade, ainda que obrigue fazer constar no Registro Nacional de Cultivares (RNC), o que demanda regulamentação apropriada para a realidade de pacientes.
Melhor é o projeto da Senadora Mara Gabrilli (PL 5.511/23), que prevê autorização para produção de pessoa física mediante prescrição, bem como autorização para associações de apoio aos pacientes que fazem uso medicinal de Cannabis.
Neste sentido, deve ser considerada a competência do Sistema Único de Saúde de participar do controle de produtos psicoativos nos termos de lei (artigo 200, VII, CF), tal qual previsto no artigo 6º, IX, Lei 8080/90 (Lei Orgânica do SUS).
O poder legislativo brasileiro segue, contudo, ignorando a existência de regulamentação de produção artesanal no âmbito associativo, tal qual o fez, por exemplo, a legislação peruana.
Competência da Anvisa para escala industrial
Pode-se argumentar em favor da existência de “uma reserva de regulação [7]”, para a competência técnica da Anvisa para registro de medicamentos fitoterápicos, bem como para a atual concessão de autorizações sanitárias de produtos de cannabis nacionais (com derivados vegetais ou fitofármacos isolados), para fabricação e dispensação a partir da importação de derivado vegetal, fitofármaco, a granel ou produto industrializado, modalidade regulatória em que se pode pleitear o registro de medicamento com fitocanabinoides (RDC 327/19).
A dispensação por enquanto está restrita a farmácias sem manipulação, o que é objeto de discussão no STF. A RDC 327/19 é disposição normativa temporária, atualmente em processo de revisão (Consulta Pública 1316/25). Trata-se de abordagem regulatória dinâmica e flexível [8].
Nos moldes da RDC 327/19, são requeridas autorizações (de funcionamento e especial), bem como certificados de boas práticas de fabricação e armazenamento de medicamentos, ou seja, algo voltado para a indústria farmacêutica.
Houve a inclusão da Cannabis sativa L. na denominação comum brasileira, o que implicou no reconhecimento pela Anvisa enquanto planta medicinal (RDC 156/17), sendo reincluída posteriormente na farmacopeia brasileira com padrões referidos em monografia (RDC 940/24).
Ministério da Saúde e suas inconstitucionais omissões para com associações de pacientes
O cultivo de cannabis com fins medicinais é de competência do Ministério da Saúde [artigo 14, inciso I, c) do Decreto 5.912/06]. Não é proporcional aplicar a RDC 16/2014 por meio da Anvisa, que exige autorizações de funcionamento e especial para empresas farmacêuticas à realidade de associações de pacientes.
Mesmo que exista o programa pesquisa para o SUS, não se tem notícia de edital de chamamento público específico para termo de colaboração ou termo de fomento com associações de pacientes com cannabis, que muitas vezes se valem de parcerias com universidades para testagem de óleos, dentre outras pesquisas de validação da eficácia do óleo artesanal [9].
Segundo o Anexo do Decreto nº 5.813/06, que instituiu a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos é diretriz para o Ministério da Saúde a interação entre setor público e organizações da sociedade civil.
Com a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, foi editada a Resolução 739 de 22 de fevereiro de 2024 do Conselho Nacional de Saúde, que aguarda homologação, para valer juridicamente.
Dentre as propostas, encontra-se moção aprovada pela: “criação pela União Federal de procedimento administrativo para pacientes e associações civis obterem autorização de cultivo”.
IAC 16, REsp 1.982.830, STJ e técnica da distinção em precedentes
Ainda que o STJ exponha tese no IAC 16, trata-se de um caso concreto de uma empresa que requereu cultivo de cânhamo para fins de insumo farmacêutico no mercado. O que se deve perquirir é a ratio decidendi para casos análogos, qual seja: a do enunciado de que cânhamo não está proibido, aplicando-se o regime para fins medicinais e científicos na ausência de regramento específico de cânhamo.
As associações em sua grande maioria não almejam o fornecimento para terceiros no mercado, mas sim distribuição restrita aos(às) associados(as) por meio de produção artesanal com controle de qualidade próprio. Associações cultivam diversas variedades genéticas da cannabis, conforme a necessidade de pacientes. Não cultivam somente a variedade genética conhecida como cânhamo, tal qual versa o IAC 16.
Tem-se o REsp 1.982.830, STJ, em que se decidiu caber “(…) à Abrace submeter o seu plano de trabalho à Anvisa, nos termos previstos na RDC 16/2014, a fim de obter a Autorização Especial a que se refere esse normativo, bem como para se submeter a um permanente controle e periódica fiscalização em suas atividades” [10].
Se a Abrace caminha para o registro de medicamento, padrões analíticos de controle de qualidade e autorização especial definitiva nos termos da RDC 16/2014 e da RDC 327/19, isso é a realidade da Abrace, que atingiu padrão industrial, não das demais associações.
Refira-se, nada obstante, o precedente da Abrario, com reconhecimento do direito de plantio para fins medicinais, em que se esclareceu dispositivo de sentença para “(…) afirmar a inexistência de relação jurídica, à luz da atual legislação, que autorize a Anvisa ou a União a restringir ou sancionar a atividade da autora, desde que exclusivamente para os fins medicinais (…)” [11].
Cidadania inviabilizada por falta de regulamento
A Federação de Associações de Cannabis Terapêutica (Fact) [12] foi criada em 2021, com defesa da autorregulação em construção coletiva. As associações canábicas de pacientes suprem omissões material e normativa do Estado brasileiro. A criação de procedimento administrativo de autorização no Ministério da Saúde para a produção artesanal no âmbito associativo consubstancia medida consentânea com a obrigação internacional de progressividade na implementação dos direitos sociais (art. 5º, §2º, CF).
Desde o direito comparado, conforme o artigo 23 do Decreto Supremo nº 004-2023 no Peru, apresentam-se por parte das associações: justificação médica de cada paciente associado(a), planos de cultivo, processamento, transporte e armazenamento, fluxograma da produção, o número de análises de controle de qualidade, volume estimado de produção artesanal e estimativa de quantidade proporcional às necessidades dos pacientes. No país vizinho, existe um procedimento administrativo de obtenção de licença de produção artesanal de derivados de cannabis com cultivo associativo.
Em termos de analogia, no Brasil, para associações que produzem remédios caseiros artesanais, tem-se o artigo 2º, §9º, RDC 26/14 para afastar a competência da Anvisa:
“Não são objeto de registro ou notificação as preparações elaboradas pelos povos e comunidades tradicionais do país sem fins lucrativos e não industrializadas.”
Em havendo incerteza jurídica para concessão da licença para associações, basta o Ministério da Saúde procurar solução jurídica proporcional com celebração de termo de compromisso e consulta pública (artigo 26, §1º, I, Decreto-Lei nº 4.657/42).
[1] GRAZZIOLI, Airton, PAES, José Eduardo Sabo, DOS SANTOS, Marcelo Henrique, DE FRANÇA, José Antonio. Organizações da sociedade civil. Associações e fundações. Constituição, funcionamento e remuneração de dirigentes. Educ, São Paulo: 2016, p. 35
[2] DIMOULIS, Dimitri, MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Thomson Reuters Brasil, São Paulo: 2022, pp. 198-199
[3] STASI, Luiz Claudio Di. Plantas medicinais. Verdades e mentiras. O que os usuários e os profissionais de saúde precisam saber. São Paulo: 2007, p. 22
[4] FIGUEIREDO, Emilio, POLICARPO, Frederico, VERÍSSIMO, Marcos. Planta, droga ilegal e remédio: notas sobre o uso medicinal da maconha no Rio de Janeiro. In: LABATE, Beatriz Caiuby, RODRIGUES, Thiago (Orgs.) Políticas de drogas no Brasil. Conflitos e alternativas. Campinas: 2018, p. 403, p. 396, p. 410
[5] OLIVEIRA, Clordana H. Lima de Aquino. Política da esperança: panorama antropológico sobre a regulamentação e associativismo pela terapêutica canábica no Brasil. Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPB, João Pessoa, 2021, p. 64
[6] VILELA, Charles. Associações de pacientes da Cannabis medicinal lançam nota pedindo que projeto de lei democratize acesso. SECHAT, 14/08/2020, disponível em: https://sechat.com.br/associacoes-de-pacientes-da-cannabis-medicinal-lancam-nota-pedindo-que-projeto-de-lei-democratize-acesso/ Acesso: 08/04/25
[7] MOREIRA, Egon Bockmann. Regulação sucessiva: quem tem a última palavra? Caso pílula do câncer: Adi nº 5.501, STF. In: NETO, Floriano de Azevedo Marques, MOREIRA, Egon Bockmann Moreira, GUERRA, Sergio. Dinâmica da regulação. Estudos de caso da jurisprudência brasileira: a convivência dos tribunais e órgãos de controle com agências reguladoras, autoridade da concorrência e livre iniciativa. Fórum, Belo Horizonte: 2021, p. 207
[8] SILVA SANTOS, Marina Jacob Lopes da. VASCONCELOS, Beto. Breve histórico da recente regulamentação da Cannabis para fins medicinais e científicos no Brasil. Revista do Advogado nº 146. AASP, 2020, p. 101
[9] NUNES, Eliane Lima Guerra et. al. Avaliação da eficacia clínica do óleo artesanal de Cannabis Sativa, produzido pelo cultivo doméstico de uma mãe, com o apoio do projeto Mães Jardineiras, para tratamento de seu filho com transtorno do Espectro Autista Grave: relato de caso. Revista Brasileira da Cannabis v. 2, n. 1, 2023, disponível em: https://revistacannabis.med.br/sbec/article/view/34 Acesso em 09/04/25
[10] STJ, REsp n. 1.982.830, Min. Herman Benjamin, Brasília, j. 04 de maio de 2022
[11] TRF 2ª Região. Apelação Cível n. 5001711-11.2022.4.02.5102/RJ, Rel. Des. Fed. Guilherme Couto de Castro, j. 19/03/25
[12] FACT. Federação de Associações de Cannabis Terapêutica. Disponível em: https://factbrasil.org.br/
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