Júri: pode o STF, por acórdão, retirar o poder geral de cautela dos juízes?
30 de setembro de 2024, 15h16
1. Ritos para amar, para rezar, para enterrar e para julgar: símbolos e rituais ou ‘por que a soberania do júri está na Constituição, mas não se sobrepõe à Constituição’
Sinto-me na obrigação de voltar a escrever sobre o tema da prisão automática (sic) em condenações pelo Tribunal do Júri, decidida recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 1.235.340/SC (Tema 1.068). Há cerca de duas semanas a decisão veio, tendo eu resumido o que foi decidido no longo texto que escrevi aqui.
Este artigo faz uma incursão há mais de 30 anos, quando lancei um dos meus primeiros livros [1]. Na obra falo de como o Tribunal do Júri importa para a democracia, mas como também o procedimento no Júri deve se dar com especial cautela para com os direitos fundamentais (a primeira edição ainda trata do Júri de antes da CF de 1988 – e já era considerado uma garantia do cidadão). Assim:
(i) O que se espera de um procedimento especialíssimo como o Júri?
(ii) Qual seu valor e por que insistimos nele como sociedade?
(iii) A soberania dos vereditos está na Constituição, por evidente, mas para além da soberania, quais os símbolos e rituais que desvelam a instituição do Júri?
Não há no Direito algo mais historicamente simbólico do que o Tribunal do Júri. Trata-se de uma demonstração que para certos temas de alto clamor moral, como é a questão da vida, o povo deve ser ouvido e ter sua voz refletida e expressada pelo sistema jurídico. É disso que se trata: o símbolo, traduzido, evidentemente, em procedimento. Não é porque o povo clama para si a força de sua vontade que no júri simbolicamente vale tudo. Há um rito devido. Um rito específico, que dá à simbologia popular do Júri uma legitimidade e autenticidade à luz do devido processo legal. Porque, evidentemente, a soberania está na Constituição, mas não se sobrepõe à Constituição.
2. O júri e a violação da Lei de Hume: porque de um é (crimes violentos) não se tira um deve (prender automaticamente) ou “porque não devemos esquecer que o Júri está no capítulo dos direitos e garantias do cidadão. E não da sociedade contra o cidadão”
É disso que tratei na coluna que escrevi sobre o tema. É um exemplo da lei de Hume: de um “é” não se tira um “deve”. Isto é, de um fato (uso indiscriminado de teses misóginas para absolvições em casos de feminicídio), não se tira um dever (conclusão pela inconstitucionalidade da utilização das teses favoráveis à defesa). Justamente porque tais declarações são elas também muito mais simbólicas do que jurídicas. Toda a fundamentação da decisão do RE 1.235.340/SC se deu muito mais no plano simbólico do que no plano do direito.
Explico. Antes de tudo é preciso deixar claro que não acredito em cisões metafísicas entre a dimensão simbólica e a dimensão jurídica. É preciso ser dito que o direito ocorre dentro de uma dimensão simbólica. A questão é como se dá esse acontecer do fenômeno jurídico. Defendo a existência de decisões constitucionalmente adequadas e é disso que se trata o caso. O STF decidiu simbolicamente que o Direito vale menos que valores morais e a virtude em se condenar um acusado automaticamente a prisão em qualquer situação de decisão desfavorável pelo conselho de jurados.
Temos, então, neste primeiro ponto, uma realidade: a de que o Supremo decidiu fundamentar sua decisão usando o mais condenável (com o perdão do trocadilho) dos vícios jurisdicionais — o de subverter a simbologia autêntica da soberania dos vereditos e da íntima convicção dos jurados em uma debacle contra o direito de defesa. Em outras palavras, os símbolos e rituais — que contemplam a defesa — do Júri foram invertidos contra a garantia que o júri representa. Não esqueçamos que o Júri está no capítulo dos direitos e garantias do cidadão. E não da sociedade contra o cidadão.
Trata-se de uma subversão da própria ideia do Júri como tribunal popular, pois a ausência de prisão não significa uma negação à decisão do conselho de jurados, mas sim garantia do direito de a defesa recorrer. Ambos deve(ria)m ser compatíveis, mas o Supremo entendeu o contrário. E essa compreensão parte de um pré-juízo inautêntico que julgamentos morais dos quais o condenado pelo Júri não pode sair pela porta da frente do tribunal valem mais do que a Constituição. Mas para além da simbologia, temos os casos concretos que serão consequência do que decidiu a corte.
3. Da tese firmada pelo STF à própria exceção da prisão. Os juízes estão obrigados a prender automaticamente? Ou ‘pode o STF retirar dos juízes o seu poder geral de cautela?’
A “tese” firmada pela corte foi a de que
“[a] soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.
Pois bem, discordo dessa tese, isto já está claro. Mas da publicação prévia da ementa do acórdão se tira o item 6, que afirma:
Em situações excepcionais, caso haja indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, o tribunal, valendo-se do poder geral de cautela, poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso.
Vemos, então, que o próprio acórdão, dando-se conta do “estrago”, trouxe já possíveis exceções para os casos em que uma condenação automática se mostrar com manifesta nulidade.
Disso se extrai — e vou procurar refletir sobre isso mais adiante — em uma leitura conforme às garantias constitucionais, que um juiz que não mandar para a prisão um condenado pelo Júri, cuja detenção não preencha os requisitos para prisão cautelar, não necessariamente terá a obrigação de remeter o réu a prisão. Claro que isso exigirá um exercício de jurisdição constitucional. Essa é a leitura constitucionalmente e lógica que se pode tirar do caso. Afinal, a Constituição ainda constitui-a-ação. Por várias razões:
(i) porque existe precedente vinculante da corte sobre o tema (ADCs 43, 44 e 54);
(ii) porque a prisão no sistema processual brasileiro, ainda deve ser lida como exceção (por mais que alguns insistam em dizer o contrário);
(iii) porque o STF não pode obrigar o juiz a julgar contrariamente à CF (lembremos o caso Alcides de Mendonça Lima, em 1893, no qual o juiz fez controle difuso de constitucionalidade e foi processado – Ruy fez parecer dizendo que ali havia “crime de hermenêutica” contra o juiz);
(iv) isto é, porque a prisão de qualquer pessoa somente está autorizada a partir dos requisitos da cautelar, sob pena de uma prisão estar baseada em uma tese contrária à própria CF e o CPP. Pelo menos assim o era até essa decisão em Repercussão Geral do STF.
(v) Resta saber se uma decisão em RG pode criar novos requisitos para a prisão não previstos no CPP.
(vi) Afinal, o poder cautelar do juiz não é uma garantia constitucional, ínsita ao exercício da magistratura? O STF pode, via decisão em RG, eliminá-la?
(vii) E o poder geral de cautela do Tribunal de Apelação (segundo grau) pode ser limitado a duas hipóteses nos casos de Júri? Essa limitação pode ser feita pelo STF via decisão em RG?
Em outras palavras, a exceção posta pelo STF fere até mesmo o CPP, artigo 312 e segs. Ali estão as exigências-possibilidades para a prisão cautelar. Não pode o STF criar novas exigências. Só o legislador pode. Ou seja, enquanto para prender cautelarmente se tem aquelas exigências do CPP, agora, nesse julgamento, o STF acrescentou novas possibilidades, dizendo: nas hipóteses de condenação pelo júri a qualquer pena, não valem os requisitos do CPP e o réu será recolhido.
Também, diante das incertezas geradas pela decisão, quando o STF refere que o tribunal poderá suspender a execução imediata da pena, a qual deles está se referindo? Ao próprio tribunal do júri ou à instância superior?
Parece-me que, fosse a intenção de delegar essa competência ao juízo de primeiro grau, ter-se-ia referido como “juiz” e não “tribunal”. Isto quer dizer que o juiz não tem (mais) esse poder, segundo o STF. Tem de prender e a possibilidade de soltura está no poder geral de cautela do Tribunal de Apelação.
Então, considerando essa leitura, i.e., de que é a instância superior àquela mencionada pelo STF, por exceção, poderão ser liberados, não pelo juiz, mas pelo tribunal (exige-se, assim, um recurso, já estando o réu preso – é o que se lê), que poderá conceder a liberdade caso haja indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos.
Ou seja, caso o réu seja primário e não seria levado à prisão se tivesse cometido outro crime, será preso de igual modo, pela simples razão de que é réu de júri. Já não são os requisitos da cautelar que prendem; o que prende é a condição de réu de júri.
Vejam o tamanho do imbróglio. O acórdão tira o poder geral de cautela do juiz e o transfere para o tribunal — e também estreita o poder geral de cautela do próprio Tribunal. O STF, em RG, restringe as hipóteses de liberdade, lidos os requisitos a contrario sensu do artigo 312.
Como no Fator Júlia Roberts (ler aqui), e exercendo o papel da doutrina, é possível dizer que está errada a Suprema Corte. Isto porque a lógica em nosso sistema processual é que a prisão é exceção, e a liberdade é a regra. A prisão seria automática apenas se, a contrario sensu, qualquer condenado pudesse ficar em liberdade a partir da simples interposição de recurso.
Logicamente, não é esse o caso. Se sabe que não basta interpor recurso em um processo qualquer. Porque, para ficar em liberdade, tem de preencher requisitos. Se há os requisitos para a liberdade, por questão de proporcionalidade também o deve ter para quando se prende.
O próprio Supremo admite isso quando faz a ressalva relativa ao poder geral de cautela. Tal poder é simplesmente uma tradução de nosso sistema de algo que Dworkin chama de responsabilidade política dos juízes em decidirem de forma íntegra para com a tradição jurídica do seu sistema jurídico. É disso que se trata.
E uma tese de Repercussão Geral não pode quebrar tal paradigma. Uma tese resultante de RG não tem o condão de criar direito novo. Em outras palavras, a tese em RG derroga o próprio precedente do STF (ADCs 44 e demais) e o poder-dever de cautela dos juízes.
4. Todos os juízes são juízes constitucionais: deles não se pode retirar o poder geral de cautela
Na medida em que todos os atos são de algum modo “atos de jurisdição constitucional”, porque juiz sempre deve estar filtrando hermeneuticamente as leis do sistema, tem-se que os juízes devem fazer uma leitura constitucionalmente adequada da decisão do Supremo Tribunal.
Se o próprio STF admite exceções à prisão imediata-automática, seria inconstitucional que, terminado o julgamento do júri, o juiz examinasse se aquele condenado possui os requisitos para a prisão cautelar? Ora, se o STF disse que o Tribunal de Apelação pode liberar o condenado, por qual razão o próprio juiz Presidente do Júri não pode, examinando as condições pessoais do réu, liberá-lo? Ademais, a tese firmada não abrange a proibição do poder geral de cautela. Tudo indica estar em obiter dictum. Afinal, a tese diz que está autorizada a prisão imediata.
A pergunta a ser feita, isonomicamente: fosse outro réu que não o júri, o juiz o prenderia? Se a resposta for sim, presentes os requisitos do artigo 312, aí sim está autorizada a prisão. Não estando presentes as exigências para a decretação da prisão, o réu poderá responder solto ao restante do processo (porque o processo só termina, mesmo, no trânsito em julgado, conforme precedente da Suprema Corte).
Assim seria se obedecêssemos ao precedente da ADC 43-44. E o CPC que estabelece os requisitos para a prisão cautelar. Afinal, de que modo se fará se, presentes os requisitos para o artigo 319, ter de prender automaticamente?
Ainda no plano da reflexão constitucional, outra hipótese é o tribunal fazer uma extensão (uma interpretação conforme às garantias processuais-constitucionais) às duas hipóteses elencadas no acórdão em obiter dictum (indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos) e examinar se estão presentes os requisitos do artigo 312. Em não estando, exercer o seu poder geral de cautela. Afinal, por que essa limitação às duas hipóteses? Repita-se a pergunta: pode o STF alterar o CPC por meio de decisão em RG?
Por que, em um caso de homicídio qualificado e em havendo indícios de nulidade (por exemplo) o tribunal pode exercer seu poder geral de cautela e soltar o réu e, em um caso de homicídio simples ou tentativa de homicídio, sendo o réu primário e preenchendo até mesmo as hipóteses do 319, terá de mantê-lo preso? Onde ficaria a isonomia? E a igualdade de tratamento?
Leve-se em conta, ademais, que nunca existiu a obrigação de prender (a não ser quando havia prisão obrigatória em determinados delitos, até o advento da Lei Fleury) e também nunca foi proibida a prisão de qualquer réu, mesmo no dia seguinte das ADCs 43 e 44. Lembremos novamente: com as ADCs 43, 44 e 54, nunca foi proibido prender.
Portanto, fere a Constituição a restrição das possibilidades de conceção de liberdade postas no acordão (indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos). Além disso, também fere a Constituição a retirada do poder geral cautela dos juízes, transferida para os tribunais, ainda que as hipóteses sejam restritas para a concessão da liberdade.
Post scriptum: se a soberania serve para prender (tese do STF), por que essa mesma soberania não dá o poder da clemência?
Por fim, temos outro problema. Como sempre digo, parafraseando o “conselheiro”: as consequências, elas sempre vêm depois. O Supremo pode não ter percebido, mas para além da automaticidade das decisões, se a ratio decidendi do caso foi a soberania dos vereditos — e os votos que compuseram a maioria evidenciam isso — talvez a maioria não tenha se dado conta de que essa mesma soberania impedirá que absolvições por clemencia serão irrecorríveis.
Há todo um debate sobre o instituto da clemência e sua constitucionalidade. Assim como se deu com a “legítima defesa da honra”, o debate sobre a constitucionalidade normalmente se dá no campo do emotivismo. O que é um problema. Clemência é um dos institutos que tornam o Júri o que ele é: faz parte, como disse, dos símbolos e rituais do instituto.
A sociedade, representada pelo corpo, pode analisar o todo, o contexto do caso concreto e concluir pelo perdão do agir do réu. Por isso, a soberania! Se fala de feminicídios, mas também há os casos de homicídios de cidadãos que abusaram. O que fazer nesses casos? Nesse momento surge a clemência.
Em outras palavras, a sociedade tem o direito de dizer no Júri o que é reprovável para ela, sociedade. Isso é a soberania. O que o Supremo vem fazendo é romper com os ritos e invertendo os símbolos dessa soberania do Júri. Mas, como vimos, até para essa limitação há limites.
Respeitemos os símbolos e rituais legítimos do Tribunal do Júri, pois!
[1] STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993.
Não seria: “hipóteses de condenação pelo júri…”, quer dizer, retirando o “não”.
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