Embargos Culturais

A Era dos Direitos, de Norberto Bobbio

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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29 de setembro de 2024, 8h00

A Era dos Direitos, de Norberto Bobbio, na edição da Campus, traduzido por Carlos Nelson Coutinho — um profundo conhecedor do pensamento italiano, a exemplo de Antonio Gramsci — é obra que se ocupa da história, da evolução e dos fundamentos dos direitos humanos. Um livro atual. Trata-se de profunda investigação sobre a fundamentação de direitos permanentemente colocados em risco, como comprova atenta leitura do último relatório do Human Rights Watch, bem como a observação de nossa realidade. Em cada esquina brasileira parece haver uma prova de que Bobbio precisa de ser lido, e praticado.

A obra é coletânea de ensaios e pronunciamentos de Bobbio, divididos em três partes: a primeira dedicada aos fundamentos dos direitos humanos; a segunda à Revolução Francesa e seu impacto nos direitos humanos; e a terceira com foco em temas de resistência e opressão. Nessa parte Bobbio trata da pena de morte, contra a qual se posiciona de forma radical. No entanto, para o pensador italiano, “se examinarmos o longo curso da história humana, mais que milenar, teremos de reconhecer – quer isso nos agrade ou não – que o debate sobre a abolição da pena de morte mal começou”.

Em A Era dos Direitos, Bobbio sustenta que os direitos humanos são direitos históricos, que no ocidente se desdobram com a modernidade e com a consequente concepção individualista de sociedade. Os deveres dos súditos transformam-se em direitos dos cidadãos. Bobbio parece indagar se existe um fundamento intrínseco e absoluto para os direitos humanos e, caso houvesse, se seria desejável. Bobbio problematiza um fundamento universal e imutável para os direitos humanos, ainda que em forma de ideal inalcançável.

Quarta onda de direitos e as liberdades religiosa e científica

Um dos temas centrais do livro é a distinção entre direitos de liberdade, direitos políticos e direitos sociais. Como se tornou lugar comum, os direitos de liberdade, ou direitos civis, protegem o indivíduo contra a intervenção do Estado. Os direitos políticos asseguram a participação na vida pública. Os direitos sociais buscam proteção e bem-estar por meio da ação do Estado. Exemplifica-se com educação e saúde.

Bobbio destaca que direitos históricos, por óbvio, não surgem todos ao mesmo tempo; refletem o amadurecimento de novas demandas sociais. O livro foi publicado em 1992, condensando ensaios de décadas anteriores. Não discute uma suposta quarta onda de direitos, que incluiria os direitos difusos e coletivos, a exemplo da sustentabilidade ambiental.

Essa nova onda de direitos reflete preocupações que ultrapassam o indivíduo e a relação com o Estado, abraçando temas de interesse difuso, a exemplo do direito à paz. Bobbio não abordou tais direitos, em parte porque o foco de sua análise foi o contexto histórico de transformações que levaram ao reconhecimento dos direitos de liberdade, participação política e direitos sociais. A agenda de direitos humanos é situação permanentemente aberta.

Bobbio também analisou o tema da liberdade religiosa e científica. O tema é muito atual, vide recente decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, garantindo direitos de Testemunhas de Jeová, também debatido pelo STF. Afinal, sustenta Bobbio, o direito à liberdade religiosa consiste no direito de professar qualquer religião ou de não professar nenhuma. A liberdade científica não consiste em escolher uma verdade científica específica; consiste na vedação de obstáculos para a pesquisa e o desenvolvimento de novas descobertas.

ONU e consenso

Outro ponto importante na obra é a análise de Bobbio sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Bobbio entendia se tratar de documento que refletia consenso universal. Contudo, essa posição pode ser criticada. Embora a Declaração seja amplamente aceita, não se pode ignorar que há outras declarações de direitos de caráter menos pretensamente universal.

Spacca

Exemplifico como declarações de países africanos, de países muçulmanos e de vários países asiáticos. A Declaração de Bangkok, por exemplo, reflete visões e necessidades distintas de suposto padrão dito universal, ainda que objetivamente ocidental. O conceito de direitos humanos pode ser, em parte, culturalmente condicionado; o consenso proclamado pela ONU pode não ser tão universal quanto se sugere, ainda que seja tão universal quanto desejamos.

Ao explorar os direitos elencados na Declaração Universal, Bobbio reconhece que não se tratam de únicos direitos possíveis. Enfatiza que são direitos de uma pessoa humana histórica, matizados pelos redatores da Declaração, sob forte influência da triste memória então viva da Segunda Guerra Mundial.

Avanço do radicalismo

A atualidade da obra de Bobbio precisa ser avaliada criticamente, o que não lhe retira a força, a exuberância e a qualidade do legado. Pelo contrário. No entanto, será que a supremacia conceitual dos direitos humanos, como defendida por Bobbio, resiste ao avanço da extrema direita radical como se verifica em vários pontos do mundo? Há um desafio significativo que se observa com a ascensão de movimentos autoritários e nacionalistas, que frequentemente atacam direitos humanos sob o argumento de defesa de valores tradicionais ou da soberania nacional. Esses movimentos, na maioria das vezes, rejeitam a universalidade dos direitos humanos, questionando sua aplicação irrestrita.

Além disso, pode-se questionar se o texto de Bobbio deve ser lido como um documento de época, refletindo o contexto histórico do pós-guerra e da Guerra Fria. De certa forma, a obra está ancorada em um momento histórico específico, no qual a reconstrução da Europa e a emergência de um consenso liberal-democrático dominavam o cenário internacional. A ideia de uma “era dos direitos”, tal como descrita por Bobbio, faz sentido nesse contexto, bem como no mundo atual, marcado por desafios globais como a crise climática, o ressurgimento de políticas autoritárias e a desigualdade extrema.

A Era dos Direitos continua relevante para o debate contemporâneo sobre direitos humanos. A obra nos convida para uma reflexão sobre a universalidade desses direitos, sobre seu caráter histórico e mutável, e sobre os desafios que eles enfrentam no mundo atual. Bobbio nos lembra que os direitos humanos são fruto de lutas sociais e políticas, e que seu progresso depende da ação contínua de indivíduos e sociedades comprometidos com a liberdade, com a igualdade e com a justiça.

Um complemento essencial para a Era dos Direitos, e para Bobbio em geral, é a leitura de um ensaio de Celso Lafer, A Presença de Bobbio no Brasil, encontrado em A Presença de Bobbio, de autoria de Alberto Filippi e Celso Lafer, da Editora da Unesp.

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