Liberdade religiosa e recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová
29 de setembro de 2024, 8h00
Na última quarta-feira (25/9/2024), o Supremo Tribunal Federal decidiu que as Testemunhas de Jeová, em consagração de sua fé, têm o direito de recusar transfusão de sangue quando necessitarem de tratamento médico. Em complemento, a corte decidiu também que, nesses casos, o Estado tem a obrigação de oferecer tratamentos médicos alternativos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que o paciente tenha de ser deslocado para outras localidades.
Conforme se extrai de notícia publicada no site do STF, foram fixadas as seguintes teses de repercussão geral:
“RE 979742
1 – Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.
2 – Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no SUS podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio” [1].
A toda evidência, trata-se de decisão que, embora ativista [2] – na medida em que determina novos critérios para a execução de política pública de saúde no Brasil –, representa um marco jurídico importante na proteção da liberdade religiosa e na reafirmação da autonomia individual no Brasil.
Não obstante, é importante registrar que o STF impôs relevante ressalva à abrangência da liberdade religiosa em casos que envolvam incapazes e, notadamente, menores de idade. Isso porque a corte reconheceu o direito de recusa de transfusões de sangue apenas para adultos capazes, mas negou essa prerrogativa, por exemplo, aos pais que tentem impedir que filhos menores recebam esse tipo de tratamento. Em casos como esses, o STF consagrou o princípio do melhor interesse para a saúde e a vida de crianças e adolescentes, garantindo que a decisão final sobre qual tratamento será aplicado a menores de idade, incluindo a transfusão de sangue para Testemunhas de Jeová, fique a cargo do médico responsável.
A decisão prioriza a vida e a saúde de crianças e adolescentes, mesmo que isso contrarie as crenças religiosas dos pais, o que reflete uma ponderação entre o direito à liberdade religiosa e o dever do Estado de proteger aqueles que estão em condição de vulnerabilidade.
A técnica de ponderação utilizada pelo STF, que não é novidade no campo dos direitos fundamentais, evidencia a necessidade de sopesar valores que, por vezes, entram em colisão. No caso em questão, o direito à liberdade religiosa foi confrontado com o direito à vida e à saúde. Em situações como essa, é necessário que a corte decida qual direito prevalece em determinados contextos, levando em consideração as circunstâncias específicas de cada caso. No caso das Testemunhas de Jeová, a ponderação feita pelo STF levou à conclusão de que, para adultos plenamente capazes, a autonomia individual deve prevalecer, permitindo que se recusem a receber transfusões de sangue. No entanto, para menores de idade, filhos de Testemunhas de Jeová, o princípio da proteção integral da infância e adolescência prevalece, com o objetivo de garantir o direito à vida e à saúde desses indivíduos.
Diretivas Antecipadas de Vontade
Do ponto de vista ético, essa decisão suscita importantes discussões sobre o conflito entre a autonomia individual e o dever do Estado de preservar a vida. No contexto médico, essa tensão entre princípios éticos é frequentemente abordada pelos profissionais de saúde, especialmente quando o paciente recusa um tratamento que pode salvar sua vida. O princípio da beneficência, que impõe aos médicos o dever de agir em benefício do paciente, muitas vezes se choca com o princípio da autonomia, que exige que a vontade do paciente seja respeitada, mesmo quando suas decisões podem resultar em sua própria morte.
O caso das Testemunhas de Jeová exemplifica esse dilema bioético, pois a recusa de transfusões de sangue pode levar a consequências fatais. Nesse sentido, a decisão do STF procurou equilibrar essas duas dimensões éticas, permitindo que os pacientes se recusem a receber transfusões, mas exigindo que o Estado ofereça alternativas que possam, dentro das possibilidades, preservar a vida.
No mais, a decisão do STF contribui para a popularização de um instituto jurídico ainda insuficientemente difundido no Brasil: as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV). Trata-se de um documento em que o paciente manifesta previamente a sua vontade em relação a tratamentos de saúde que deseja ou não receber no futuro, como a transfusão de sangue.
Esse documento, que comumente é registrado em cartório, permite que a vontade do paciente seja respeitada mesmo em situações em que ele não possa expressá-la, como em casos de incapacidade temporária ou permanente. A possibilidade de registro das Diretivas Antecipadas de Vontade se alinha à crescente valorização da autonomia individual nas decisões de saúde, proporcionando aos pacientes um mecanismo formal para garantir que suas convicções sejam respeitadas mesmo diante de situações críticas.
O equilíbrio da decisão
Em suma, a decisão do STF, de reconhecer o direito das Testemunhas de Jeová de recusarem transfusões de sangue em consagração de sua fé e de exigir que o Estado ofereça tratamentos alternativos pelo SUS, é um avanço importante na proteção das liberdades individuais no Brasil. Ao mesmo tempo, a decisão traz desafios éticos, jurídicos e práticos que exigem um cuidadoso equilíbrio entre o respeito às convicções religiosas, a proteção da vida e a viabilidade de implementação dessas medidas no sistema de saúde pública.
A ponderação feita pelo STF, embora confirme a tendência ativista da corte, que não hesita em avançar em domínios pouco ou nada explorados por Legislativo e Executivo, demonstra o compromisso da corte com a efetivação dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que busca soluções que preservem a dignidade e a vida dos cidadãos brasileiros.
[1] Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/testemunhas-de-jeova-tem-direito-de-recusar-procedimento-que-envolva-transfusao-de-sangue-decide-stf/. Acesso em 26/09/2024.
[2] Aqui e alhures, trato o ativismo judicial como decorrência lógica (quase inevitável) do constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo), em cujas constituições é inserido um extenso rol de direitos fundamentais autoaplicáveis, ou seja, que independem de uma atuação legislativa ulterior do Parlamento. Sem adentrar em juízos de valor sobre o conteúdo das decisões provenientes do ativismo judicial, é sempre importante registrar o desequilíbrio que tal prática geralmente promove na relação entre os Poderes constituídos, gerando crises institucionais de difícil resolução.
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