Quanto vale a leitura do inquérito em plenário?
28 de setembro de 2024, 8h00
Através do movimento de mudança de posicionamento jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça afetou ao rito do recurso especial repetitivo o Tema nº 1.260, cuja delimitação da controvérsia era definir “a) se, nos termos do artigo 155 do CPP, a pronúncia não pode se fundamentar exclusivamente em elementos colhidos durante o inquérito policial” (primeira parte).
De fato, vem ocorrendo uma guinada da jurisprudência pela aplicação do referido dispositivo ao procedimento do júri [1]. Porém, há resistência a esse entendimento, sendo a mais incisiva delas no sentido de que o campo probatório não está concluído ao se pronunciar o acusado [2]. Portanto, a existência de uma etapa de instrução na sessão do júri é tida como uma possibilidade/necessidade de mudança no estado das provas após a pronúncia, o que afastaria a incidência do artigo 155 do CPP nesta decisão.
Em primeira nota, deve-se apontar que qualquer decisão judicial deve estar submetida ao efetivo contraditório. Logo, não haveria ressalva à decisão de pronúncia, ainda que ocorra uma segunda etapa probatória perante o juízo natural da causa no procedimento do júri. Mas, para ratificar a necessidade da observância sobre subterfúgios epistêmicos nessa seara, foi realizada pesquisa empírica com análise documental que partiu de mais de 1.500 processos de júri do Tribunal de Justiça do Ceará [3]. Buscou-se analisar se há nova base probatória para a condenação produzida após a pronúncia.
Examinou-se a produção probatória na instrução em plenário no Tribunal do Júri do Ceará para identificar se novas provas para a condenação são acrescentadas aos elementos de informação e às provas existentes até a pronúncia, alcançando o juízo por jurados.
Comparando-se a instrução nas duas fases do júri, procuraram-se as novas fontes de prova produzidas na sessão de julgamento. Como o foco ocorreu sobre as provas identificadas em plenário (vítimas, testemunhas ou declarantes), foram apuradas as pessoas que não haviam prestado depoimento na primeira fase.
Na exploração dessas oitivas, considerando a aptidão para interferir em um desfecho condenatório, foram identificadas aquelas relativas a: materialidade, autoria, tipicidade, ilicitude, culpabilidade ou elementares do delito, que não estivessem nas provas colhidas exclusivamente na primeira fase do júri.
Com isso, identificou-se como a valoração probatória na pronúncia repercute na condenação pelos jurados, já que, antes do julgamento pelo Conselho de Sentença, a pronúncia é o último escrutínio judicial do conjunto probatório e a instrução em plenário é a última oportunidade processual de alterá-lo.
Verificou-se que o conjunto de provas para a formação da decisão pelos jurados é formado, basicamente, antes do plenário, possuindo o mesmo conteúdo daquele existente na fase da pronúncia. Portanto, a pronúncia com observância ao artigo 155 do CPP é o filtro constitucional para que as condenações pelo Conselho de Sentença não tenham fundamento exclusivo no inquérito policial, sob pena de violação ao contraditório e de falibilidade do veredicto.
Além disso, a verificabilidade da aplicação do referido dispositivo não pode ser postergada para a fase de julgamento em plenário, já que não se observa a justificação explícita para a formação da decisão pelos jurados e o mérito da decisão soberana não pode ser reformado, em regra, por magistrados togados.
Apelações
Ao se analisar na pesquisa empírica como o Tribunal de Justiça do Ceará lida com a natureza da base probatória (se elemento informativo ou prova), foram investigadas decisões colegiadas que conheceram de apelações que asseveram que a condenação dos jurados fora manifestamente contrária à prova dos autos.
O tribunal deu provimento a apenas 6% dessas apelações defensivas que alegaram que a condenação pelos jurados fora embasada unicamente no inquérito policial. Apesar da aplicação de variantes diferentes, ainda se pode considerar razoável esse percentual em comparação ao diminuto resultado de 1% dentre 92 apelações defensivas com base no mesmo artigo 593, III, d, do CPP que foi provido no TJ/RJ. Esse achado derivou de pesquisa empírica aplicada sobre processos de júri que retornaram desse tribunal para a primeira instância no III Tribunal do Júri e no IV Tribunal do Júri da comarca do Rio de Janeiro (RJ) [4].
Ainda no Ceará, identificou-se que 16% dos acórdãos foram inadequados na temática investigada, pois não especificaram a origem do que seria a “prova dos autos” ou indicaram exclusivamente o inquérito policial como fundamento. Embora possa parecer uma taxa relativamente baixa, esse desenho na segunda instância resulta em forte impacto negativo na observância ao artigo 155 do CPP. O tribunal, além de ser o último juízo que analisa fatos e provas, é a instância de adequação de medidas indevidas tomadas no primeiro grau (tal como se constatou na valoração probatória indevida aplicada em diversas pronúncias analisadas).
Sem a individualização da natureza do que sustenta um julgamento, impede-se a verificabilidade da observância efetiva ao contraditório [5] sob o viés impositivo do artigo 155 do CPP.
O tribunal cearense também não tratou devidamente da matéria na construção das ementas, já que nestas não se indicou a natureza da base probatória em 81% dos casos. Além disso, refere-se à fonte probatória por meio de termos genéricos, que não individualizam se o tribunal está se lastreando no inquérito policial ou na instrução judicial.
Surpreende, ainda, que todos os acórdãos foram decididos por unanimidade, sem qualquer voto divergente [6] ou debate entre os julgadores. Em mais uma infringência ao contraditório [7], silencia-se a deliberação colegiada e se abrem caminhos para julgamentos mal fundamentados e acríticos.
A atecnia no manuseio da base probatória foi emblemática em um caso em que o acusado foi levado a júri a partir de uma pronúncia que apresentou fundamento contextualizado no conteúdo investigativo. Assim seguiu o fundamento da pronúncia: “Outrossim, muito embora tais informações não tenham sido confirmadas na fase instrutória judicial, uma vez que neste momento processual vigora o princípio do in dubio pro societate, entendo que os mencionados elementos de informação são suficientes para extrair indícios suficientes de autoria, na forma preconizada no art. 413, caput, do CPP.”
Na sessão do júri, ocorreu instrução, porém não houve nenhuma nova fonte de prova, já que em plenário foram ouvidas as mesmas pessoas que já haviam sido inquiridas na primeira fase do júri, sem a força probatória indicativa da responsabilização penal (durante esta fase do procedimento). Condenado o acusado, a defesa interpôs apelação sob o fundamento de que a condenação fora embasada com elementos informativos exclusivamente colhidos pelo inquérito policial.
O tribunal cearense asseverou que havia base para a condenação tanto na fase inquisitorial, quanto na judicial. Até mesmo na ementa, destacou-se que o fundamento da decisão se encontra na instrução realizada em juízo. Uma visualização superficial do processo poderia conduzir à conclusão de que esse caso contraria o achado da pesquisa sobre a perpetuação da delimitação da bagagem probatória da pronúncia ao plenário.
Entretanto, verifica-se o oposto através de uma exploração acurada do conteúdo decisório. No inteiro teor do acórdão, ao tratar da necessidade de a condenação se fundamentar em provas, afirmou-se o que segue [8]:
“Inobstante não se admita a prolação de um decreto condenatório fundamentado exclusivamente em elementos informativos colhidos durante o inquérito policial, os jurados podem deles se utilizar para reforçar seu convencimento, desde que corroborados por provas produzidas durante a instrução processual ou desde que essas provas sejam repetidas em juízo, exatamente como ocorreu no caso concreto, em que o depoimento extrajudicial do falecido comparsa do acusado foi lido em plenário.”
Ao analisar o conjunto probatório do processo, em busca de provas a embasar a condenação, o tribunal abordou a possibilidade de repetição em juízo dos elementos de informação como meio de cumprimento ao artigo 155 do CPP. Entretanto, enquadrou nessa hipótese a leitura de depoimento policial na sessão do júri, sendo este o único fundamento condenatório apresentado na decisão. Acontece que a mera leitura de um depoimento em plenário não judicializa a evidência, que continua sendo apenas um elemento de informação, cujo conteúdo não pode ser isoladamente considerado verdadeiro, na medida em que gera verdadeira prática subversiva ao método do contraditório e uma constatação através de desvio epistêmico [9].
A leitura em plenário é apenas a reprodução do elemento informativo, que mantém a sua estrutura construída sem dialeticidade. Um depoimento policial lido na sessão do júri não permite o confronto [10] de impropriedades ou omissões. Sem a possibilidade de antítese, não se evita o viés de confirmação [11], então não se configura uma produção de prova, de modo que o depoimento se mantém inadequado a servir de fundamento exclusivo a um julgamento condenatório.
O que é possível constatar através da pesquisa empírica é que, independentemente da ausência de inovação na base probatória para a condenação na instrução em plenário, recai na pronúncia o controle sobre a existência de fundamento não exclusivo em elementos de informação. E mais, a extração desses elementos, a partir do recebimento da denúncia, deveria ser um norte necessário ao processo justo, na medida em que subterfúgios ao método do contraditório, cotidianamente, ocorrem como observado no caso em referência.
[1] No STJ: AgRg no HC n. 861.205/SC, relatora: ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em: 26/08/2024, publicado em: 29/08/2024; AgRg no HC n. 676.342/RS, relator: ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em: 26/08/2024, publicado em: 28/8/2024.
No STF: RHC 221003, relator: ministro Dias Toffoli, decisão monocrática, julgado em: 13/12/2022, publicado em: 19/12/2022; HC 222919, relatora: ministra Cármen Lúcia, decisão monocrática, julgado em: 06/12/2022, publicado em: 12/12/2022; HC 220293, relator: ministro Luiz Fux, decisão monocrática, julgado em: 20/09/2022, publicado em: 22/09/2022; HC 217881, relator: ministro Roberto Barroso, decisão monocrática, julgado em: 01/08/2022, publicado em: 03/08/2022; AgRg no HC/212550, relator: ministro Nunes Marques, Segunda Turma, Sessão Virtual de 29/04/2022 a 06/05/2022; Rcl 67844, relator: ministro Alexandre de Moraes, julgado em: 15/06/2024, publicado em: 18/06/2024; HC 243772, relator: ministro Cristiano Zanin, julgado em: 01/08/2024, publicado em: 02/08/2024.
[2] Nesse sentido é a posição colegiada da Primeira Turma do STF: AgRg no HC 173.696/RS, relator: ministro Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em: 13/09/2019, DJe-209 divulgado em: 24/09/2019, publicado em: 25/09/2019. Por outro lado, após o novo posicionamento da Segunda Turma, as decisões monocráticas mais recentes dos ministros que compõem esse colegiado são em sentido contrário, conforme a nota acima.
[3] ALEXANDRE, Ana Raisa Farias Cambraia. A produção probatória no juízo por jurados no Ceará. Dissertação de Mestrado em Direito e Políticas Públicas. Brasília: UniCEUB, 2024.
[4] SAMPAIO, Denis; DAMOUS, Igor. Análise quantitativa e qualitativa da apelação fundada na decisão manifestamente contrária à prova dos autos: a identificação empírica da ausência de isonomia processual entre acusação e defesa. In: PASSADORE, Bruno de Almeida; COSTA, Renata Tavares da; OLIVEIRA, Vitor Eduardo Tavares (Org.). O tribunal do júri e a Defensoria Pública. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 179.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Traduzido por Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flavio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 498.
[6] Segundo Conrado Hübner Mendes, a deliberação tem sido considerada, para a teoria política democrática, um valioso componente da tomada de decisões coletivas. A atividade deliberativa pressupõe interação e cooperação. Não se trata de uma atividade isolada. E, tampouco, de simplesmente tomar uma decisão em grupo (tradução nossa). No original: “Deliberation features no less than a respectful and inclusive practice of reasoning together while continuously seeking solutions for decisional demands, of forming your position through the give-and-take of reasons in the search of, but not necessarily reaching, consensus about the common good. Thus, participants of deliberation, before counting votes, are open to transform their preferences in the light of well-articulated and persuasive arguments” (MENDES, Conrado Hübner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 14).
[7] VALADARES, André Garcia Leão Reis. A composição do órgão colegiado e seus efeitos na tomada de decisão. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Brasília, v. 8, n. 2, pp.719-739, 2018, p. 724.
[8] CEARÁ. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0004871-39.2013.8.06.0143. Apelante: Reginaldo Rodrigues da Silva. Apelado: Ministério Público do Estado do Ceará. Relatora: Maria Edna Martins. Fortaleza, 9 de julho de 2019. Disponível em: https://esaj.tjce.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=3234256&cdForo=0. Acesso em: 10 dez. 2022.
[9] Tema que já abordamos em SAMPAIO, Denis. A Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. 1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2022, p. 264.
[10] “56. Compte tenu de ce qui précède, la Cour estime que le caractère déterminant des dépositions de C.C., en l’absence de confrontation avec le requérant en audience publique, emporte la conclusion que les juridictions internes, aussi rigoureux qu’ait été leur examen, n’ont pas pu apprécier correctement et équitablement la fiabilité de cette preuve.
- Par conséquent, considérant l’équité de la procédure dans son ensemble, la Cour juge que les droits de la défense du requérant ont ainsi subi une limitation incompatible avec les exigences d’un procès équitable. Partant, il y a eu violation de l’article 6 §§ 1 et 3 d) de la Convention” (CEDH. Corte Europeia de Direitos Humanos: Caso Cafagna v. Itália, 2018. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22001-177432%22]}. Acesso em: 08 jul. 2022).
[11] BEX, Floris J. Arguments, stories and criminal evidence: a formal hybrid theory. Law and Philosophy Library, v. 92. United Kingdom: Springer, 2011, p. 99.
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