Opinião

Compartilhamento de dados sigilosos em investigações criminais

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28 de setembro de 2024, 7h03

O compartilhamento de dados sigilosos por órgãos como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e a Receita Federal para fins de persecução penal sem autorização judicial prévia tem sido tema de dissenso entre as duas turmas do Supremo Tribunal Federal.

Cristiano Zanin 2024

Ministro Cristiano Zanin, do STF

Essa divergência impõe aos atores processuais — principalmente à advocacia, que carrega o ônus de salvaguardar os direitos individuais de investigados e processados — profundos questionamentos sobre os limites da atuação estatal no acesso a informações privadas e sua conformidade com os direitos constitucionais, especialmente a proteção da privacidade e o sigilo de dados.

Sobre tal questão, a 1ª Turma do STF — em reclamação de relatoria do ministro Cristiano Zanin — decidiu, recentemente, que é lícito o compartilhamento de dados sigilosos obtidos por órgãos de inteligência, como o Coaf, diretamente com o Ministério Público sem autorização judicial prévia, desde que essas informações sejam obtidas de maneira formal e dentro dos limites do procedimento administrativo​.

Referido entendimento tem como lastro alguns precedentes do STF, como o Tema 990 da Repercussão Geral, que permitiu o compartilhamento dessas informações com órgãos de persecução penal sem necessidade de intervenção judicial, resguardando o sigilo e assegurando posterior controle jurisdicional​.

Risco de fishing expedition

Em contrapartida, a 2ª Turma do STF, em análise de casos semelhantes, tem, corretamente, adotado posição mais restritiva.

No julgamento do Recurso Extraordinário 1.393.219, o ministro Edson Fachin indicou que o compartilhamento de dados fiscais e financeiros sigilosos diretamente ao Ministério Público, sem autorização judicial, viola os direitos constitucionais à privacidade e ao sigilo de dados. Fachin reforçou a necessidade de prévia autorização judicial nesses casos, destacando que o acesso direto a esses dados poderia configurar uma fishing expedition, ou seja, uma investigação desproporcional e sem critérios claros, o que é incompatível com o devido processo legal.

O entendimento da 1ª Turma, que legitima o compartilhamento de dados sigilosos sem autorização judicial, preocupa. Não se fala, aqui, sobre as fundamentais garantias de privacidade e inviolabilidade, salvaguardadas pela Constituição, em seu artigo 5º, incisos X e XII. Pior do que isso: trata-se de problema que afronta o direito de defesa, na medida em que a ausência de controle judicial prévio abre margem para abusos na persecução penal.

Tema 990 e a Representação Fiscal para Fins Penais

A falta de uniformidade nas decisões do STF, especialmente quando há decisões antagônicas entre suas turmas, contribui para um cenário de incerteza legal e vulnerabilidade de direitos individuais. Além disso, a possibilidade de os órgãos de investigação utilizarem tais dados sem uma justificativa adequada pode ser interpretada como uma invasão desproporcional à esfera privada dos indivíduos.

Aqui, de largada, é fundamental apontar o entendimento do próprio ministro Edson Fachin, que deu conta de afastar a incidência do Tema 990 de Repercussão Geral, uma vez que tal julgado trata especificamente da Representação Fiscal para Fins Penais, instituto previsto legalmente, que permite à Receita Federal compartilhar, de ofício, informações fiscais com os órgãos de investigação, quando detectados indícios de ilícitos tributários ou previdenciários.

Mencionado compartilhamento é feito após a conclusão de um procedimento administrativo regular, e não mediante uma solicitação direta do Ministério Público. Dito de outro modo, o entendimento já consolidado pelo Supremo Tribunal Federal é no sentido autorizar a troca de informações no contexto de investigações formais, sem abrir margem para que a acusação possa solicitar dados sigilosos diretamente, sem a devida cautela judicial.

Spacca

Em suma, e rechaçando o entendimento da 1ª Turma do STF, é fundamental destacar que o Tema 990 não autorizou o Ministério Público a obter dados fiscais por requisição direta à Receita Federal. O acórdão reforça que o compartilhamento de informações deve seguir procedimentos rigorosos e respeitar a legalidade, mantendo a proteção ao sigilo e à privacidade garantidos constitucionalmente. O controle jurisdicional sobre tais atos é imprescindível para evitar abusos e garantir o equilíbrio entre a eficácia investigativa e a proteção de direitos fundamentais.

Importância da proporcionalidade e de parâmetros para compartilhamentos

O posicionamento da 2ª Turma, que exige autorização judicial prévia para o acesso a dados sigilosos, está mais alinhado com os princípios constitucionais de proteção à privacidade e à segurança jurídica. O controle judicial é um mecanismo fundamental para evitar abusos e assegurar que o acesso a informações privadas seja feito de maneira proporcional e justificada. Ao exigir autorização judicial, a 2ª Turma reforça a importância de um crivo objetivo e imparcial antes que dados sensíveis sejam utilizados em investigações criminais a esmo.

Adiciona-se: o entendimento constitucionalmente amparado garante que o processo investigatório respeite o princípio da proporcionalidade, impedindo que o Ministério Público ou as polícias conduzam investigações exploratórias sem limites definidos e em ausente paridade de armas – ainda que se suponha que o inquérito policial e os procedimentos investigatórios criminais sejam espaço para mitigação de garantia por sua natureza supostamente inquisitória. A necessidade de autorização judicial serve como um filtro para assegurar que o acesso a dados sigilosos seja feito com base em indícios claros e não em meras ilações.

A divergência entre as duas turmas do STF sobre essa questão também evidencia a importância de uma pacificação da jurisprudência. A falta de uniformidade nas decisões do STF sobre o tema cria insegurança jurídica, especialmente em casos que envolvem direitos fundamentais, como a privacidade e o sigilo de dados. Para garantir a estabilidade e a previsibilidade das decisões judiciais, é essencial que o Plenário do Supremo Tribunal Federal delibere sobre o tema e estabeleça uma posição consolidada.

Ainda que se suponha sobre a desnecessidade de autorização judicial para o compartilhamento de tão sensíveis informações, fundamental que sejam estabelecidos parâmetros e pressupostos para tanto. Desta forma, garante-se a higidez dos elementos de informação obtidos, bem como que estes sejam compartilhados respeitando o mínimo necessário da integridade e dos direitos do investigado.

Em igual sentido, o regramento sobre a temática evitará compartilhamentos açodados e feitos de forma equivocada, como o já combatido por entendimento do Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso em Habeas Corpus nº 119.297/SC. Trata-se de precedente a ser observado tanto pela Corte Suprema como pelo legislativo em caso de imposição de regramento sobre o tema.

Dito de outra maneira, o Tema 990 do STF deve ser lido e compreendido à luz da Súmula Vinculante nº 24, uma vez que não é autorizado o compartilhamento “indiscriminado, açodado e plenamente discricionário de dados sigilosos pela Receita Federal ao Ministério Público”.

A defesa da exigência de autorização judicial prévia para o compartilhamento de dados sigilosos é medida necessária para proteger os direitos fundamentais e garantir a plena defesa sem artimanhas investigativas genéricas.

O controle judicial assegura que o acesso a informações privadas seja feito de maneira proporcional e em conformidade com os princípios constitucionais. Caso haja, de fato, motivos que levem ao deferimento de tão extrema medida como a invasão à privacidade, não haverá prejuízos à investigação. Não bastando, não há perigo com a demora em obtenção de tais dados, uma vez que armazenados pela própria autoridade que os produziu, como Coaf e Fisco. Por fim, a uniformização da jurisprudência pelo Plenário do STF é urgente para evitar incertezas e garantir a aplicação correta da Constituição.

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