Paradoxo da Corte

Centenário da obra prima de Piero Calamandrei: La Cassazione Civile

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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27 de setembro de 2024, 8h00

Com apenas 26 anos, em 1915, Piero Calamandrei, após se aperfeiçoar em processo civil com Chiovenda na Universidade de Roma, inscreveu-se no concurso para professor extraordinário à cátedra na Universidade de Pádua.

Este certame acadêmico tornou-se célebre, porque Francesco Carnelutti também se inscrevera. Carnelutti, exatamente dez anos mais velho, já livre-docente de direito comercial na própria Universidade de Pádua, professor extraordinário de direito comercial na Universidade de Catânia, e àquela altura autor de mais de 50 títulos, entre livros e artigos, foi o primeiro classificado, conquistando a vaga. Calamandrei ficou em segundo lugar num concurso com seis candidatos.

Pouco tempo depois, a demonstrar a sua maturidade intelectual e o seu talento de jurista, Calamandrei dedicou ao seu mestre de processo civil Carlo Lessona, La Cassazione civile, em dois tomos de fôlego, estampados em 1919 e 1920.

Esta obra constitui um monumental tratado — sem dúvida, a Grande Obra, a Masterpiece de Calamandrei —, contendo completa reconstrução histórica do instituto e, no segundo volume, a respectiva arquitetura  dogmática, que culmina com uma importante proposta teórica de lege ferenda.

Ideia central de Calamandrei

Com efeito, com base nas fontes jurídicas do passado e numa ampla análise de comparação jurídica, que passa pelos tribunais de cassação francês, alemão e, ainda, de outros países, a ideia central de Calamandrei é a denominada “função nomofilácica”, reservada, pela sua própria natureza, à Corte de Cassação, cujo precípuo escopo é o de garantir a uniformidade da jurisprudência. Daí, a crítica veemente de Calamandrei contra a regionalização de tribunais de cassação (extraordinária monstruosidade judiciária), modelo que então existia na Itália.

Na verdade, a tese de Calamandrei era ainda mais restritiva, porquanto, defendia ele a exclusão do controle, pela Corte de Cassação, dos errores in procedendo, que em nada colaborava para a uniformização da jurisprudência, e, ainda, pela mesma razão, dos errores in iudicando, a menos que o recurso tivesse como fundamento um possível equívoco de interpretação de direito objetivo, ou seja, a competência da Cassação deveria restringir-se apenas e tão-somente para conhecer e julgar matéria estritamente de direito (giuridizione di diritto).

José Rogério Tucci

Calamandrei, antevendo um gravíssimo problema futuro que até hoje perdura, não apenas na experiência jurídica italiana, justificava a consistência de sua proposta na urgente necessidade de diminuir o excessivo número de recursos de cassação, para assegurar, de modo particular, a qualidade dos julgamentos do tribunal.

Proposição acolhida

Seja como for, é de aduzir-se que, ao menos em parte, tal proposição não demorou muito para ser acolhida. Em 1923, pelo Regio Decreto n. 601, a Corte de Cassação italiana foi centralizada.

Edoardo Ricci, escrevendo sobre a contribuição científica de Calamandrei, e, em especial, sobre a Cassazione civile, anotou que, “do ponto de vista dos fins e da função deste instituto, tudo quanto pensamos ou podemos pensar nos vem de Calamandrei; se se fala de ‘nomofilaquia’ e de ‘unificação da jurisprudência no espaço’, é obra de Calamandrei; se aprendemos a não confundir a unificação da jurisprudência ‘no espaço’ com a sua fixação no tempo, percebendo que, na realidade, a unificação ‘no espaço’ pode racionalizar a evolução na interpretação, isto é, ainda uma vez, devido a Calamandrei.

E também os conceitos sistemáticos por ele elaborados, entre os quais aquele de ‘ação de impugnação’ em contraposição a ‘gravame’ em senso estrito, constituem insubstituíveis pontos de referência do respectivo estudo…” (Calamandrei e la dottrina processualcivilistica del suo tempo, Piero Calamandrei – Ventidue saggi su un grande maestro (obra coletiva), Milano, Giuffrè, 1990, p. 97).

Esta famosa obra foi vertida para o espanhol por Santiago Sentís Melendo e publicada, em Buenos Aires, pela Editorial Bibliográfica, em três volumes, no ano de 1945.

Importa observar que ainda hoje constitui bibliografia de referência aos estudiosos que se dedicam à análise da função dos tribunais superiores, da querela nullitatis e da ação rescisória.

Homenagem ao centenário

Pois bem, para minha satisfação, acaba de vir a lume uma importante coletânea, em homenagem ao centenário da obra Cassazione civile, publicada originariamente, em 2021, na Espanha, com o título La casación hoy, cien anos después de Calamandrei, e agora aqui no Brasil, na versão inglesa, intitulado Revisiting Cassation and Supreme Courts (100 Years after Calamandrei’s Masterpiece), numa primorosa edição da prestigiosa editora Direito Contemporâneo, sob a segura coordenação do processualista espanhol Jordi Nieva Fenoll, da culta professora Teresa Arruda Alvim e do jovem jurista peruano Renzo Cavani.

Este livro contém nove interessantes artigos, destacando-se dentre eles as contribuições do saudoso professor Michele Taruffo, de Sergio Chiarloni, e da própria professora Teresa Arruda Alvim, que abordam, sob diferentes perspectivas, o papel institucional das Cortes de Cassação na Europa, com a precípua finalidade de unificar a interpretação e a aplicação do direito, destacando-se a relevância dos precedentes judiciais, bem como da técnica de filtragem dos recursos que ascendem aos tribunais superiores.

Não é preciso dizer que há praticamente unanimidade entre todos os juristas, autores dos respectivos artigos, de que é imperiosa a limitação ao acesso a tais cortes de justiça, dada a premente necessidade de reduzir o número excessivo de impugnações, a atender a aspiração de outorgar às partes litigantes tutela jurisdicional tanto quanto possível tempestiva.

Considerando, por fim, a importância e a atualidade dos temas examinados, não tenho dúvida em recomendar a leitura desta coletânea aos estudantes e aos estudiosos da ciência processual civil.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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