Garantias do Consumo

Funções do mínimo existencial no contexto do superendividamento do consumidor

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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25 de setembro de 2024, 8h00

O conceito de mínimo existencial desempenha um papel crucial na proteção da dignidade do consumidor em situações de superendividamento. O mínimo existencial transcende uma definição única e engloba a parcela da renda do consumidor que deve ser protegida para garantir suas necessidades básicas e o acesso a bens e serviços essenciais. Sua importância reside em garantir a dignidade da pessoa humana, impedindo que o indivíduo seja privado do mínimo necessário para viver com dignidade, mesmo em situações de endividamento.

A Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/21) trouxe o conceito de mínimo existencial para o centro do debate, determinando sua regulamentação. A pedido da Febraban, logo após o aparecimento na lei da expressão “mínimo existencial”, foi incluída a expressão “nos termos da regulamentação”.

Em audiência pública realizada pelo Ministério da Justiça antes da regulamentação do mínimo existencial, das 25 autoridades que se manifestaram oralmente, ao menos 20 defenderam categoricamente que a regulamentação não deveria adotar um valor fixo, principalmente em razão da realidade socioeconômica diversificada que existe em nosso país.

O Brasil é um país com grande desigualdade social e econômica, com realidades muito distintas entre as regiões e mesmo dentro de uma mesma cidade. Um valor fixo para o mínimo existencial não seria capaz de atender às necessidades básicas de todos os cidadãos, desconsiderando as particularidades de cada indivíduo e família, como custo de vida regional, composição familiar, faixa etária, condições de saúde, entre outros fatores relevantes.

Ademais, o conceito de mínimo existencial é dinâmico e evolui ao longo do tempo, acompanhando as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas. O que era considerado essencial para uma vida digna há alguns anos pode não ser mais suficiente hoje. Fixar um valor implicaria em desatualizações constantes, tornando a lei obsoleta e injusta.

Desconsiderando a grande maioria das autoridades e estudiosos que se manifestaram na audiência pública no Ministério da Justiça, o Decreto Presidencial 11.150/2022, posteriormente alterado pelo Decreto 11.567/2023, definiu o mínimo existencial como R$ 600, valor este alvo de críticas por ser considerado insuficiente para garantir uma vida digna. A crítica reside no fato de que R$ 600 se mostra insuficiente para cobrir as despesas básicas de uma família, como alimentação, moradia, saúde e educação, não garantindo uma vida digna e tornando a lei ineficaz em sua principal função: proteger o consumidor superendividado.

Há, atualmente, duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e uma ADPF (Descumprimento de Preceito Fundamental) em relação ao Decreto 11.150/2022 no STF.

Enquanto o STF não se manifesta sobre a (in)constitucionalidade do decreto em questão, o magistrado, ao se deparar com uma ação de repactuação de dívidas, poderá exercer o controle difuso de constitucionalidade, afastando, por ora, a aplicação da limitação do decreto, analisando o caso concreto, tendo o poder e o dever de assegurar a proteção do consumidor e garantir que o valor do mínimo existencial seja suficiente para atender às suas necessidades básicas.

 

Alguns tribunais, sensíveis ao tema, não tem aplicado a regulamentação do decreto do mínimo existencial, justamente por considerar o valor de R$ 600 insuficiente para a manutenção digna do consumidor, tornando a lei inefetiva.

“A preservação do mínimo existencial foi incluída como direito básico do consumidor pela Lei nº 14.181/2021 (Lei do Superendividamento), que entrou em vigor em 2 de julho de 2021, alterando o Código de Defesa do Consumidor para disciplinar o fornecimento de crédito responsável e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Em 26 de julho de 2022, foi editado o Decreto n. 11.150/2022, que regulamenta a Lei do Superendividamento indica, após modificação, irrisórios 600 reais como o valor que conferiria existência digna ao superendividado. (…) Apesar da sensível diferença entre os critérios propostos para a fixação de um valor que expresse o mínimo existencial, os que se adequam à teleologia do entendimento do STJ sobre a preservação da vida digna por meio da proteção do valor de natureza alimentar para a provisão das necessidades básicas de uma família é o do salário necessário para isso, portanto o valor indicado pelas pesquisas tradicionalmente feitas pelo Dieese, valor esse corroborado normativamente na resolução da Defensoria Pública sobre a necessidade de assistência judiciária gratuita. Fixo, portanto, o valor relativo ao mínimo existencial alimentar em cinco salários-mínimos, atualmente correpondentes a R$7.060,00 (sete mil e sessenta reais), valores portanto impenhoráveis.”  (TJ-DF 0718027-81.2024.8.07.0000, voto do relator: Roberto Freitas Filho, 3ª Turma Cível, data de publicação: 10/5/2024)

Ainda que não se exerça o controle difuso de constitucionalidade, é importante entender quais as funções que a regulamentação do mínimo existencial exerce. O mínimo existencial possui três funções principais no contexto brasileiro, especialmente em relação ao superendividamento do consumidor:

1. Parâmetro para a definição de superendividamento:

A Lei nº 14.181/21, conhecida como Lei do Superendividamento, define o superendividamento como a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”. Nesse sentido, o mínimo existencial funciona como um elemento essencial na própria definição legal de superendividamento, estabelecendo um limite para a cobrança de dívidas e garantindo que o consumidor não seja privado dos recursos mínimos para sua subsistência digna.

2. Orientação para concessão responsável de crédito:

O princípio do mínimo existencial, intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana, transcende a mera definição de superendividamento e serve como um importante parâmetro para a concessão responsável de crédito. As instituições financeiras, ao analisar a concessão de crédito, devem considerar a capacidade do consumidor de arcar com a dívida sem comprometer seu mínimo existencial. Isso significa que a análise de crédito deve ir além da simples comprovação de renda, levando em conta as despesas básicas do consumidor para garantir que o crédito concedido não o leve a uma situação de superendividamento.

3. Limitação ao poder dos credores na repactuação de dívidas:

Em situações de superendividamento, o mínimo existencial atua como um limitador do poder dos credores na repactuação de dívidas. Durante o processo de repactuação, o mínimo existencial do devedor deve ser preservado. Isso significa que o plano de pagamento negociado não pode comprometer os recursos mínimos necessários para que o consumidor e sua família mantenham uma vida digna, garantindo o acesso a bens e serviços essenciais como alimentação, saúde, educação e moradia.

A inserção da expressão “nos termos da regulamentação”, após a expressão “mínimo existencial” na lei foi uma exigência da Febraban, justamente porque ela queria ter uma certeza, através de um patamar objetivo, de que não estaria ofendendo o princípio do crédito responsável quando da concessão do crédito. Ou seja, a finalidade da regulamentação do mínimo existencial seria permitir que as concedentes de crédito tivessem uma segurança na avaliação da capacidade de pagamento do consumidor na concessão do crédito, através de um valor fíxo (e, portanto, objetivo), de modo a respeitar o princípio do crédito responsável.

Assim, a restrição da regulamentação do decreto somente pode aplicado para a concessão do crédito (para o fornecedor ter conhecimento da capacidade de pagamento do consumidor na hora da concessão do crédito, de modo a não sofrer as sanções do artigo 54-D, parágrafo único), mas jamais para a definição de quando o consumidor está superendividado ou para elaboração do plano de pagamento na repactuação das dívidas.

Para a configuração do consumidor superendividado e a quantificação do mínimo existencial, para efeitos de tratamento (artigo 104-A, B e C), será o caso concreto é que definirá os valores para manutenção da vida digna do consumidor e de sua família.

O Enunciado nº 40 do Fonamec atesta nesse sentido:

“Na pactuação do plano de pagamento das dívidas do consumidor superendividado deverá ser respeitado o mínimo existencial, considerando a situação concreta vivenciada pelo consumidor e sua entidade familiar, de modo a não comprometer a satisfação de suas necessidades básicas, observados os parâmetros estabelecidos no artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República.”

A justificativa apresentada para este enunciado foi a seguinte:

“A leitura do Decreto n.11.150, de 26 de julho de 2022, confrontou o superprincípio da dignidade da pessoa, cuja função precípua era conferir-lhe unidade material. O princípio da dignidade atua como fundamento à proteção do consumidor superendividado e criador do direito ao mínimo existencial, cuja previsão infraconstitucional foi sedimentada pelo Poder Legislativo na Lei nº 14.181/21, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, instalando um microssistema de crédito ao consumo. Para além da redação do regulamento determinado no Código do Consumidor atualizado, artigo 6º, XI, a eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, para a preservação da dignidade da pessoa, era avanço doutrinário e jurisprudencial pátrios já reconhecidos, a partir da previsão do art. 5º , parágrafo 1º, da CF/88. Afinal, a garantia de 25% do salário mínimo a qualquer família brasileira, sem considerar a situação socioeconômica e individualizar as necessidades que comportam as despesas básicas de sobrevivência, não representa interpretação harmônica com os valores constitucionais. Assim, resta evidente a possibilidade de composição sem incidência do Decreto nº 11.150/22, em controle difuso de constitucionalidade.” (Obs: o valor do mínimo existencial foi alterado para R$ 600 em 2023)

Somente para exemplificação, veja caso real que aconteceu no estado do Espírito Santo:

No caso real acima ilustrado, mesmo a autora sendo descontado em valores maiores do que a integralidade do montante recebido mensalmente (assim, ela não dispõe de nenhum recurso para pagar o restante das dívidas e nem para sobreviver!) — o que demonstra claramente a sua situação de superendividamento — aplicando o decreto para configuração de superendividamento neste caso, considerando que vários empréstimos são consignados e que o montante destes ultrapassam o valor de R$ 600 [1], consideraríamos que esta consumidora não estaria superendividada e, o pior, não mereceria o tratamento destinado pela lei, o que seria um absurdo, atestando, assim, a ineficácia da lei.

Assim, por razões de justiça e visando atender à finalidade maior da lei (que é o tratamento do consumidor superendividado, restabelecendo sua dignidade), o magistrado deverá não aplicar o Decreto 11.150/2022 para definição de superendividamento, sob pena de esvaziamento da lei (por ineficácia) ou que, ao menos, limite sua aplicação para apenas a concessão do crédito.

 


[1] Isso porque o Decreto 11.150/2022, além de estipular o valor de R$ 600, retirou os valores do empréstimo consignado da análise do mínimo existencial.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, autor do livro Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (Editora Juspodivm, 2024).

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