Espetacularização da Justiça: decisões carregadas de ilegalidades
25 de setembro de 2024, 21h15
Dias atrás, foi publicado aqui nesta ConJur o artigo “Liberdade para Deolane“. Naquela ocasião, deixou-se muito claro que, embora a personagem que dava nome ao título fosse conhecida por seus milhares de seguidores, não havia por parte dos autores qualquer conhecimento de quem seria aquela personagem até então.

Muita polêmica se criou com a publicação do texto. Misturou-se alho com bugalhos. Aventou-se, por exemplo, que se estaria a defender a influencer, a sua inocência. Nada mais obtuso. O objeto da discussão eram as medidas cautelares diversas da prisão impostas contra ela e, também, a prisão preventiva. Temas que em nada se confundem com a inocência de Deolane.
O que se chamava a atenção naquele momento era justamente o modus operandi de atores do sistema de Justiça que decretaram a prisão sem qualquer fundamento legal. Prática infelizmente antiga e corriqueira nos tribunais do país, que mantêm no cárcere milhares de pessoas ao arrepio do que autoriza a lei processual penal e estabelece a Constituição, ao cravar em nosso país o princípio da não culpabilidade.
Houve, inclusive, quem lembrasse, em outras palavras, a célebre e atualíssima fala do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano: La justicia es como las serpientes, solo muerde a los descalzos.
Deve-se, contudo, tais críticas a uma má compreensão do texto e nenhuma intimidade, ou ao menos conhecimento, com o que se passa na Justiça Criminal em nosso país.
Sim. As serpentes picam os pés descalços, e a Justiça Criminal faz sofrer sobretudo os pobres, pretos e periféricos. Sempre as vítimas preferenciais do sistema de Justiça.
Garantias individuais
O que não deve ser ignorado é que justamente tal modo de se fazer justiça, ignorando conceitos, direitos e garantias individuais, seja de quem for, viola ainda mais o andar debaixo.
Um bom exemplo dessa prática, de combate à impunidade de poderosos por meio da violação direta ao texto constitucional afetar principalmente os alvos prediletos da Justiça Criminal, aconteceu quando a (inconstitucional) execução provisória da pena em malefício do réu foi validada.
Os cárceres, à época, superlotaram mais do que o lamentável usual, mas não por aqueles que a inconstitucionalidade aludida alegava perseguir.
E justamente é esse aspecto que se busca trazer ao se apontar que sim: a Justiça pernambucana volta à cena com mais descumprimento da lei processual penal e da Constituição ao ocupar todas as manchetes de jornal com a decretação da prisão do cantor Gusttavo Lima.

Sabe-se que o cantor está investigado na mesma operação que prendeu outros, também indiciados, ligados aos jogos de azar. Publicou-se em quase a totalidade dos meios de comunicação o decreto de prisão de Lima. Tal decisão estaria baseada por desrespeito à Justiça pernambucana, em razão de o cantor ter viabilizado a fuga à Europa de pessoas de seu relacionamento que estiveram com ele em uma festa no exterior.
E, ainda, que além de propagandear jogos ilegais, seria o cantor o detentor de parte de uma empresa ligada a jogos ilegais, não sem deixar de aduzir ser ele possuidor de vultosa dinheirama, o que também aos olhos do Judiciário justificaria a prisão. Constam, por fim, como fundamentos da prisão preventiva os malefícios dos jogos de azar às famílias brasileiras e o combate à impunidade.
No entanto, viajar com pessoas com quem se relaciona, antes mesmo de saber da ordem de prisão, ser detentor de sociedade cuja empresa pratica supostas atividades ilegais e possuir vultoso patrimônio não são motivos para prisão cautelar.
Espetacularização da Justiça
Com a intenção de aumentar um pouco mais o didatismo deste texto, observa-se que boa parte da população aplaude a espetacularização da atuação açodada e ilegal da Justiça. Isso não é novo. O palco da punição na humanidade é retratado em obras célebres como, por exemplo, a do filósofo francês Michael Foucault.
Essa preferência pelo castigo e o quanto lucram os grandes jornais já é conhecido. O estrago com esse tipo de mutualismo entre divulgação e voluntarismo judicial já alcança níveis epidêmicos há décadas em nosso país.
O que se está aqui novamente a problematizar neste artigo, e o que foi publicado há pouco, é justamente o fato de o Poder Judiciário criar requisito não previsto em lei para manter encarcerada pessoa tecnicamente inocente e ainda que não presente qualquer requisito exigido em lei para tal. A sempre mencionada presunção de inocência não é, apenas, uma presunção sobre a ocorrência de determinado fato, mas um dever de tratamento ao investigado e acusado.
Pena não pode ser adiantada com prisão preventiva
Em vista disso, alguns juristas optam por tratar o princípio constitucional pelo nome de estado de inocência. O status jurídico do investigado e acusado é inocente até o trânsito em julgado de sentença condenatória e, portanto, a pena não pode ser adiantada por meio da prisão preventiva, a qual depende sempre do preenchimento de requisitos legais e constitucionais para ser autorizada.
Não é demasiado lembrar que tudo isso ocorre em um país que já alcança a marca de mais de 200 mil presos provisórios. Essa lógica de prender antecipadamente para punir sem condenação esmaga toda uma geração de jovens pobres, pretos e periféricos e viabiliza o fortalecimento das facções criminosas, já definidas como máfias por diversos estudiosos do tema.
É disso que se trata. Prisões cautelares decretadas de forma ilegal e inconstitucional. São os pés descalços das vítimas preferenciais do sistema, mas é também o cantor, a influencer ou seja lá quem estiver na condição de vítima da antecipação ilegal da pena.
O assunto não é novo e a prática nefasta também é bastante antiga. Aliás, igualmente também não é de hoje o ódio a quem pense de forma contramajoritária. Mas o raciocínio é singelo: trata-se apenas de respeito aos princípios e garantias individuais, concebidos em nosso pacto político de 1988, de modo a reconhecer que foi uma decisão adotada por todos. E todos devem defendê-los, principalmente os versados no tema.
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