Território Aduaneiro

Tipicidade criminal da interposição fraudulenta de terceiros na importação

Autores

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

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  • Oswaldo Gonçalves de Castro Neto

    é conselheiro da 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) delegado do Brasil da International Federation of Freight Forwarders (Fiata) pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade de Valência pós-graduado em Comércio Exterior pelo IE da Unicamp pós-graduado e mestrando em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Lisboa. Advogado licenciado.

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24 de setembro de 2024, 8h00

O tema proposto neste artigo pode aparentar ser irrealizável, visto que a interposição fraudulenta de terceiros na importação é uma norma geral e abstrata e o Direito Penal não incide sobre abstrações, mas em fatos, situações reais.

No entanto, a experiência (referendada pela jurisprudência administrativa e judicial) nos mostra um tipo de fato e com condições históricas que se repetem por inúmeros julgados; condições estas que, com frequência ímpar, redundam em processos crime e condenações em penas privativas de liberdade.

Para entender essas condições históricas é necessário contextualizar.

Modalidades de importação e suas obrigações acessórias

Existem duas modalidades de importação no ordenamento jurídico nacional: importação direta e indireta (que se subdivide em importação por conta e ordem de terceiros e importação por encomenda).

Na importação direta um importador por meio de recursos próprios traz mercadorias para si, para compor seus estoques, quer para consumo, quer para posterior comercialização. Na importação por conta e ordem de terceiros, como o nome revela, o importador não traz mercadorias para si, mas para terceiros pré-definidos (ordem) que suportam financeiramente a operação de importação (conta). Por fim, na importação por encomenda, o importador traz mercadorias para terceiros, no entanto, com recursos próprios.

As duas operações de importação indiretas demandam uma série de obrigações acessórias para que reste configurada a sua legalidade – inscrição no Radar, contrato prévio entre importador e destinatário da carga (encomendante ou real adquirente) e vinculação entre estas empresas nos sistemas da Receita Federal.

No entanto, por motivos variados, o importador que registra declaração de importação unicamente em seu nome, como se destinada aos seus estoques e adquirida com recursos próprios, quando, em verdade foi adquirida para terceiros e/ou com recursos de terceiros incorre em infração por descumprimento dessas obrigações acessórias.

Spacca

É neste contexto histórico que se fala em interposição fraudulenta na importação [1].

Há poucas semanas, nossa coluna publicou instigante artigo do colega Leonardo Branco tratando sobre a possibilidade de se falar em interposição fraudulenta culposa. E, refletindo sobre o assunto da interposição, outras provocações surgiram.

Um dessas provocações se refere às implicações criminais da ocultação fraudulenta. Para muitos criminalistas o fato acima descrito é atípico, já que não possui os elementos intrínsecos necessários. Em outras palavras, poder-se-ia defender que o descumprimento de obrigação acessória fiscal/aduaneira não possui dignidade penal suficiente para atrair tipicidade material, sob pena de descumprimento do nullum crimen sine lege stricta.

Consequências penais da interposição fraudulenta

Pelo lado da fiscalização, as justificativas para a criminalização da interposição fraudulenta na importação estariam pautadas na interpretação de que a ocultação de um dos sujeitos passivos da exação tributária (o encomendante ou o real adquirente) da fiscalização compromete o controle efetivo das operações – principalmente sobre o sujeito oculto. Além disso, insiste-se em teses como a da quebra da cadeia do IPI com consequente redução tributária [2] e de eventual redução artificial do pagamento de ICMS [3], dentre outras consequências econômicas e administrativas [4].

Avaliando os desdobramentos do tema na esfera judicial, verifica-se que uma parte da jurisprudência tipifica a ocultação do real adquirente e/ou do encomendante como delito de falsidade ideológica, nos termos do artigo 299 c/c 304 do Código Penal.

Para essa jurisprudência, a potencialidade lesiva da interposição fraudulenta de terceiros ultrapassa o simples interesse arrecadatório [5], atingindo o controle aduaneiro [6] e a capacidade de conhecimento da fiscalização sobre os participantes de uma operação de importação.

Desta forma, o bem jurídico tutelado e que restaria infringido pela ação delituosa seria a fé pública [7], “a verdade nos dados contidos em todo o processo de importação”; violação esta que ganharia contornos marcantes quando o acusado é somente representante do importador aparente, que pode não se beneficiar da conduta ilícita [8].

Já a outra parte da jurisprudência trata da criminalização da interposição fraudulenta sob a égide do descaminho, que, por sua vez, não se encontra no rol dos crimes contra a ordem tributária, mas no capítulo do Código Penal destinado aos “Crimes Praticados Por Particular Contra A Administração Em Geral”. Consequentemente, ao tratar a interposição fraudulenta como descaminho, a objetividade jurídica do delito deixa de ser o erário público (as contas públicas) mas a autodeterminação do Estado [9] — que, em termos concretos, refere-se à execução da política de Comércio Exterior, com reflexos evidentes no comércio interno [10].

Essa lógica se alinha ao fato de que os tributos incidentes na importação têm a função precípua de regulamentação do mercado interno – e o reflexo desta função é a extrafiscalidade que lhe é imanente. Se os tributos de aduana têm função de regulamentação da economia, a norma penal que visa proteger estes tributos não pode ter como função imediata a proteção da arrecadação – que, por sinal, sequer é relevante sob a perspectiva do Imposto de Importação e do IPI-importação que, juntos, representam apenas 3,4% da arrecadação tributária total federal [11].

Interposição fraudulenta: descaminho ou falsidade ideológica?

Além de o descaminho relacionar-se com a ocultação da mercadoria em si – e não o seu detentor –, a limitação da objetividade jurídica do descaminho ao erário público desconsidera a impossibilidade de prisão por dívida, bem expressa no inciso 7 do artigo 7° do Pacto de San José da Costa Rica — alçada à norma constitucional pelo Egrégio Sodalício [12].

Isso posto, resta claro que, quer nos crimes contra a ordem tributária, quer no descaminho, deve restar configurada lesão ou perigo de lesão a algo mais que os cofres públicos. Conclusão essa que é compartilhada pela jurisprudência.

No RHC 123.844, ao afastar a aplicação da Súmula Vinculante 24 — que determina a necessidade de aguardar o término do processo administrativo fiscal para iniciar o processo-crime contra a ordem tributária — ao delito de descaminho, o ministro Gilmar Mendes atesta ser o delito de descaminho um crime formal “pois seu conceito abrange, também, a proteção à regularidade da economia nacional e à integridade da própria Administração Pública, bens jurídicos mais amplos que o mero interesse da Fazenda Pública em ver o tributo recolhido”.

No mesmo sentido, no HC 144.193/SP ao afastar o princípio da insignificância ao delito de descaminho ante o valor do tributo sonegado — o que, por si só, demonstra que o tipo penal não protege apenas os cofres públicos —, o ministro Alexandre de Morais conclui que o descaminho atenta contra “o correto e regular exercício da atividade pública e o interesse econômico-estatal, além do produto nacional e a economia do País”.

Das citações acima já se nota que um mesmo fato histórico, a interposição fraudulenta de terceiros na importação, parece chamar a incidência de duas normas jurídicas: o descaminho e a falsidade. Não se trata aqui de círculos secantes – para utilizar a expressão de Binding [13] ao separar o conflito aparente do concurso ideal – mas de círculos concêntricos.

O fato histórico eleito por este artigo é um: a ocultação em declaração de importação de pessoa jurídica destinatária das mercadorias e/ou que deu suporte financeiro à operação de importação [14]. Portanto, trata-se de tema a ser resolvido pelas regras de conflito aparente de normas e não pelas normas de concurso de delitos.

E mais, a coincidência entre o bem jurídico tutelado por ambas as normas é acidental. Afinal, a sobreposição de objetividades jurídica pela Jurisprudência ao tratar a lesão à administração pública e aos interesses desta como alvo tanto na falsidade ideológica, quanto no descaminho deriva do conflito aparente de normas e não de um real concurso de crimes [15], pelo menos, na maior parte dos casos.

Justamente por se tratar de uma coincidência acidental de bem jurídico tutelado, nota-se que o tipo de falsidade é amplo e genérico, ao passo que o descaminho, que tem como característica intrínseca, imanente, a lesão ao interesse público, a lesão à fé em que os agentes públicos devem ter nas declarações privadas (ou público/privadas).

Ademais, a ilusão contida no núcleo do tipo do descaminho não pode ser praticada, salvo por meio de falsidade – se não há ilusão, não há falso, se não há falso, não há ilusão.

Descaminho equiparado

Até 2014, se poderia contestar essa premissa, já que o artigo 334 do CP tratava o dano ao erário como ponto central da tipificação da conduta. Todavia, as modificações trazidas ao § 1° do referido artigo pela Lei 13.008/2014, em que se criou a figura do descaminho “equiparado”, houve o alargamento das hipóteses para os casos em que não haja evasão ou elisão tributária, bastando – do ponto de vista formal – que restasse configurada atividade de venda, exposição à venda, depósito ou utilização de mercadoria importada fraudulentamente.

Diante disso, tem-se que a interposição fraudulenta de terceiros consistente na ocultação do real adquirente ou do encomendante em operação de importação e que, por força da regra da especialidade, tipifica-se como delito de descaminho se houver redução na carga tributária da operação; ou de descaminho equiparado, caso esta redução não ocorra – como já se pronunciou o STJ em sede de recursos repetitivos (embora, com frequência, decida contra o verbete):

“RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. RITO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC. DIREITO PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO.  DESCAMINHO. USO DE DOCUMENTO FALSO. CRIME-MEIO. ABSORÇÃO. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. Recurso especial processado sob o rito do art. 543-C, § 2º, do CPC e da Resolução n. 8/2008 do STJ.
2. O delito de uso de documento falso, cuja pena em abstrato é mais grave, pode ser absorvido pelo crime-fim de descaminho, com menor pena comparativamente cominada, desde que etapa preparatória ou executória deste, onde se exaure sua potencialidade lesiva. Precedentes.

3. Delimitada a tese jurídica para os fins do art. 543-C do CPC, nos seguintes termos: Quando o falso se exaure no descaminho, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido, como crime-fim, condição que não se altera por ser menor a pena a este cominada

4. Recurso especial improvido.” (REsp 1.378.053 / PR – Tema 933 dos Repetitivos.)

A análise sistemática da legislação e da jurisprudência dominante parecem trazer uma conclusão assustadora: a forma como a fiscalização tem tratado qualquer conduta duvidosa como interposição fraudulenta parece indicar para a possibilidade de que qualquer importador se veja diante de uma possível pena de reclusão por pequenos descuidos ou erros.

Necessidade de materialidade da conduta

Nossa visão é de que, ainda que formalmente a conduta configurada como interposição fraudulenta possa ser tipificada como descaminho, ainda restaria necessário avaliar a materialidade da conduta – o que não é realizado na esfera aduaneira em razão da generalização da natureza objetiva das infrações.

Ocorre que, se para o Direito Aduaneiro-Tributário dolo e potencialidade lesiva são tratados quase como sinônimos, no Direito Penal – e nos demais ramos do direito brasileiro, diga-se de passagem — isso não pode ocorrer.

Com efeito, o fato de o sistema infracional aduaneiro estar preso em um passado distante faz com que haja uma pré-disposição cada vez mais clara à criminalização de condutas que, mesmo dolosas, possuem baixo ou nenhum prejuízo ao controle aduaneiro e à autodeterminação do Estado.

A situação, por sua vez, leva a uma falsa dicotomia: deve-se continuar criticando as representações fiscais para fins penais por entendermos que são desproporcionais e desarrazoadas ou pressionar o Estado e, principalmente, o Legislativo para que atualize a lógica por traz do sistema infracional aduaneiro e o traga para o século 21, aplicando – ao menos para uma parte dos casos – a necessidade de análises subjetivas e com a devida mensuração do dano real e/ou potencial?

A resposta parece estar clara, mas, por algum motivo, continuamos a tapar o sol com a peneira.

 


[1] Ao lado deste tipo de interposição fraudulenta real há a interposição fraudulenta presumida que se dá quando não comprovada a “origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados” na importação (artigo 23 § 2° do Decreto-Lei 1.455-76). A interposição fraudulenta presumida não é objeto do presente estudo, até mesmo porque nenhum dos tipos penais que serão tratados admitem qualquer tipo de presunção de tipicidade – sem prejuízo de algumas decisões judiciais não se atentarem para este fato, diga-se.

[2] As saídas de mercadorias industrializadas do encomendante e do real adquirente são tributadas pelo IPI, ocultando-os, em tese, estas saídas passam a não ser tributadas.

[3] Dentro do contexto da guerra dos portos, uma trading ou comercial importadora fixa-se em um Estado com tributação de ICMS-importação favorecida e, posteriormente, revende mercadorias para pessoa jurídica fixada em Estado com tributação de ICMS-importação gravosa. Ocultando o destinatário final, o importador dificulta a identificação da operação pelos Estados e, consequentemente, a licitude da tributação no Estado do importador.

[4] Facilitação ao contrabando e a entrada de mercadorias contrafeitas, concorrência desleal com importadores que cumprem as normas regulamentares, violação ao controle aduaneiro, etc.

[5] STJ RHC 96063 / SC

[6] TRF4 APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5059971-66.2016.4.04.7000/PR

[7] TRF 3 APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0006345-95.2011.4.03.6104

[8] STJ CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 159.497 – CE

[9] HUNGRIA (Comentários ao Código Penal, V. IX) prefere falar “normalidade funcional” do Estado, porém, em seguida, completa o significado dispondo ser normalidade funcional “a atividade do Estado, de par com a de outras entidades de direito público, na consecução de seus fins”.

[10] CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Crimes de Contrabando e Descaminho. São Paulo: Saraiva, 1988. P. 4.

[11] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/arrecadacao-federal/2023/analise-mensal-dez-2023.pdf/view

[12] RE 466.343

[13] IN ASÚA, Luis Jimenez de.  Tratado de Derecho Penal – Tomo III. Imprenta: Buenos Aires, Losada, 1964. P. 544.

[14] GRISPINI IN ASUA. Op. Cit. P. 544.

[15] Na lição de MAGGIORE (Giuseppe. Derecho Penal. p. 243) a sobreposição de objetividade jurídica é uma das formas de separar o conflito aparente de normas do concurso ideal de crimes.

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

  • é conselheiro do Carf, delegado do Brasil da International Federation of Freight Forwarders (Fiata), pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade de Valência, pós-graduado em Comércio Exterior pelo IE da Unicamp, pós-graduado e mestrando em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Lisboa e advogado licenciado.

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